Artigo Jurídico apresentado como requisito para obtenção do título de Especialista em Direito Civil pela UniFMU/SP, em 2008.
UniFMU
CENTRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - CPPG
FABIO ROGERIO CORREA DE LIMA
RA 037524-8
O DIREITO REAL DO PROMITENTE COMPRADOR
SÃO PAULO
2008
RESUMO
O presente trabalho traça um panorama acerca do Direito Real do Promitente Comprador, consagrado primeiramente no ordenamento jurídico pátrio pelo Dec.-lei 58/37, e muito discutido pela jurisprudência desde então, até a sua inclusão no rol dos Direitos Reais previstos no Novo Código Civil.
Nele, são abordadas as questões relativas às suas características e formas de operação, sem deixar de lado sua previsão legal e classificação doutrinária.
Mais adiante, são tecidas algumas considerações sobre os direitos reais e os direitos obrigacionais, bem como é feito um comparativo apontando suas principais diferenças e verificando situações em que estes dois ramos do Direito se aproximam profundamente, causando uma aparente interpenetração entre os mesmos.
Verificou-se, ainda, a necessidade de classificação do contrato preliminar e o enquadramento da promessa de compra e venda nessa modalidade, bem como a eficácia real a este atribuída através do registro imobiliário.
Em seguida, aponta a utilidade prática da promessa de compra e venda, e sua ampla utilização nas negociações imobiliárias, devido às suas características e à sua simplicidade.
É exposta, ainda, uma visão superficial e sucinta sobre as modalidades de remédios judiciais previstas no ordenamento jurídico para a solução das lides que envolvam ou, ainda, sejam oriundas de promessa de compra e venda, ilustrando-a com alguns julgados selecionados, que refletem o entendimento pacífico da jurisprudência sobre os aspectos neles considerados.
Ao final, tratamos da questão da obrigatoriedade ou não do registro da promessa de compra e venda, enfocando, também os aspectos práticos e sociais pertinentes à questão.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho será abordado o Direito do Promitente Comprador do Imóvel, introduzido no Novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2.002), em vigor desde 11 de janeiro de 2.003, que, nos incisos de seu artigo 1.225 enumera o rol dos Direitos Reais, dentre os quais o Inciso VII, especificamente, o objeto deste estudo, que vem regulado nos artigos 1.417 e 1.418 do mesmo Código Civil.
Primeiramente, cumpre esclarecer que no decorrer dos estudos e do desenvolvimento deste trabalho, que tinha como título anterior O Direito Real de Aquisição Derivado do Contrato Preliminar, que decidimos alterar, pois parecia-nos por demasia extenso e complexo, nossos entendimentos acerca dos diversos aspectos por ele englobados foram sendo modificados e refinados, visando uma melhor explanação do tema, buscando, dessa maneira, melhor atender às expectativas do leitor.
O primeiro problema advindo do presente estudo foi a classificação do direito real do promitente comprador. Não obstante a previsão legal, por que se trata de direito real? De que forma opera e quais são seus efeitos?
É modo originário ou derivado de aquisição da propriedade? E, com relação à transmissão propriamente dita, é universal ou a título singular?
Essas questões serão respondidas e exemplificadas, para melhor ilustrá-las, ao longo deste trabalho.
Em seguida, surge a questão do enquadramento da promessa de compra e venda como espécie de contrato preliminar, tendo em vista que o contrato preliminar propriamente dito é o instrumento utilizado pelas partes quando não desejam, pelos mais variados motivos, contratar definitivamente, porém, por outras tantas razões, não desejam deixar de contratar naquele momento, utilizando-se do referido instrumento para uma contratação prévia, que obriga as partes a uma contratação definitiva, nos mesmos moldes daquela, que constitui uma nova manifestação de vontade, qual seja a de contratar definitivamente a obrigação pré-contratada, em determinado momento ajustado entre as partes, em cumprimento ao pré-contrato.
Contudo, a promessa de compra e venda pressupõe uma nova manifestação de vontades acerca do objeto compromissado? Ou tão somente a ratificação da vontade expressa quando contraída a obrigação objetivada pelo instrumento pré-contratual, o que o afastaria da classificação de contrato preliminar?
Nesse aspecto, divergem os autores pesquisados, cada qual com suas razões, o que nos levou a analisá-las ponto a ponto, a fim de elucidar a questão e tirar nossas conclusões acerca do assunto, reduzindo-as a termo no decorrer deste trabalho.
Na seqüência, surge a questão dos efeitos reais atribuídos à promessa de compra e venda, seja ela efetuada por instrumento particular, seja por instrumento público, e, posteriormente, sua relação com a escritura pública definitiva de compra e venda, único título hábil à transferência de bens imóveis (nas transmissões ocorridas inter vivos e oriundas de consentimento mútuo entre as partes) previsto no ordenamento jurídico pátrio.
Adiante, será verificada a utilidade prática da promessa de compra e venda na vida cotidiana, ressaltando seus aspectos positivos, determinantes de sua condição de instrumento jurídico amplamente utilizado nas negociações imobiliárias.
Por fim, será traçado um panorama envolvendo a questão dos remédios judiciais aplicáveis às demandas que envolvam promessa de compra e venda, passando pelas situações em que o promitente comprador faz valer seus direitos contra quaisquer que os ameacem, mediante o uso de medidas judiciais específicas, até chegar às lides envolvendo propriamente os contratantes, devido ao inadimplemento de uma ou de outra parte.
Neste sentido, verifica-se que as medidas judiciais previstas no nosso ordenamento jurídico para tutelar os direitos das partes envolvidas na promessa de compra e venda são as mais variadas, indo desde a ação indenizatória, até alcançar a usucapião, passando, inclusive, pela ação reivindicatória, entre outras.
Fez-se necessário, ainda, traçar a classificação doutrinária dos direitos reais, sem deixar de lado a classificação dos direitos obrigacionais, enumerando, ainda que de forma sucinta, para não fugir do propósito deste trabalho, as diferenças existentes entre esses dois ramos do direito, para um melhor entendimento das questões abordadas neste trabalho.
Embora o direito real de aquisição do promitente comprador seja uma novidade no rol dos direitos reais trazido pelo Código Civil, o assunto já é, de longa data, conhecido dos operadores do direito, tendo sido, anteriormente à sua codificação, amplamente discutido pelos mais variados operadores do direito, e com mais freqüência pela jurisprudência, que evoluiu no decorrer dos últimos anos, principalmente após o advento do Decreto-lei 58/37, que pela primeira vez codificou a promessa de compra e venda no ordenamento jurídico brasileiro, conforme verificado na evolução histórica traçada neste trabalho, o que nos levou a trazer, em apêndice, uma seleção de decisões de diversos Tribunais envolvendo a promessa de compra e venda, porém, sob a égide do Código Civil de 1.916, tendo em vista que, devido ao curto período de vigência do novo diploma civil, ainda não foi possível verificar-se nenhuma decisão sob a vigência deste, o que aguardamos ansiosamente, a fim de, finalmente, vermos pacificados os entendimentos de nossos ilustres magistrados acerca de um tema de alta relevância na realidade brasileira, tendo em vista sua enorme utilização nos negócios imobiliários, verificando que, em muitos aspectos, a codificação trazida pelo Novo Código Civil veio tão somente ratificar o entendimento dos Tribunais, ao passo que, em outros, veio contradizer o que já era pacificado, como a questão envolvendo a necessidade do registro imobiliário da promessa de compra e venda.
Mas deixaremos essa questão para um futuro próximo, atendo-nos à realidade atual, esperando que o presente trabalho consiga atingir seu maior propósito, que é o de elucidar aos leitores o Direito Real do Promitente comprador.
1.HISTÓRICO
A origem da promessa de compra e venda, também conhecida por compromisso de compra e venda, contrato preliminar de compra e venda, pré-contrato de compra e venda, remonta às Ordenações Afonsinas, Livro IV, Tít. 57, § 1º, em texto inserto por D. Dinis, ainda no séc. XIV, segundo Pontes de Miranda.[1]
Mais tarde, as Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XIX) diziam: “Se algumas pessoas fizerem contrato de venda, ou de outra qualquer convença, e ficarem para fazer escritura desse contrato, antes que se a tal escritura se faça, se pode arrepender e arredar da convenção o que havia de fazer a escritura. E isto haverá lugar quando o contrato for tal que segundo o direito não possa valer sem escritura, e que a escritura seja da substância do contrato...”.
Na expressão de Pontes de Miranda, deduzia-se que do pré-contrato emanava o direito à conclusão do contrato definitivo, se antes não manifestado o arrependimento. Mas permanecia, enquanto não expresso o desfazimento, o direito para a escritura que, caso não realizada, ensejava a resolução em perdas e danos.
Posteriormente, o direito português passou a admitir a execução compulsória da promessa de compra e venda.
O direito francês equipara a promessa de compra e venda à venda definitiva, conforme disposição do artigo 77 do Código de Napoleão, que reza que a transferência da propriedade se opera, entre outros casos, pelo simples efeito da obrigação assumida, que equivale a efeito do contrato.
Foi introduzido ao nosso direito positivo por meio do Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1.937, que se destinava a regulamentar a venda de terrenos loteados, e causou um forte impacto no ordenamento jurídico pátrio, bem como em nossos tribunais.
Até então, a discussão do tema girava em torno do artigo 1.088 do Código Civil de 1.916, que permitia o arrependimento de qualquer das partes anteriormente à assinatura do instrumento público definitivo, arcando a parte arrependida somente com as perdas e danos decorrentes de seu arrependimento.
Em face desse entendimento, o compromissário comprador não tinha meios para compelir o compromitente vendedor a cumprir a promessa na forma estipulada.
Somente com o advento do Decreto-lei 58, que em seu artigo 16 previa a possibilidade do adquirente do imóvel, em caso de inadimplemento do alienante (consistente na recusa em outorgar a escritura definitiva), propor ação de adjudicação compulsória, a fim de compelir o alienante a cumprir a obrigação avençada na promessa de compra e venda, é que o tema ganhou a dimensão que conserva até hoje, chegando até à consagração do dispositivo pelo Novo Código Civil, em seu artigo 1.418.
É conveniente salientar os pontos excepcionalmente relevantes introduzidos pelo Decreto-lei 58, consistentes na atribuição de direito real ao compromissário comprador (desde que registrado o contrato) e a possibilidade de adjudicação compulsória (se quitado integralmente o preço).
Nas palavras de José Osório de Azevedo Jr., tendo em vista sua enorme aplicação nos negócios imobiliários, seja pela liberdade de sua forma, seja por facilidade de ordem tributária, seja pela sua engenhosidade intrínseca (que, ao mesmo tempo em que traz garantias sólidas ao transmitente, concede poderes amplos ao adquirente), a promessa de compra e venda parece ter encontrado entre nós seu habitat natural, sendo utilizado e trabalhado com grande freqüência pelos mais variados operadores do Direito atuantes no mercado imobiliário, podendo-se, talvez, até se afirmar que é “o mais brasileiro” dos contratos de direito civil, não pelas suas origens, mas pela freqüência de sua utilização entre nós.
A jurisprudência, continuamente chamada a se manifestar sobre o assunto, formou, nesse interregno, uma construção rica e elogiável, tanto que seu entendimento acabou por ser albergado pelo Novo Código Civil, que considerou como direito real o direito do promitente comprador do imóvel, atendendo, assim, aos anseios dos insignes juristas pátrios, visto que o Código Civil de 1.916 não continha disposição expressa a respeito da promessa de compra e venda.
2.CONTRATO PRELIMINAR
2.1.CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA
O contrato preliminar é o instrumento do qual se socorrem as partes quando não parecer oportuno, conveniente, ou até possível, naquele momento, contratar definitivamente, mas, ao mesmo tempo, tendo em vista as negociações preliminares, que normalmente demandam longas tratativas, elaboração de minutas, em alguns casos, custos com viagens, contratação de especialistas, sem contar o desgaste psicológico causado às partes, mais inoportuno ainda, deixar de contratar.
Às partes pode ser mais conveniente aguardar a melhora da situação econômica, ou ainda, realizar estudos mais aprofundados acerca do negócio que se está por realizar, cabendo, então, como melhor alternativa a celebração do contrato preliminar, antevendo uma contratação futura e definitiva. Este instrumento recebe denominações variadas, como pré-contrato, promessa de contrato, compromisso, contrato preparatório, não importando a nomenclatura utilizada, desde que preenchidos os requisitos legais.
Embora não seja contrato definitivo, deve revestir-se dos requisitos essenciais aos contratos, atinentes à capacidade das partes, ao objeto, que deve ser lícito, e à forma, visto que, o que se busca é a realização do contrato definitivo, podendo, no entanto, as partes estipularem com maior ou menor amplitude as cláusulas que efetivamente constarão do contrato definitivo.
De suma importância é ressaltar que o contrato preliminar não se confunde com as negociações preliminares, que, via de regra, não constituem direitos, sendo que os danos porventura oriundos destas, que ocorrem fora do contrato, caem na esfera da responsabilidade civil pré-contratual, cabendo indenização, fundada no art. 186 do Código Civil (culpa aquiliana).
Ainda que não se confundam, o contrato preliminar e as negociações preliminares estão intimamente ligados, pois fazem parte da fase de formação gradual do contrato, estas últimas antecedendo o primeiro. Realmente, em contratos mais complexos, cada uma das fases da formação do contrato, que vão desde as negociações preliminares, passando pela opção, até alcançar o contrato preliminar e, finalmente, o contrato em si, é nitidamente identificável. Contudo, a vinculação só se verifica com o contrato preliminar.
O contrato preliminar pode ser unilateral ou bilateral, sendo o unilateral impropriamente chamado de opção.
A opção, considerada por alguns autores como contrato preliminar, embora tratada no âmbito da formação contratual, parte de premissa diversa daquele, pois consiste num negócio preliminar em que uma parte oferece à outra um contrato e compromete-se a manter referida oferta em vigor, nos mesmos termos. À outra, cabe aceitar ou não a oferta, no prazo convencionado, bastando, para sua formalização, a simples aceitação, independendo de nova manifestação de vontade para sua conclusão.
No contrato preliminar bilateral, cada parte pode exigir da outra a execução do contrato definitivo, sendo sua espécie mais comum a promessa de compra e venda de imóvel, que pode ser irretratável ou conter cláusula de arrependimento.
No Direito Romano, a figura do pactum de contrahendo representava o contrato preliminar como conhecemos atualmente, amplamente utilizado em nosso Direito, porém, sem encontrar uma codificação dentro do ordenamento pátrio até a entrada em vigor do Decreto-lei nº 58/37, que inaugurou uma útil atividade legislativa do contrato preliminar, ao regular a promessa de compra e venda de terrenos para pagamento em prestações.
Por ter força vinculante, principalmente tratando-se de promessa irretratável, a conclusão do contrato definitivo pode ser exigida judicialmente. Todavia, o juiz não se substitui à parte na conclusão do contrato, determinando, tão somente, sua execução específica, pois a própria noção de contrato repele totalmente o suprimento judicial para sua formação.
Como efeito precípuo do contrato preliminar temos a obrigatoriedade da celebração do contrato definitivo, tendo em vista que o pré-contratante, ao optar pelo contrato preliminar, deseja sua eficácia, com a conseqüente celebração do contrato definitivo.
Verificada a recusa do cumprimento, existem duas soluções a serem adotadas, conforme o caso concreto. Ou a parte inadimplente é compelida, judicialmente, à execução do contrato definitivo, produzindo, assim, o efeito do objetivado pelo pré-contrato, como no caso da promessa irretratável de compra e venda, conforme a previsão do art. 463 do Código Civil, desde que registrado no Cartório competente, de acordo com seu parágrafo único, ou é condenada a indenizar os danos oriundos de sua recusa, como no caso da promessa de compra e venda em que constou cláusula de arrependimento.
Vejamos, acerca do inadimplemento, nota de Orlando Gomes:
“O pré-contrato produz obrigação de fazer, isto é, obrigação de firmar o contrato definitivo. Toda obrigação de fazer, sempre que isto for possível, fática e juridicamente, deve ser executada por meio de” tutela específica “. Vale dizer, a execução deve propiciar ao credor a própria prestação prometida (Código de Processo Civil, art. 461). Somente haverá substituição por perdas e danos, se o credor requerer, ou se for impossível a tutela específica (Idem, § 1º)”.
Assim, o promissário, em nosso sistema processual, conta com ação especial para obter, sempre que lhe interessar, e não houver empecilho algum de ordem convencional, uma sentença que possa produzir “o mesmo efeito do contrato a ser firmado” (CPC, art. 639). Uma hipótese, porém, em que a adjudicação compulsória se torna impossível é a do pré-contrato onde se tenha inserido cláusula de arrependimento. Aí, terá o credor, no caso de inadimplemento, de contentar-se com perdas e danos.”[2]
Neste sentido, verifiquemos algumas anotações de Nelson Nery Junior ao art. 461 do CPC:
...
“2.Natureza Jurídica da ação. A ação prevista no CPC 461 é condenatória e, portanto, de conhecimento. Nada obstante, tem eficácia executivo-mandamental, pois abre ensejo à antecipação da tutela (CPC 461 § 3.º), vale dizer, autoriza a emissão de mandado para execução específica e provisória da tutela de mérito ou de seus efeitos. O conteúdo do antigo CPC 461 foi transformado em par. ún. do CPC 460, abrindo-se uma “vaga” numérica nos artigos do CPC, de modo a possibilitar ao legislador da reforma o regramento completo de um novo instituto, que é o da ação de conhecimento de execução de obrigação de fazer ou não fazer. A execução específica da obrigação de fazer ou não fazer, constante de sentença transitada em julgado ou de título executivo extrajudicial (CPC 645), deve seguir o rito estabelecido pelo CPC 632 e ss. O CPC 461, de conseguinte, regula a ação de conhecimento e não a de execução, stricto sensu. O § 5.º, que fala na possibilidade de o juiz determinar, serve de parâmetro para a antecipação da tutela, prevista no §3.º.
...
§ 3.º: 13. Adiantamento da tutela. A tutela específica pode ser adiantada, por força do CPC 461 § 3.º, desde que seja relevante o fundamento da demanda (fumus boni juris) e haja justificado receio de ineficácia do provimento final (periculum in mora). É interessante notar que, para o adiantamento da tutela de mérito, na ação condenatória em obrigação de fazer ou não fazer, a lei exige menos do que para a mesma providência na ação de conhecimento tout court (CPC 273). É suficiente a mera probabilidade, isto é, a relevância do fundamento da demanda, para a concessão da tutela antecipatória da obrigação de fazer ou não fazer, ao passo que o CPC 273 exige, para as demais antecipações de mérito: a) a prova inequívoca; b) o convencimento do juiz acerca da verossimilhança da alegação; c) ou o periculum in mora (CPC 273 I) ou o abuso do direito de defesa do réu (CPC 273 II).”[3]
2.2.PROMESSA DE COMPRA E VENDA
2.2.1.CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Para conceituar a promessa de compra e venda, utilizaremos os ensinamentos do saudoso mestre Rubens Limongi França, que adota a nomenclatura de compromisso de compra e venda:
“O compromisso de compra e venda é uma modificação da compra e venda que consiste em um ato pelo qual o compromitente vendedor se obriga perante o compromissário comprador a, mediante o pagamento do preço, em prestações ou de uma só vez, outorgar a este último escritura definitiva de alienação do objeto.”[4]
A promessa de compra e venda, face à sua natureza jurídica, por alguns doutrinadores, como Maria Helena Diniz, não é considerado contrato preliminar, visto que o contrato preliminar pressupõe a celebração de um contrato definitivo, enquanto a promessa de compra e venda pressupõe, efetivamente, a entrega do imóvel adquirido, e não um novo contrato, uma nova manifestação de vontades das partes contratantes.
Com maior clareza, Orlando Gomes e Sílvio de Salvo Venosa consideram-no contrato preliminar impróprio, devido à previsão legal de substituir-se o contrato definitivo por uma sentença constitutiva e à atribuição de direito real ao promitente comprador.
Para estes, a promessa de compra e venda possui todos os elementos da compra e venda, sendo que, com a outorga da escritura definitiva, não há nova manifestação de vontade, mas tão somente a ratificação de suas vontades, a reprodução, de forma pública, do primeiro negócio.
A promessa de compra e venda apresenta algumas peculiaridades no que tange a imóveis loteados, previstas, primeiramente, no Decreto-lei 58 e posteriormente na Lei 6.766/79, alterada pela Lei 9.785/99.
É imprescindível que o loteamento encontre-se em situação regular, ou seja, que esteja registrado perante o cartório imobiliário competente.
O artigo 25 da Lei 6.766/79 prevê que as promessas de compra e venda de lotes são irretratáveis, podendo ser celebrados por instrumento particular ou público, conforme o art. 26 da mesma Lei, que ainda exige os seguintes elementos:
I – nome, registro civil, cadastro fiscal no Ministério da Fazenda, nacionalidade, estado civil e residência dos contratantes;
II – denominação e situação do loteamento, número e data da inscrição (registro);
III – descrição do lote ou dos lotes que forem objeto de promessa, confrontações, área e outras características;
IV – preço, prazo, forma e local de pagamento, bem como a importância do sinal;
V – taxa de juros incidentes sobre o débito e sobre as prestações vencidas e não pagas, bem como a cláusula penal, nunca excedente a 10% do débito e só exigível nos casos de intervenção judicial ou de mora superior a 3 meses;
VI – indicação sobre a quem incumbe o pagamento dos impostos e taxas incidentes sobre o lote compromissado;
VII – declaração das restrições urbanísticas convencionais do loteamento, supletivas da legislação pertinente.
O contrato deverá, ainda, ser firmado em três vias, ficando uma para cada parte e a terceira arquivada no registro imobiliário, exceto no caso de contrato padronizado, que caracteriza contrato de adesão, e dispensa a necessidade de arquivo no cartório. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº8.078/90), em seu art. 54, versa sobre o contrato de adesão, estabelecendo que o mesmo deve ter suas cláusulas aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo, sendo certo que seus parágrafos limitam as cláusulas que podem ser inseridas no mesmo. A segunda parte é a que nos interessa, onde consideramos o loteador como fornecedor de produtos ou serviços e o promitente comprador como o consumidor da relação, donde depreende-se que, neste caso, configura-se uma relação de consumo.
Em obediência ao disposto no art. 53 do CDC, considerar-se-ão nulas de pleno direito quaisquer cláusulas que estipulem a perda total das prestações pagas, no caso de retomada do bem ou resolução do contrato pelo promitente vendedor em face do inadimplemento do promitente comprador.
Já a promessa de compra e venda de imóveis não loteados exige menos formalismo, cumprindo ressaltar que os aspectos relativos à individualização das partes e do objeto são imprescindíveis. Como a promessa de imóvel loteado, pode também ser celebrado por instrumento particular e deve ser registrado para se tornar oponível erga omnes, conferindo eficácia real ao direito do promitente comprador. Da mesma forma, o falecimento ou falência dos contratantes não o extingue.
Por exigência legal, não deve conter cláusula de arrependimento, não sendo necessário declarar que o fazem sem direito a arrependimento. Contudo, sendo de sua vontade, as partes podem estipular cláusula resolutória, podendo, desta forma, se reservarem o direito de arrependimento.
Contudo, é de suma importância lembrar que, uma vez pago o preço, em sua totalidade, o promitente vendedor perde o direito ao arrependimento.
2.2.2.COMPARADA COM A ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA
Embora a promessa de compra e venda não possa ser equiparado à escritura pública definitiva de compra e venda, podemos dizer que ambos os instrumentos se igualam profundamente, tendo em vista que a promessa registrado, assim como a escritura registrada, transmite ao adquirente os poderes de usar, gozar e dispor da propriedade imóvel, transmissão esta que, pago integralmente o preço, torna-se definitiva e irreversível, podendo o adquirente, caso o alienante se recuse a cumprir sua parte do pacto, utilizar-se dos remédios judiciais existentes no ordenamento jurídico pátrio, conforme será exposto no item 3.6, subitem 3.6.1, do presente trabalho, pois as situações jurídica e econômica de ambos os contratantes, com a quitação do preço, tornam-se equânimes, devendo o promitente comprador receber o mesmo tratamento que é dispensado ao proprietário/promitente vendedor.
2.3.PARTES CONTRATANTES E SUAS OBRIGAÇÕES
As partes contratantes são, usualmente, denominadas compromitente ou promitente vendedor e compromissário ou promissário comprador. Contudo, para um melhor entendimento, neste trabalho os classificaremos como promitente vendedor e promitente comprador.
Ao promitente vendedor são atribuídas duas modalidades de obrigação: uma de dar, ou transmitir a posse do imóvel, de acordo com o que foi contratado, e outra de fazer, consistente em outorgar a escritura definitiva, depois de quitado o preço; ao promitente comprador, cumpre o pagamento do preço e o recebimento da escritura definitiva.
Com a promessa, e conseqüente transferência da posse ao promitente comprador, os direitos de uso, gozo e disposição a ele também são transferidos, ficando o promitente vendedor apenas com a nua propriedade do imóvel, ressaltando-se que o direito de disposição conferido ao promitente comprador é relativo, tendo em vista que ele ainda não é o proprietário, mas tem a expectativa de o ser.
2.4.FORMAS DE EXTINÇÃO
A promessa de compra e venda extingue-se:
a) pela execução voluntária, é dizer, pelo cumprimento, por cada uma das partes, de suas respectivas obrigações;
b) pela execução coativa, oriunda do descumprimento de obrigação por uma ou outra parte;
c) pela resolução, consistente na possibilidade de uma das partes romper o vínculo contratual, devido ao inadimplemento da outra, mediante ação judicial;
d) pela dissolução bilateral, com mútuo consentimento, formalizada por meio de distrato, onde as partes acordam, mutuamente, a extinção da relação contratual.
Cumpre ressaltar que, devido à atribuição de direito real, através do registro público, faz-se necessário o cancelamento da averbação. Se houve adjudicação compulsória, ou resolução, cancela-se a averbação por ordem judicial. Havendo execução voluntária, o registro da escritura definitiva, automaticamente, cancela a averbação. Operando-se operar a dissolução, cancela-se a averbação por requerimento assinado pelas partes.
3.O DIREITO REAL DO PROMITENTE COMPRADOR
3.1.PREVISÃO LEGAL (SITUAÇÃO NO ROL DOS DIREITOS REAIS)
Ao rol dos direitos reais contido no artigo 674 do Código Civil de 1.916, o Novo Código Civil, em seu artigo 1.225, acrescentou o direito do promitente comprador, previsto em seu inciso VII, além do direito de superfície (inciso II), excluindo do Codex anterior a enfiteuse e as rendas expressamente constituídas sobre imóveis, objetos dos incisos I e VI, do artigo 674, respectivamente. Salientamos que, assim como no diploma revogado, o rol dos direitos reais é taxativo, contendo, portanto, numerus clausus.
Em seu TÍTULO IX, DO DIREITO DO PROMITENTE COMPRADOR, composto pelos artigos 1.417 e 1.418, o Novo Código Civil trata desta nova modalidade de direito real, prevendo o seguinte:
“Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.”
Vejamos o que diz o próximo artigo:
“Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.”
Analisemos os dispositivos legais supracitados:
O art. 1.417 prevê que, mediante promessa de compra e venda irretratável, onde concluímos que permanece o entendimento citado anteriormente no item 2.2., de que, ainda que contenha cláusula de arrependimento, o direito de arrependimento do promitente vendedor cessa com o pagamento integral do preço pelo promitente comprador; por instrumento público ou particular, entende-se que está afastada a discussão acerca da exigência de escritura pública para alienação de imóveis com valor superior a 30 vezes o salário mínimo vigente no país, o que vem sendo discutido por especialistas no assunto. Contudo, o texto do art. 1.417 é claro ao prever a forma particular para a promessa de compra e venda; e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, acabando com a discussão existente na vigência do código anterior, que, aliás, foi pacificada pelo entendimento dos tribunais, quanto à exigência do registro para a adjudicação compulsória, visto que, hoje, a exigência do registro está relacionada à aquisição do direito real do promitente comprador, com oponibilidade erga omnes, e não ao direito de pedir a adjudicação do bem; adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel, como já explicado acima.
Já o art. 1.418, diz o seguinte: o promitente comprador, titular de direito real (vide anotação ao art. 1.417 supra), pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar, donde, havendo recusa por parte do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva, exercendo, o promitente comprador, seu direito mediante a constituição em mora do promitente vendedor, via notificação através de Tabelionato de Notas; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel, mediante ação de adjudicação compulsória, que seguirá o rito sumário, visto já ter sido verificada a mora do promitente vendedor.
Não deixemos de lado a previsão contida no art. 1.245 do referido diploma: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.
Neste sentido, vejamos nota de Nelson Nery Junior ao art. 1.245 do CC:
...
2. Registro de Imóveis. Registro: Inscrição, averbação e transcrição. Matrícula. O vocábulo registro não é unívoco. Inserido no contexto do registro de imóveis (LRP 167 a 171), ele é utilizado em duas acepções, mesmo em nossa lei registraria: a primeira referente ao ofício público – determinadora da publicidade dos direitos reais – e a segunda relacionada ao ato ou assento praticado em livro desse ofício para realizar o referido fim (Carvalho, Registro, p. 136). Mister ponderar, como bem observou Afrânio de Carvalho, ter o termo registro extensa generalidade que encobre diversos termos específicos – inscrição, averbação e transcrição. Esses três termos específicos designam, respectivamente, o assento seletivo de declarações ou por extrato, o assento dependente da existência anterior, marginal a este, e o assento copiativo das declarações em inteiro teor (Carvalho, Registro, p. 136). Contudo, a divisão teórica existente entre a inscrição e transcrição, pela qual o primeiro termo era a trasladação do extrato ou do negócio jurídico e o segundo constituía-se na trasladação do documento para ofício para o livro do oficial público (Diniz, Registro, p. 42), perdeu a razão de ser diante do texto da LRP 168, que reconheceu a natureza formal que os termos passaram a ter quando da adoção da transcrição por extrato – já que não há em nosso sistema de registro cópia ipsis litteris de títulos (cf. Diniz, Registro, p. 42). Aliás, com o advento da LRP e a criação da figura da matrícula do imóvel, a distinção entre atos de transcrição e inscrição restou-se despicienda, e ambos os atos foram unidos em um só – o registro (Rodrigues, Dir. Civ., v. 5m 51, 92). Assim, a inscrição, nela absorvida a transcrição discrepante, cobre as aquisições (atos transmissivos de propriedade – antiga transcrição) e onerações de imóveis (atos constitutivos de ônus reais – antiga transcrição), que são os assentos mais importantes, ao passo que a averbação cobre os demais, que alterem por qualquer modo os principais (atos modificativos posteriores) (Carvalho, Registro, p. 138). A matrícula, inovação da LRP no que tange ao registro de imóveis, é o primeiro ato realizado e consiste na individualização física e jurídica de um imóvel de modo a estremá-lo de dúvida em relação a outros para, a contar dela, serem feitos os registros que digam respeito ao bem (Ceneviva, LRP Coment., p. 401). Assim, em se tratando de registro de imóveis, o primeiro ato realizado é a matrícula, em seguida, faz-se o registro – das circunstâncias que eram inscritas e transcritas anteriormente –, e por fim ocorrem as averbações na fica da matrícula, ou seja, o lançamento de todas as ocorrências ou fatos que, não estando sujeitos ao assento, venham a alterar o domínio, afetando o registro relativamente à perfeita caracterização e identificação do prédio ou do titular da propriedade (Diniz, Registro, p. 45). Ainda hoje, porém, encontramos o termo registro para expressar qualquer uma das situações – matrícula, registro (strictu sensu – inscrição/transcrição) e averbação, ora significando o registro propriamente dito.
3.2.CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA
O direito real atribuído ao promitente comprador integra essa categoria do direito por conferir a este o direito de opor, perante toda a sociedade (erga omnes), a sua situação jurídica de promissário adquirente de determinado bem imóvel, podendo, inclusive, utilizar-se dos remédios judiciais cabíveis sempre que tiver seu direito ameaçado por quem quer que seja.
Nesse sentido, importante ressaltar que, somente após o registro perante o Cartório imobiliário competente, é que surge o direito real do promitente comprador.
Trata-se de modo derivado de aquisição da propriedade, inter vivos, a título singular. Derivada porque existe relação jurídica com o proprietário anterior, há transmissão da propriedade de um sujeito (vendedor) a outro (comprador), sendo que nessa forma de aquisição, a coisa adentra o patrimônio do adquirente com as mesmas características que possuía anteriormente, tanto qualidades como ônus, tais como a hipoteca previamente constituída, ou a servidão perpétua instituída sobre o imóvel. Inter vivos, porque a transferência advém de ato de vontade manifestado em vida pela parte, diferenciando-se da transferência causa mortis pelo fato desta última ser proveniente de sucessão hereditária, testamentária ou não. E a título singular devido ao fato de estar se adquirindo um bem determinado, certo e individualizado, sendo objetivados tão somente os direitos que recaem sobre a coisa certa transmitida, diferenciando-se da aquisição a título universal, donde a transmissão tem por objeto uma universalidade de bens, tal como a transferência de um estabelecimento comercial, como bem exemplificado por Sílvio de Salvo Venosa[5].
Maria Helena Diniz classifica o direito real do promitente comprador como direito real sobre coisa alheia de aquisição, considerando-o um direito real limitado, de aquisição, assecuratório do contrahere futuro, erga omnes, trazendo à tona a classificação proposta por Orlando Gomes, tratando-o como um direito real sobre coisa alheia sui generis, pois mescla um pouco das características de direito real de gozo e um pouco de direito real de garantia.
Concordamos com o conceito formulado pela Professora Maria Helena Diniz, tendo em vista que se afasta da categoria de direito real de garantia, pois diferentemente do que entende Orlando Gomes, a promessa de compra e venda irretratável não visa garantir o cumprimento da obrigação avençada, qual seja a outorga da escritura definitiva, e a conseqüente transferência da propriedade imóvel (obrigação de dar), mas sim conferir um direito real oponível erga omnes que garanta o seu direito de adquirir a propriedade prometida no aludido contrato preliminar, mediante execução compulsória, caso o promitente vendedor negue a execução específica, voluntária do pré-contrato.
É, enfim, direito real sobre coisa alheia de aquisição, visto resultar, da promessa de compra e venda, um ônus real que é refletido sobre o direito de disposição, pois ao mesmo tempo em que o promitente vendedor, o promitente comprador sujeita-se ao ônus real que pesa sobre a coisa, consistente na obrigação de outorgar a escritura definitiva. Sobre coisa alheia porque enquanto não outorgada a escritura definitiva, o promitente vendedor ainda é o titular do domínio do imóvel, e de aquisição pelo próprio fato de que o objetivo almejado pelo promitente comprador, quando da celebração da promessa de compra e venda, é tão somente a aquisição do referido imóvel.
3.3.DIREITOS REAIS
Cumpre, para melhor elucidação do presente trabalho, trazermos o conceito de direito real, o que fazemos utilizando a lição do mestre Orlando Gomes, que o classifica como o direito que regula o poder dos homens sobre os bens e os modos de sua utilização econômica, avaliando sua importância pelo fato de que é a parte do Direito Civil que rege a propriedade.[6]
O direito real é considerado como sinônimo de direito das coisas, sendo que os bens (suscetíveis de apreensão e/ou apropriação pelo homem) são uma espécie do gênero coisa, que engloba também coisas insuscetíveis de apreensão e/ou apropriação pelo homem, tais como a água e o ar.
O direito real regula as relações entre os bens e os sujeitos de direito, estabelecendo limites e condições para seu efetivo exercício.
3.4.DIREITOS OBRIGACIONAIS
Não podemos deixar de citar o conceito de direito obrigacional, também conhecido como direito pessoal, utilizando, para tanto, mais uma vez, a lição do mestre Rubens Limongi França: “é o vínculo jurídico ou de equidade, pelo qual alguém está adstrito a, em benefício de outrem, realizar uma prestação.”[7] Entendemos como direito das obrigações o ramo que regula este vínculo, lembrando o conceito de direito das obrigações elaborado pela Professora Maria Helena Diniz, mais simplificado: “O direito das obrigações consiste num complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial, que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito de outro.”[8]
Verificaremos as principais diferenças existentes entre os direitos reais e os direitos obrigacionais no item 3.5 infra do presente trabalho, onde há um estudo sucinto acerca das mesmas, bem como suas semelhanças, no item 3.6 infra.
3.5.DIFERENÇAS ENTRE DIREITOS REAIS E DIREITOS OBRIGACIONAIS
Vejamos, sucintamente, as principais diferenças existentes entre os direitos reais e os direitos obrigacionais:
1. O direito real é um direito absoluto, exclusivo, oponível erga omnes, exercido diretamente sobre a coisa, enquanto o direito obrigacional é relativo, pois seu objeto (prestação) só pode ser exigido do(s) devedor(es).
2. O direito real não comporta mais que um titular (exceto no caso de condomínio, onde a propriedade tem vários titulares), que exerce seu poder sobre a coisa direta e imediatamente, enquanto o direito obrigacional apresenta um sujeito ativo (credor), um sujeito passivo (devedor), e a prestação (objeto).
3. O direito real atribui o gozo e a fruição da coisa, enquanto o direito obrigacional atribui somente a(s) prestação(ões) avençada(s).
4. O direito real tem caráter permanente, enquanto o direito obrigacional é transitório.
5. O direito real propicia o direito de seqüela, que atribui ao seu titular o direito de buscar a coisa de quem indevidamente a possui, onde quer que se encontre, enquanto o direito obrigacional não possui esse aspecto, atribuindo a seu titular somente garantias obrigacionais, oriundas do patrimônio do devedor.
6. O rol dos direitos reais apresenta numerus clausus, sendo facilmente enunciáveis, enquanto os direitos obrigacionais apresentam número indeterminado, sendo suas relações apresentadas das mais variadas formas possíveis.
3.6.SITUAÇÕES INTERMEDIÁRIAS
Diversas situações verificadas na vida negocial demonstram uma aparente interpenetração entre direito real e direito obrigacional. No entanto, referidas situações não possuem características bastantes para a inclusão numa nova categoria do direito.
Verifica-se essa situação no ius ad rem, ou direito à coisa, que consiste na designação dado ao direito pessoal estampado na obrigação de entregar certa coisa com o intuito de transferência do domínio, ou de constituição de direito real sobre a mesma, consistindo num direito subjetivo de obter a posse, um direito à posse que não se confunde com a posse especificamente.
Nesse caso, estando a coisa em poder do devedor, que injustamente se recusa a entregá-la, cabe ao credor o direito de compelir, judicialmente, o devedor a entregá-la, mediante ação de execução de obrigação de dar. Ou, ainda, não estando mais a coisa em poder daquele, ou porque não mais lhe pertence, ou porque não mais existe ou está com terceiro de boa-fé, tornando impossível sua entrega, resta o caminho das perdas e danos, conforme os artigos 621 e ss. do CPC.
Podemos afirmar que as obrigações reipersecutórias, os ônus reais e as obrigações com eficácia real enquadram-se nessas situações.
As obrigações reipersecutórias são aquelas que se relacionam com a coisa, que sujeitam a pessoa simplesmente por ser ela proprietária de determinado bem. Exemplificativamente, podemos citar a obrigação do condômino de concorrer, na proporção de seu quinhão, para as despesas de conservação da coisa.
Ônus reais são gravames que recaem sobre uma coisa, tornando restrito o direito do titular de direito real, como, por exemplo, a constituição de renda sobre bem imóvel, que no Novo Código Civil passou a ser tratada exclusivamente como um contrato.
Obrigações com eficácia real são aquelas a que o legislador confere maior proteção, transformando-as em direito real, citando como exemplo mor a promessa de compra e venda, que, apesar de cunho obrigacional, uma vez registrada no cartório imobiliário competente, atribui direito real ao promitente comprador.
3.7.REMÉDIOS JUDICIAIS
Para que não fujamos do propósito do presente trabalho, será feita apenas uma abordagem superficial do assunto, nos casos em que a lide seja oriunda de promessa de compra e venda de imóvel.
O promitente comprador dispõe de remédios judiciais aptos a lhe proporcionar a defesa de seus direitos relacionados à promessa de compra e venda contra terceiros, tal como a ação reivindicatória, que, embora seja um procedimento cuja titularidade é do proprietário do imóvel, tal titularidade é transferida ao compromissário comprador, visto que, com a promessa irretratável registrado, o promitente comprador adquire o direito de usar, gozar e dispor do imóvel, e também o direito de reavê-lo, de reivindicá-lo, inclusive contra o titular de escritura definitiva posterior à sua averbação.
O ordenamento jurídico pátrio apresenta, ainda, remédios judiciais cabíveis nos casos de inadimplemento contratual por parte de um ou outro contratante, havendo um específico para cada caso, conforme será declinado a seguir.
3.7.1.INADIMPLEMENTO DO PROMITENTE VENDEDOR
O inadimplemento contratual por parte do promitente vendedor pode ser verificado em duas hipóteses: na recusa em outorgar a escritura definitiva de compra e venda do imóvel, ou na hipótese de furtar-se em receber as prestações devidas pelo promitente comprador.
A recusa do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva de compra e venda do imóvel em cumprimento à promessa previamente assinado, desde que quitado o seu preço, enseja ao promitente comprador o direito de requerer a adjudicação do imóvel, pela via judicial, mediante ação de execução de obrigação de fazer, nos moldes dos arts. 466-A, 466-B e 466-C do CPC (antigos arts. 639 a 641, revogados pela Lei nº 11.232, de 22.12.2005).
A adjudicação compulsória é uma espécie de ação pessoal da qual pode socorrer-se o promissário comprador, ou o cessionário de seus direitos de aquisição, ajuizando-a em face do promitente vendedor que tenha se omitido em outorgar a competente escritura definitiva.
A adjudicação compulsória, embora seja ação de conhecimento, visa uma providência jurisdicional consistente na execução duma obrigação de fazer.
Diante dessa afirmação, questiona Ricardo Arcoverde Credie: “Em vista da sistematização doutrinária atinente à ação, pode parecer ilógica a assertiva de que uma tutela jurisdicional de execução (que somente seria cogitável através da chamada ação de execução) adviesse de uma ação de conhecimento)”.
É que a sentença promulgada na ação de adjudicação compulsória se apresenta sob dois aspectos: primeiro o de declaração de preexistência duma situação jurídica (promessa de compra e venda celebrada entre o autor e o réu), que, inexoravelmente, antecede o segundo, no qual se extingue a primeira situação (a sentença, como substitutiva da outorga da escritura definitiva, põe fim à relação jurídica constituída entre as partes através da promessa de compra e venda).
Assim, concluímos que a ação de adjudicação compulsória é constitutiva, amparados, mais uma vez, por Ricardo Arcoverde Credie, visto que: “Volta-se ela para uma sentença constitutiva, consistente, na primeira fase, em acertar a preexistência do contrato de compromisso de compra e venda apto a gerar o efeito da segunda fase, que é justamente o de realizar declaração de vontade omitida pelo devedor.”
Para interposição da ação de adjudicação compulsória, além das condições gerais da ação, verificam-se, também, condições específicas.
Assim, a promessa de compra e venda deve preencher as especificações legais que constituem sua forma típica (conforme o estabelecido nos arts. 11 do Decreto-lei 58/1937 ou 26 da Lei 6.766/1979), deve estar revestido de irretratabilidade, deve estar quitada (neste sentido, existe entendimento jurisprudencial de que é admitido o depósito do valor restante na própria ação, sem a necessidade de ação consignatória anterior, conforme veremos mais adiante), bem como deve ser verificada a recusa, pelo promitente vendedor, em outorgar a escritura definitiva (neste caso, é fundamental sua comprovação mediante notificação).
Embora o registro prévio da promessa, consoante o disposto no art. 1.417 do Novo Código Civil, seja um dos requisitos para que o promitente comprador adquira o direito real de aquisição do imóvel, a jurisprudência, anteriormente à sua vigência, vinha entendendo não ser o registro necessário para a adjudicação compulsória, visto que a adjudicação compulsória é ação pessoal e o registro só é necessário para a produção de efeitos erga omnes, conforme a súmula 239 do STJ: “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de imóveis”, posição esta que entendemos plenamente compatível com a legislação em vigor, pois, caso contrário, ao ignorarmos um entendimento que somente foi atingido após muitos e muitos anos de árduas discussões pelos mais variados operadores do direito, e de incansáveis estudos realizados por nossos insignes magistrados, estaríamos regredindo no tempo, consentindo que todo esse esforço foi em vão.
Vejamos como o assunto é tratado pela jurisprudência:
Promessa de compra e venda. O registro imobiliário somente é imprescindível para a oponibilidade face aqueles terceiros que pretendam sobre o imóvel direito juridicamente incompatível com a pretensão aquisitiva do promitente comprador. Não é o caso do credor do promitente vendedor (STJ, 4º T, REsp 1310-SP, rel. Min. Athos Carneiro, v.u., j. 28.11.1989, DJU 18.12.1999, p. 18478).
Ainda que não comprovada, mediante recibos, ou outro documento do gênero, a quitação do preço ajustado na promessa de compra e venda, a adjudicação compulsória pode vir a ser acatada pelo judiciário, baseando-se na análise individualizada do caso concreto. Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AUSÊNCIA DE RECIBOS A DEMONSTRAR A QUITAÇÃO DO PREÇO AJUSTADO ENTRE AS PARTES LITIGANTES. CONSTATAÇÃO DE QUE O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA ENCONTRA-SE REGISTRADO DESDE 1978, SEM QUALQUER CONTESTAÇÃO DA PROMITENTE VENDEDORA. AS CONDIÇÕES DO CASO EM CONCRETO TORNAM SECUNDÁRIA A COMPROVAÇÃO DA REFERIDA QUITAÇÃO, POR MEIO DE RECIBOS DE PAGAMENTO, VIABILIZANDO-SE, ASSIM, A CONCESSÃO DA ADJUDICAÇÃO PLEITEADA. INVERSÃO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS. APELO PROVIDO. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70005125620, DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA, JULGADO EM 18/03/03).
Procedente a ação de adjudicação compulsória, será prolatada sentença constitutiva, suprimindo judicialmente um descumprimento de obrigação de prestar declaração de vontade, consistente na outorga da escritura definitiva.
Essa sentença não é considerada uma declaração de vontade. Tão somente possui a mesma eficácia que a declaração de vontade, caso praticada, produziria.
A sentença constitutiva de adjudicação compulsória é título hábil à transferência da propriedade ao patrimônio do promitente comprador, desde que registrada no Cartório imobiliário, substituindo a escritura definitiva cuja outorga foi negada pelo promitente vendedor.
Todavia, o registro da sentença, como título aquisitivo, poderá ser inviável, o que dará ao credor, como alternativa, a indenização por perdas e danos, ou, ainda, o caminho do usucapião, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto, em obediência ao disposto nos arts. 1.238 a 1.244 do Novo Código Civil, mais especificamente ao art. 1.242, ou poderá, ainda, o registro ser cancelado, devido a defeito formal do instrumento ou fraude, ensejando ao promitente comprador a possibilidade do usucapião prevista no parágrafo único deste último, que trata do usucapião ordinário.
Vejamos como o assunto é tratado em nossos Tribunais:
DESCRIÇÃO DE TÍTULO NÃO COINCIDENTE COM A DO REGISTRO DE IMÓVEIS. Quando a descrição original do imóvel for incerta, imprecisa e inexata, com risco de sobreposição total ou parcial do bem imóvel, não se autoriza o registro, por violação do princípio da especialidade (JTJ 207/348, 192/341).
QUEBRA DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. Enseja o cancelamento ex officio do registro (JTJ 304/139).
PROMESSA DE COMPRA E VENDA. DIREITO À AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO. Tendo direito a aquisição do imóvel, o promitente comprador pode exigir do promitente vendedor que lhe outorgue a escritura definitiva de compra e venda, bem como pode requerer ao juiz a adjudicação do imóvel. Segundo a jurisprudência do STJ, não são necessários o registro e o instrumento público, sejam para o fim da súmula 84, sejam para que se requeira a adjudicação. Podendo dispor de tal eficácia, a promessa de compra e venda, gerando direito a adjudicação, gera direito a aquisição por usucapião ordinário. (STJ, 3ª T, REsp 10038-MS, rel. Min. Nilson Naves, m.v., j. 19.3.1996, DJU 10.6.1996m p. 2030 – RT 732/181).
Caracteriza-se, assim, como forma derivada de aquisição da propriedade, haja visto que “há relação jurídica com o antecessor. Existe transmissão da propriedade de um sujeito a outro”.
Tendo em vista que a ação de adjudicação compulsória é constitutiva, onde, procedente, sua sentença tem eficácia executória, pois extingue a relação jurídica preexistente, não podemos confundi-la com a ação condenatória.
Inserida no gênero ação condenatória, está a espécie ação de preceito cominatório, que pode ser uma alternativa ao promissário comprador, ante a impossibilidade de ajuizamento da adjudicação compulsória, verificada a ausência de qualquer das condições específicas retro mencionadas, na qual o promitente vendedor será compelido a outorgar a escritura definitiva.
A outra hipótese que caracteriza o inadimplemento contratual do promitente vendedor é a recusa do mesmo em receber as prestações devidas pelo promitente comprador, avençadas na promessa de compra e venda, o que confere ao promitente comprador o direito de consignar o pagamento de tantas prestações quantas forem recusadas pelo promitente vendedor.
Tem, ainda, o promitente comprador, o direito de antecipar o pagamento integral do preço, cabendo ação consignatória no caso de recusa do promitente vendedor em receber os valores.
Antecipando o pagamento, o promitente comprador vê nascer seu direito de exigir a outorga da escritura definitiva. Para tanto, deverá estar em dia não só com as prestações, mas também com os impostos e taxas incidentes sobre o imóvel, visto que, desde que adquiriu amplos direitos sobre o mesmo, tornou-se o contribuinte ordinário dos encargos supra citados. Fundado no art. 52, § 2º do CDC, o promitente comprador tem direito à devolução ou liquidação proporcional dos juros e demais encargos incidentes sobre as parcelas vincendas, o que representa uma das maiores conquistas do consumidor com o advento do CDC.
O procedimento a ser seguido, tanto em um caso como no outro, é o do art. 890 do CPC, embora o art. 33 da Lei 6.766 preveja a possibilidade da consignação ser efetivada através da via administrativa, perante o Oficial do registro de imóveis, visto que, havendo discordância entre o valor consignado pelo promitente comprador e o valor que entende devido o promitente vendedor, o Oficial, face à sua incompetência para proporcionar o contraditório, deverá remeter o caso à apreciação do Juiz Corregedor Permanente, ou do Juiz da Vara de Registros Públicos, conforme o caso, que, por sua vez, havendo a necessidade de melhores provas ou perícias, ou, ainda, envolvendo questões mais profundas, remeterá as partes às vias ordinárias, parecendo-nos a primeira hipótese mais adequada, devido à sua maior eficácia.
3.7.2.INADIMPLEMENTO DO PROMITENTE COMPRADOR
Ocorre o inadimplemento contratual por parte do promitente comprador quando este deixa de saldar as prestações estipuladas na promessa de compra e venda.
Sendo inadimplida a promessa pelo promitente comprador, resta ao promitente vendedor a opção de intentar, em face daquele, ação de rescisão de promessa de compra e venda, respondendo o devedor por perdas e danos, mais juros e correção monetária, e pelos honorários advocatícios, conforme o art. 389 do Novo Código Civil, ressalvadas as hipóteses de caso fortuito e força maior, que eximem este último do pagamento de indenização (art. 393 do Novo Código Civil).
Cumpre lembrar que, previamente, o promitente comprador deverá ser constituído em mora, mediante notificação pelo promitente vendedor, em obediência aos arts. 32 da Lei 6.766, para imóveis loteados, e 1º do Dec.-lei 745, para imóveis não loteados, podendo, o primeiro, ainda, e desde que não rescindido o contrato, consignar o pagamento, caso o promitente vendedor se recuse a recebê-lo.
Tem, ainda, o promitente vendedor, o direito de reivindicar o imóvel do promitente comprador inadimplente, desde que rescindida a promessa e, se registrado, desde que cancelado o registro junto ao Cartório imobiliário, pois, enquanto vigorar o pré-contrato, e, ainda que rescindido, estiver registrado, portanto, em vigor perante a sociedade, é dizer, conferindo-lhe o efeito erga omnes, a posse do promitente comprador é boa e justa, acarretando ilegitimidade ao promitente vendedor para intentar ação reivindicatória.
4.A IMPORTÂNCIA DO REGISTRO IMOBILIÁRIO
Como primeira razão justificativa da importância do registro, podemos citar o fato de que o registro, no Direito pátrio, é constitutivo do direito real, conforme os artigos 1.227, 1.245 e 1.417 do Código Civil.
Rememoremos então alguns conceitos básicos de direitos reais.
Diz García García que “o direito real apresenta as notas de imediatividade e absolutividade, fazendo esta última referência à eficácia erga omnes do direito real. A eficácia erga omnes, isto é, a absolutividade, praticamente não se verificaria se não existisse a cognoscibilidade, é dizer, a possibilidade de conhecer os direitos e situações jurídico-reais através de um meio técnico, seguro e preciso de publicidade como é o Registro de Imóveis. O registro dota, assim, de publicidade, cognoscibilidade, eficácia erga omnes e, portanto, plena absolutividade o direito real. Impossível dizer que o direito real constitui-se plena e perfeitamente se não se dispõe da publicidade inerente à absolutividade. Essa publicidade só é plena e perfeita com o registro no Registro Imobiliário”. (Jose Manuel García García, Derecho inmobiliario registral o hipotecario. Madri: Civitas, 1993, t.II, p. 64).
O valor da publicidade registral é indenegável e sempre foi dessa maneira percebida pela doutrina. “A sua função no Direito consiste em tornar conhecidas certas situações jurídicas, principalmente quando se refletem nos interesses de terceiros”, apontou há muitos anos o tratadista de registros públicos Miguel Maria de Serpa Lopes (Tratado dos Registros Públicos, 5. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1962, v. I, p. 18).
A razão pura e simples a sustentar a necessidade do registro é o fato de que existem relações jurídicas que ultrapassam a esfera estrita das partes exigindo o respeito de terceiros, “sendo imperiosa a necessidade da criação de um órgão, de um sistema capaz de possibilitar esse conhecimento erga omnes” (Idem, ibidem).
É intrínseca aos direitos reais a necessidade de reconhecimento, e, principalmente, respeito geral por todos, das relações jurídicas que se estabelecem entre os homens e as coisas. Por esta razão é que, o sistema brasileiro, desde o advento do Código Civil de 1916, confere ao registro o efeito constitutivo do direito de propriedade, dos direitos reais limitados e de garantia, condicionando, pelo registro, a transmutação em plenos direitos reais.
Serpa Lopes assinala com o costumeiro acerto: “a publicidade protege e assegura, através do registro, duas ordens de interesses: o interesse social e o interesse privado. Quando em causa o primeiro, como em muitas relações atinentes ao estado civil, aos direitos reais, o Registro é obrigatoriamente imposto, mediante sanções. Por meio de seus órgãos competentes, o Estado intervém diretamente, assegurando, de um modo mais eficaz e imediato, o interesse coletivo. Se caráter privado e particular o interesse preponderante, o Registro é, em regra, facultativo, cingindo-se o interesse do Estado ao cumprimento das regras formais pertinentes ao mesmo, como, v.g., no caso de alguém levar a registro um documento simplesmente para garanti-lo contra qualquer perda ou extravio”. (Idem, ibidem).
Enquadrando claramente na legislação brasileira, o que o tratadista aponta, na vigente lei de registros públicos, por exemplo, há o registro facultativo, realizado para mera conservação e perpetuidade – registro de títulos e documentos, artigo 127, VII – e o registro obrigatório dos títulos elencados no artigo 167, incisos I e II. A obrigatoriedade vem confirmada no artigo 169 da mesma lei: “todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios”.
Pelo registro da promessa de compra e venda adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel (art. 1.417. Código Civil vigente). O registro é obrigatório (art. 169 c.c. arto. 167, I, 20).
Assim, tendo em vista a necessidade do registro, a fim de tornar o compromissário comprador titular de direito real, e sendo o registro obrigatório, por qual razão jurídica advogar-se-á o não-registro?
Walter Ceneviva aponta, de forma cristalina, a obrigatoriedade do registro, respondendo, quem não observar esse dever de ordem pública, pelos prejuízos a que der causa. E sentencia: “se o registro e a averbação são feitos (art. 172) para constituição, transferência e extinção de direitos, validade em relação a terceiros e garantia de disponibilidade, nenhum efeito pode ser obtido ou reclamado sem que o registro se complete” (Lei dos Registros Públicos comentada, 16. ed. São Paulo: Saraiva, p. 370).
Serpa Lopes indicava a obrigatoriedade do registro como elemento “substancial à própria relação jurídica em causa”. A ausência do registro, segundo ele, caracteriza uma “situação injurídica” (Opus cit., 4. ed., comentários ao artigo 179, 1961, v. IV, p. 311).
Realmente, a obrigatoriedade do registro é mera opção do legislador, publicada em 1916, contemplando o registro com o efeito constitutivo do direito real. Para combater a clandestinidade jurídica, a idéia da obrigatoriedade do registro está intrínseca na constitutividade.
Francesco Messineo, falando da publicidade do registro de títulos de aquisição, etc., faz uma análise do caráter dessa “obrigatoriedade”: pretende impedir transferências ocultas da riqueza imobiliária – propriedade imóvel – ou o nascimento de ônus ou gravames ocultos – hipotecas, servidões, enfiteuses, usufruto. Inexistindo um sistema registral, referidos direitos seriam válidos e eficazes – ainda que tais transações fossem ignoradas por terceiros. Mas, continua o autor, “exatamente por isso, tais transferências e ônus ocultos, à larga, paralisariam o comércio (circulação em sentido jurídico; em particular, a possibilidade de que os imóveis possam servir de garantia), em virtude da falta de certeza em que o terceiro adquirente se encontraria em face da condição jurídica de ditos bens (o chamado favor de circulação), em razão dos riscos a que se sujeitariam e ficariam expostos os terceiros sub-adquirentes se os títulos de aquisição não fossem cognoscíveis por eles”.
E continua Messineo: “Quem faça manifesta a própria aquisição mediante a publicidade (registro), segundo a finalidade da lei, cuja vontade é, precisamente, que sejam cognoscíveis de todos os deslocamentos e vicissitudes da riqueza imobiliária, isto é, quer estimular a formação do chamado ‘estado civil’ dos bens imóveis, que é a única maneira de dar a certeza da titularidade e disponibilidade dos direitos imobiliários e que proporciona, além do mais, notícia dos ônus que gravam os imóveis”. (Francesco Messineo, Manuale di diritto civile e comerciale. 8. ed. Milano: Dott. A. Giufrè, 1952, v. II p. 540-1).
O mesmo autor considera ainda que essa obrigação é, na verdade, um ônus que se impõe ao interessado.
Nem mesmo a jurisprudência atualmente dominante no Superior Tribunal de Justiça – admitindo a aposição de embargos de terceiros fundados em alegação de posse advinda da promessa de compra e venda de imóveis, ainda que desprovido de registro (súmula 84, Corte especial, julgado em 18/6/1993, DOU de 2/7/1993, p. 13.283) – tem o condão de afastar a necessidade social e econômica do registro.
O posicionamento da jurisprudência dominante, mirando as necessidades sociais, flexibiliza o entendimento expresso na súmula 621 do STF justamente porque exibe a informalidade, elevada à condição de fato social incontornável para a dispensa da prestação jurisdicional.
Além disso, vale lembrar que as questões postas à apreciação jurisdicional versam sobre uma disputa entre dois direitos pessoais – o direito do exeqüente em crédito quirografário e o direito do promissário comprador. Esse o verdadeiro sentido da jurisprudência do STJ, que, “sobrepujando a questão de fundo sobre a questão da forma, como técnica de realização da justiça” – como asseverou o ministro Luiz Fux no Ag. Rg. no agravo de instrumento 641.363-RS, e relembrando o voto do ministro Athos Carneiro no célebre voto exarado o REsp. 1.172/SP.
Cumpre-nos trazer à lembrança os votos que se tornaram paradigmas para decisões ulteriores.
Questionava o ministro Athos Carneiro: “entre as duas pretensões, a do credor, direito pessoal, e a do promitente comprador com justa posse, direito também pessoal, qual é aquela que merece maior tutela, maior proteção jurídica?” E logo responde o ministro com outra pergunta muito pertinente: “E a penhora, por sua vez, terá ela sido objeto de registro, de molde a ter eficácia perante terceiros? Creio mais conforme com as necessidades atuais do comércio jurídico a interpretação pela qual, no choque de interesses de dois direitos eminentemente pessoais (a própria penhora não é direito real, mas ato processual executivo), direito pessoal tanto um quanto outro, deve prevalecer, na via dos embargos de terceiro, o direito daquele que está na justa e plena posse do imóvel, como seu legítimo pretendente à aquisição, face ao direito do credor do promitente vendedor, desde que no caso ausente, por certo, qualquer modalidade de fraude a credores ou à execução. Esta orientação melhor se coaduna às realidades jurídico-sociais do nosso país, e impende sejamos sensíveis a estas realidades.” (Resp. 1.172/SP, relator ministro Athos Carneiro, DJ 16/4/90).
Note-se que, para essas exceções, tudo se reduz à custosa e demorada produção de provas e o enfrentamento de uma demanda judicial que pode se arrastar durante anos, com a possibilidade de duma frustração executiva como resultado.
Indiscutivelmente, a via jurisdicional, comparada à garantia da prova pré-constituída pelo registro, representa um remédio ineficaz, principalmente devido aos altos custos que a causa pode representar. É sobremaneira mais seguro, para todos os interessados, especialmente o exeqüente, contar com o suporte do registro para identificar claramente a situação jurídica do imóvel que vai ser objeto de discussão judicial.
Assim, estaríamos, caso defendêssemos a não obrigatoriedade do registro, retrocedendo até os primórdios dos atuais e avançados sistemas de publicidade (esta garantida através do registro), ignorando a evolução obtida mundialmente com mecanismos eficientes de publicidade, investindo na direção oposta, que é, com toda a certeza, muito mais custosa, demorada e onerosa, e, por conseguinte, ineficaz, trazendo menor segurança jurídica aos envolvidos em negociações imobiliárias.
5.CONCLUSÃO
Durante os estudos e pesquisas realizados no decorrer do presente trabalho, além das dúvidas iniciais, tais como a classificação do direito real do promitente comprador e a verificação dos remédios judiciais cabíveis no caso de descumprimento da promessa por qualquer das partes, muitas outras foram surgindo, como o enquadramento ou não da promessa de compra e venda na categoria de contrato preliminar, bem como sua comparação em relação à escritura definitiva de compra e venda e a classificação doutrinária do contrato preliminar, entre outras, trazendo à tona a necessidade de buscar novas obras e novos autores, para melhor elucidação das questões controvertidas, o que elevou, consideravelmente, a quantidade de obras efetivamente utilizadas nos estudos para a elaboração deste trabalho.
Acreditamos que nossas dúvidas restaram dirimidas com a conclusão dos estudos, cujos pontos principais passamos a aduzir:
1. O direito real do promitente comprador não é um novo direito real, mas tão somente uma novidade no âmbito do Código Civil, visto que o Dec.-lei 58 já conferia direito real ao promitente comprador de imóvel, desde que registrado a promessa;
2. O direito real do promitente comprador enquadra-se nesta categoria por atribuir ao promitente comprador a oposição, perante toda a sociedade (erga omnes), da sua situação jurídica de promissário adquirente;
3. O direito real do promitente comprador é modo derivado de aquisição da propriedade, visto a mesma ter sido transferida, por vontade própria, pelo titular anterior, conservando as mesmas características que possuía anteriormente, tanto suas qualidades como quaisquer ônus que pesem sobre o imóvel, inter vivos, e a título singular;
4. O direito real do promitente comprador classifica-se como direito real sobre coisa alheia sui generis, pois mescla um pouco do direito real de gozo e do direito real de garantia, tendo em vista que, enquanto não outorgada a escritura definitiva, o titular do domínio do imóvel continua sendo o promitente vendedor;
5. A promessa de compra e venda é contrato preliminar impróprio, por visar não uma nova manifestação de vontade que é o contrato definitivo, mas a ratificação do que foi avençado no pré-contrato, o que não o afasta da categoria de contrato preliminar;
6. A promessa de compra e venda, devidamente registrado, em tese, gera os mesmos efeitos que a escritura pública definitiva, pois transfere ao adquirente os poderes de uso, gozo e disposição sobre o bem, embora este último relativamente;
7. O contrato preliminar de compra e venda de imóvel apresenta-se como uma ótima opção nas transações imobiliárias, devido às suas características e efeitos, pois obriga as partes a contratar posteriormente, em momento mais oportuno, ou desejado, definitivamente a alienação de determinado imóvel;
8. Com relação aos remédios judiciais aplicáveis às questões que envolvam promessa de compra e venda de imóvel, existe uma variedade de procedimentos específicos a serem adotados conforme o caso concreto, variando desde o direito do promitente comprador de defender sua situação de adquirente perante terceiros, através do procedimento reivindicatório, até à proteção do adquirente de boa fé que, em tese, é a parte mais fraca da relação contratual, em relação ao vendedor, principalmente nos casos de imóveis loteados, onde o poder econômico do loteador é, normalmente, muito superior ao do adquirente, principalmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor, e à garantia do direito do promitente vendedor se defender contra o adquirente de má fé ou inadimplente;
9. Dentre todos os remédios judiciais apontados neste trabalho, constatamos que a ação de adjudicação compulsória se sobreleva em relação aos demais, haja visto que é o remédio judicial mais apto à satisfação do direito do promissário comprador, eis que é o procedimento mais célere para a efetiva transmissão da propriedade ao seu patrimônio, que é sua vontade inequívoca, ínsita no ato da celebrar a promessa de compra e venda.
10. Ainda relativamente aos remédios judiciais, verificamos que a inviabilidade do registro do título aquisitivo perante o Cartório imobiliário é considerada causa de pedir para usucapião ordinário, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto.
11. Por fim, no diz respeito ao Registro Imobiliário, apontamos que, embora não seja requisito essencial para a adjudicação compulsória, o registro da promessa de compra e venda é de suma importância, visto que resguarda os interesses do promitente comprador contra terceiros, pois reveste o negócio jurídico de oponibilidade erga omnes.
[1] Pontes de Miranda, Tratado de Direito Predial, v.III, 1948, p. 228.
[2] Orlando Gomes, Contratos, 2002, p. 140.
[3] Nelson Nery Junior, Código de Processo Civil Comentado, 2002, pp.762/763.
[4] Rubens Limongi França, Instituições de Direito Civil (Todo o Direito Civil Num Só Volume), 1999, p. 687.
[5] Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Direitos Reais, 2003, p. 174.
[6] Orlando Gomes, Direitos Reais, 2002, p. 1.
[7] Rubens Limongi França, op. cit., p. 539.
[8] Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro: 2º Volume: Teoria Geral das Obrigações, 2002, p. 3.