INDEFERIMENTO DO “PASSE LIVRE” ÀS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA MENTAL, QUE CONTRAÍRAM A ENFERMIDADE APÓS COMPLETAREM 18 (DEZOITO) ANOS DE IDADE: DESAFIO DOS MAGISTRADOS EM APLICAR A LEI E OS PRINCÍPIOS.


15/04/2015 às 14h32
Por Advocacia Emilia Belmonte

Introdução

Nesse trabalho trataremos sobre as lides levadas ao Judiciário baiano, em que são requerentes do ‘passe livre’ deficientes mentais, que contraíram a doença após completarem dezoito anos de idade. Isto porque, de acordo com o permissivo legal, apenas as pessoas que ficaram enfermas antes dos dezoito anos teriam direito ao sobredito benefício.

A abordagem será destrinchada sob a ótica da interpretação dos princípios constitucionais, notadamente o da isonomia e da dignidade da pessoa humana, bem como dos tratados que versam sobre o tema, do qual o Brasil é signatário e que ingressou em nosso Ordenamento Jurídico com o status de Emenda Constitucional e de norma supralegal.

Sendo assim, necessário que se faça o seguinte questionamento: É jurídico e socialmente correto tolher o direito à gratuidade no transporte público urbano das pessoas portadoras de deficiência mental quando, por ocasião da remissão que faz a Lei Reguladora do acesso aos transportes públicos de Salvador (Lei 7201/2007) ao Decreto Federal 5296/2004, só fazem jus à referida gratuidade aquelas pessoas que contraíram a doença antes de completar 18 (dezoito) anos de idade?

Para responder à pergunta acima, partimos da hipótese de que é incorreto tolher a gratuidade nos transportes públicos de Salvador dos deficientes mentais que contraíam a enfermidade após os 18 anos de idade, eis que os magistrados devem resolver as lides não apenas lastreados no texto literal da lei, mas apoiados, sobretudo, numa interpretação sistemática e teleológica destas, sem olvidar dos princípios.

A escolha do tema derivou do interesse despertado durante o estágio na Defensoria Pública do Estado da Bahia, em decorrência dos inúmeros processos judiciais estudados, em que o município de Salvador se recusava a conceder o passe livre às pessoas portadoras de deficiência, pelo esdrúxulo fundamento de que o Decreto Federal nº 5296/2004 não concede o referido benefício àqueles que contraíram a enfermidade após os 18 (dezoito) anos de idade. Em adição a isto, acrescente-se o incentivo recebido pelo Professor Dr. Gabriel Marque, durante as orientações para a elaboração do Trabalho Científico da pós-graduação, ao percebermos que o tema apresenta ineditismo, originalidade e pragmatismo.

Pela necessidade de comprovar as hipóteses suscitadas, utilizamos o método hipotético-dedutivo de Karl Popper[1]. Fizemos, também, um levantamento bibliográfico, utilizando como marco teórico os livro A Era dos Direitos e Teoria da Norma Jurídica, de Noberto Bobbio, assim como os livros O Império do Direito e Levando os Direitos a Sério, de Ronald Dworkin. Revisamos os manuais e livros de direito que versassem sobre o assunto, dentre os quais, podemos citar A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização, Gustavo Binenbojm, Direito Constitucional, de Paulo Bonavides, Manual de Direito Internacional Público, de Hildelbrando Accioly, Teoria dos Princípios, de Humberto Ávila.

Nessa perspectiva, apresenta-se agora a conjuntura que demonstrará a necessidade de que seja deferido o “passe livre” aos portadores de deficiência mental, que tenham contraído a doença após os 18 (dezoito) anos de idade.

{C}1. Noções propedêuticas

A Constituição da República Federativa do Brasil outorga a competência para legislar acerca dos transportes públicos municipais aos próprios municípios. Vejamos na íntegra:

“Art. 30 - Compete aos Municípios:

(...)

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;”

Neste ínterim é que, o município de Salvador promulgou as Leis municipais n° 7.201/2007, que disciplina o acesso aos transportes coletivos e a Lei nº 8457/2013, que dispõe sobre a recarga online do Salvador Card. Ademais, tratou das questões relativas ao transporte público na própria Lei Orgânica, conforme abaixo transcrito:

Capítulo VI - DO TRANSPORTE

Art. 241. Os planos de transportes devem priorizar:

I - o atendimento à população de baixa renda;

Art. 247. Fica assegurada a gratuidade nos transportes coletivos urbanos:

I - aos maiores de sessenta e cinco anos, mediante apresentação de documento oficial de identificação;

II - aos policiais militares, quando fardados, limitados a dois por veículo;

III - aos deficientes, visual, mental e físico de coordenação motora, comprovadamente carentes, previamente autorizados pelo Conselho Municipal de Deficientes e o Órgão Gestor dos Transportes Urbanos. Parágrafo Único. Fica mantida a meia passagem para os estudantes regularmente matriculados nos estabelecimentos das redes pública e privada, devidamente reconhecidos. (grifos não no original)

Regulamentando o artigo 247 da Lei Orgânica de Salvador, acima transcrito, a Lei municipal 7201/2007 acentua que:

Art. 2° - omissis

§ 1° - Será considerada pessoa com deficiência. para efeito de gratuidade no Sistema de Transporte Coletivo por Onibus de Salvador – STCO, o previsto no art. 247, da Lei Orgânica do Município em combinação com os critérios dispostos no art. 5º do Decreto Federal n° 5296/2004. (grifos não no original)

Cite-se, por oportuno, o art. 5º do Decreto Federal, a que faz referência a Lei Municipal de Salvador e é objeto de impugnação do presente trabalho científico:

Art. 5º omissis

§ 1º Considera-se, para os efeitos deste Decreto:

I – [...]

a) [...]

b) [...]

c) [...]

d) DEFICIÊNCIA MENTAL: FUNCIONAMENTO INTELECTUAL SIGNIFICATIVAMENTE INFERIOR À MÉDIA, COM MANIFESTAÇÃO ANTES DOS DEZOITO ANOS E LIMITAÇÕES ASSOCIADAS A DUAS OU MAIS ÁREAS DE HABILIDADES ADAPTATIVAS, TAIS COMO:

1. comunicação;

2. cuidado pessoal;

3. habilidades sociais;

4. utilização dos recursos da comunidade;

5. saúde e segurança;

6. habilidades acadêmicas;

7. lazer; e

8. trabalho;

e) [...](grifos não no original)

Com espeque no disposto no artigo acima transcrito, alguns magistrados, que compõem o Judiciário baiano, têm indeferido o transporte gratuito aos portadores de deficiência ao fundamento de que o Decreto Federal apenas confere tal direito àqueles que contraíram a deficiência antes de completar 18 (dezoito) anos. Vejamos, pois:

AÇÃO ORDINÁRIA. PRETENSÃO DE BENEFÍCIO DO PASSE LIVRE, NO SISTEMA DE TRANSPORTE COLETIVO DO MUNICÍPIO DE SALVADOR. RECURSO DE APELAÇÃO. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE. VALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO COMBATIDO. INOCORRÊNCIA DE CERCEAMENTO DE DIREITO DE DEFESA. PRELIMINARES REJEITADAS. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DE LEI ESTADUAL Nº.7201/2007 E DECRETO Nº 5296/2004. SENTENÇA PROFERIDA EM CONSONÂNCIA COM ELEMENTOS CARREADOS PARA OS AUTOS E LEGISLAÇÃO EM VIGOR. RECURSO IMPROVIDO. É válido o ato administrativo que, com base em laudo pericial emitido por autoridade competente, indefere pedido de concessão de gratuidade de transporte Municipal. Não é nula a sentença que julga antecipadamente a lide, ante a presença de elementos suficientes ao convencimento do Julgador, tornando desnecessária a produção de outras provas, em atenção aos princípios da economia e celeridade processual, sem configuração de cerceamento do direito de defesa, vigorando o princípio do Livre Convencimento. Inoportuna a arguição de incidente de inconstitucionalidade, por inovar a lide. Inacolhível a pretensão de gratuidade do transporte coletivo Municipal, sem comprovação da condição de deficiência física ou mental nos termos da Lei Nº 7.201/2007 e do Decreto nº 5296-2004. A constatação de retardo mental leve, posterior aos 18 anos, sem a comprovação de limitação associada a duas ou mais aéreas de habilidades adaptativas não autoriza concessão da gratuidade do transporte Municipal, destoando dos requisitos estabelecidos no Decreto Federal nº 5.296/2004 art. 5º § 1º "a" e “d”. A existência de mobilidade reduzida, decorrente de rigidez articular de membro superior, não configura deficiência física nos termos da legislação em vigor, (Apelação 0060414-97.2010.8.05.0001; Relator(a) Lícia de Castro L. Carvalho; Quarta Câmara Cível – TJ/BA)[2] (grifos não no original)

Todavia, outra parcela de magistrados tem concedido o benefício aos portadores de necessidades especiais, entendendo que se assim não fizesse, estaria afrontando os princípios constitucionais, especialmente quando restar comprovada a carência financeira e a deficiência mental, independentemente da idade em que a doença se manifestou, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DEFICIÊNCIA MENTAL. TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL. GRATUIDADE. PRELIMINAR: CERCEAMENTO DE DEFESA – REJEITADA. MÉRITO. BENEFÍCIO PREVISTO EM LEI ESPECÍFICA. REQUERENTE DIAGNOSTICADA COM DEFICIÊNCIA MENTAL. RETARDO MENTAL MODERADO – CID 10 – F 71.8 E CID 10 G 40. CARÊNCIA ECONÔMICA COMPROVADA. SENTENÇA A QUO QUE JULGOU IMPROCEDENTE O PLEITO. APELO PROVIDO. 1. A preliminar de cerceamento de defesa arguída pela Apelante, em razão de não haver o Magistrado de piso deferido o pleito para realização de perícia médica não merece ser acolhida, uma vez que cabe ao Magistrado, e só a ele, analisar o conjunto probatório acostado aos autos e aferir se suficiente ou não para formação de seu convencimento. Preliminar rejeitada. 2. Na hipótese dos autos resta comprovado que a Apelante é portadora de deficiência mental, tal como se pode constatar do atestado médico fornecido por profissional do Hospital Juliano Moreira, especializado no tratamento de doenças e deficiências mentais, explicitando de forma clara tratar-se de pessoa portadora de retardo mental moderado e outros comprometimentos do comportamento (CID 10 F71.8 e CID G 40), além de ser carente de recursos financeiros. 3. In specie, o direito ao transporte gratuito foi negado à apelante sob a alegação de que seu quadro não se enquadraria na legislação específica para o deferimento do benefício (Decreto Federal 5296/2004). 4. O Decreto Federal n. 5296/2004 não deve ser interpretado de forma restritiva sob pena de violação ao princípio da isonomia, razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Não se pode negar o direito da Apelante ao acesso a transporte municipal gratuito, apenas em razão da alegação de que sua doença manifestou-se após os 18 anos. 5. Não se vislumbra a possibilidade de indeferimento do benefício à recorrente, sob pena de afronta aos princípios constitucionais acima referenciados, mormente porque restou comprovada sua deficiência mental e carência financeira. 6. Apelo provido. (0103567-20.2009.8.05.0001 Apelação; Desembargadora Márcia Borges Faria; Quinta Câmara Cível)[3]

Outra gama de desembargadores, entretanto, no afã de alcançar a justiça e praticar o melhor direito, têm reformado as decisões prolatadas pelo juízo de primeiro grau, ao argumento de que, não obstante o decreto mencione que a doença mental, com manifestação antes dos 18 anos, é a que vale para efeitos da concessão da gratuidade, ele não determina o momento em que esta deve ser atestada, conforme se vê na disposição jurisprudencial colacionada infra:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. GRATUIDADE. DEFICIENTE MENTAL. CARÊNCIA FINANCEIRA. MAIOR DE 18 ANOS. POSSIBILIDADE. DIREITO A ACOMPANHANTE. DECISÃO REFORMADA. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Trata-se de agravo de instrumento interposto por Maria Reisinha dos Santos Santana contra decisão do MM. "a quo" que, em ação de obrigação de fazer, indeferiu o pedido de gratuidade de transporte formulado em sede de antecipada dos efeitos da tutela, por considerar imprescindível uma maior dilação probatória, com perícia judicial, para o deslinde da controvérsia. 2. Na hipótese vertente, dúvidas não há da prevalência da tutela jurisdicional quanto ao dever do Estado em prestar todo o auxílio possível aos cidadãos atingidos, sendo desnecessário perícia judicial, quando o suporte documental já anexadas aos autos dão conta da real necessidade da concessão da medida, ao menos em sede liminar, razão pela qual se impõe o deferimento da tutela antecipada, com base na Lei Municipal n° 7.201/2007 e pelo Decreto Federal nº 5.296/2004. 3. A agravante necessita do transporte coletivo gratuito em decorrência de estar acometida de transtorno depressivo, atualmente considerada pela classe médica como doença psiquiátrica, conforme perícia médica apresentada pela Secretaria Municipal de Transportes – SETIN, bem como doenças ortopédicas degenerativas, sendo-lhe negado o benefício, tão somente, porque manifestada na fase adulta (fl. 42). 4. Muito embora a legislação mencione que a doença mental, com manifestação antes dos 18 anos, é a considerada para efeitos do supramencionado Decreto, inexiste qualquer menção ao momento em que ela deve ser atestada. Além disso, é patente a demonstração da necessidade da agravante. 5. Agravo conhecido e provido (0006701-11.2013.8.05.0000 Agravo de Instrumento; Relator(a): Rosita Falcão de Almeida Maia; Terceira Câmara Cível)[4] (grifos nossos)

É notório que o papel do magistrado no momento da análise do caso posto a sua apreciação e de sua subsunção à lei é de elementar importância, eis que a maneira como ele irá interpretar e aplicar a norma jurídica poderá conduzir a sociedade à integração social, ou segregá-la, desamparando aqueles que mais precisam do apoio estatal.

Com efeito, passa-se agora a analisar possibilidades para aplicação do Direito às lides trazidas à apreciação do Judiciário, que versam sobre o deferimento da gratuidade nos transportes públicos às pessoas portadoras de deficiência quando, por ocasião da remissão que faz a Lei Reguladora do acesso aos transportes públicos de Salvador (Lei 7201/2007) ao Decreto Federal 5296/2004, só fariam jus à referida gratuidade aquelas pessoas que contraíram a doença antes de completar 18 (dezoito) anos de idade.

{C}2. Quem são os deficientes mentais

A definição de deficiência mental está intimamente ligada ao contexto socioeconômico em que ela é elaborada. Em tempos passados, em que a higidez mental era um fator moralmente preponderante diante de todos os outros, as crianças deficientes mentais eram abandonadas para que morressem aos poucos.

No século XV, as ideologias burguesas fizeram com que o deficiente mental passasse a ser considerado como improdutivo, pois se visava apenas o lucro capital. Todavia, com o passar do tempo, o estudo científico foi se abrangendo e o deficiente mental passou a ser objeto de diversas análises. Ele passou a ser estudado sob a ótica medicinal, educacional, metafísica, sociológica, dentre outras.

Em 1980, a OMS elaborou três classes para constatar as deficiências, quais sejam: deficiência, incapacidade e desvantagem social. A deficiência era compreendida como a perda ou anormalidade das funções anatômicas, psicológica e fisiológica, seja permanente ou temporária. A incapacidade podia ser conceituada como uma restrição decorrente de uma deficiência. A desvantagem social, por fim, consistiria em um prejuízo decorrente da incapacidade ou da deficiência que impediria o indivíduo de desempenhar determinados papéis na sociedade.[5]

Em 2001, houve uma alteração de denominações e a terminologia “pessoa deficiente” foi substituída por “pessoa em situação de deficiência”. O Decreto nº 3.956/2001, que incorporou a Convenção de Guatemala à Constituição Federal, fomentou a adoção da nova terminologia, ao definir deficiência como [...] “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social”.

A referida Convenção propôs, ainda, o conceito de discriminação, in verbis:

“o termo "discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.” (Artigo I, 2, a, do Decreto nº 3.956/2001)

Paira, nos dias atuais, uma grande complexidade para que se possa diagnosticar a deficiência mental. Isto tem ocasionado uma constante alteração de seu conceito. Por muito tempo, o critério utilizado para determinação dos casos era o do coeficiente de inteligência (QI). Todavia, com o amadurecimento advindo dos estudos científicos e da experiência prática, percebeu-se que o diagnóstico da deficiência não deveria se limitar por determinadas categorias de inteligência.[6]

A Psicanálise revela, na dimensão do inconsciente, um importante fator que trata dos processos psíquicos na averiguação de diversas patologias, entre elas a deficiência mental. Assim, Freud conceituou inibição como uma limitação para algumas atividades, que pode ser atribuída a uma barreira que incide sobre algumas funções, como o pensamento:

Na descrição das manifestações patológicas, o uso linguístico permite-nos distinguir sintomas de inibições, sem, contudo, atribuir-se grande importância à distinção. Na realidade, dificilmente poderíamos pensar que valeria a pena diferenciar exatamente entre os dois, não fosse o fato de encontrarmos moléstias nas quais observamos a presença de inibições mas não de sintomas, e ficamos curiosos para saber a razão disso.

Os dois conceitos não se encontram no mesmo plano. A inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente uma implicação patológica. Podemos muito bem denominar de inibição a uma restrição normal de uma função. Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso linguístico, portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta. Muito amiúde parece ser o assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado positivo de um processo patológico e chamemos o seu resultado de sintoma, quer ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado de inibição. Mas tudo isso é realmente de pouco interesse e o problema, conforme o enunciamos, não nos leva muito longe.

Visto que o conceito de inibição se acha tão intimamente associado com o da função, talvez fosse valioso examinar as várias funções do ego com vistas a descobrir as formas que qualquer perturbação dessas funções assume em cada uma das diferentes afecções neuróticas. Tomemos para um estudo comparativo dessa natureza a função sexual e as do comer, da locomoção e do trabalho profissional.

(a) A função sexual está sujeita a grande número de perturbações, a maioria das quais exibe as características de inibições simples. Estas são classificadas em conjunto como impotência psíquica. O desempenho normal da função sexual só pode ocorrer como resultado de um processo muito complicado, podendo surgir distúrbios em qualquer ponto do mesmo. Nos homens as principais fases nas quais a inibição ocorre são reveladas por: um afastamento da libido no próprio início do processo (desprazer psíquico); ausência de preparo físico para ela (falta de ereção); abreviação do ato sexual (ejaculatio praeox), ocorrência que pode ser considerada como um sintoma; uma suspensão do ato antes de haver chegado à sua conclusão natural (ausência de ejaculação); ou o não surgimento do resultado psíquico (falta de sensação de prazer no orgasmo). A partir da função sexual, surgem outras perturbações que se tornam dependentes de condições especiais de natureza pervertida ou fetichista.

Que existe uma relação entre a inibição e a ansiedade é algo evidente. Algumas inibições obviamente representam o abandono de uma função porque sua prática produziria ansiedade. Muitas mulheres manifestadamente temem a função sexual. Classificamos essa ansiedade sob a histeria, do mesmo modo como fazemos em relação ao sistema defensivo da repulsa que, surgindo originalmente como reação preterida à experiência de um ato sexual passivo, aparece depois sempre com a ideia de tal ato é apresentada. Além disso, muitos atos obsessivos vêm a ser medidas de precaução e de segurança contra experiências sexuais, sendo assim de natureza fóbica. Isto não é muito ilustrativo. Podemos apenas observar que as perturbações da função sexual são acarretadas por grandes variedades de meios. (1) a libido pode simplesmente ser afastada (isto parece produzir, com a maior rapidez, o que consideramos uma inibição pura e simples); (2) a função pode ser executada de forma menos perfeita; (3) pode ser prejudicada por ter condições ligadas a ela, ou modificada pelo desvio para outras finalidades; (4) pode ser impedida por medidas de segurança; (5) se não puder ser impedida desde o início, pode ser imediatamente interrompida pelo aparecimento da ansiedade; e (6) se for, não obstante, levada a efeito, poderá haver uma subsequente reação de protesto contra ela e uma tentativa de desfazer o que foi feito.

{C}(a) {C}A função da nutrição é, com maior frequência, perturbada por uma falta de inclinação para comer acarretada por uma retirada da libido. Um aumento do desejo de comer também não constitui coisa incomum. A compulsão para comer é atribuída ao medo de morrer de forme, mas isto é um assunto pouco estudado. O sintoma de vômitos é conhecido por nós como uma defesa histérica contra o comer. A recusa de comer devido à ansiedade é concomitante de estados psicóticos (delírios de ser envenenado).

{C}(b) {C}Em algumas condições neuróticas a locomoção é inibida por uma indisposição para andar ou por uma fraqueza no caminho. Na histeria haverá uma paralisia do aparelho motor, ou essa função especial do aparelho será abolida (abasia). Especialmente características são as dificuldades maiores que surgem na locomoção devido à introdução de certas estipulações cuja inobservância resulta em ansiedade (fobia).

{C}(c) {C}Na inibição no trabalho – fato com o qual tantas vezes temos de lidar como um sintoma isolado em nosso trabalho terapêutico – o indivíduo sente uma diminuição do seu prazer nele, ou se torna menos capaz de realiza-lo bem, ou então experimenta certas reações no tocante ao mesmo, como a fadiga, a tontura ou o enjôo, se for obrigado a prosseguir com o mesmo. Se for histérico, terá que desistir do trabalho devido ao aparecimento de paralisias orgânicas e funcionais que lhe tornam impossível continuar. Se for um neurótico obsessivo, será perpetuamente distraído de seu trabalho ou perderá tempo com o mesmo pela intromissão de delongas e repetições.

Nosso estudo pode ser estendido também a outras funções, mas não haveria nada mais a aprender agindo-se dessa forma, pois não devemos penetrar abaixo da superfície das manifestações a nós apresentadas. Passemos então a descrever a inibição de forma a deixar muito pouca dúvida sobre o que se quer dizer com ela, e digamos que a inibição é a expressão de uma restrição de uma função do ego. Uma restrição dessa espécie pode ter causas muito diferentes. Alguns dos mecanismos em jogo nessa renúncia à função são bem conhecidos por nós, como o é certa finalidade geral que a rege.

Essa finalidade é mais facilmente reconhecível nas inibições específicas. A análise revela que quando atividades como tocar piano, escrever ou mesmo andar ficam sujeitas a inibições neuróticas, isso ocorre porque os órgãos físicos postos em ação – os dedos ou as pernas – se tornaram erotizados de forma muito acentuada. Descobriu-se como ato geral que a função do ego de um órgão fica prejudicada se a sua erotogeneidade – sua significação sexual – for aumentada. Comporta-se, se me permitem uma analogia um tanto absurda, como uma empregada doméstica que se recusa a continuar cozinhando porque o patrão iniciou um caso amoroso com ela. Logo que o escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo para um pedaço de papel branco, assume o significado de copulação, ou logo que o andar se torna um substituto simbólico do pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como o andar são paralisados porque representam a realização de um ato sexual proibido. O ego renuncia a essas funções, que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter de adotar novas medidas de repressão – a fim de evitar entrar em conflito com o id.

Existem também claramente inibições que servem à finalidade de autopunição. Este é amiúde o caso em inibições de atividades profissionais. Não se permite ao ego levar a efeito essas atividades, porque trariam êxito e lucro, e isso são coisas que o servero superego proibiu. Assim o ego desiste também delas, a fim de evitar entrar em conflito com o superego.

As inibições mais generalizadas do ego obedecem a um mecanismo diferente de natureza simples. Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias de energia à sua disposição que tem de reduzir o dispêndio da mesma em muitos pontos ao mesmo tempo. Fica na posição de um especulador cujo dinheiro ficou retido em suas várias empresas. Deparou-se-me por acaso um exemplo instrutivo dessa espécie de inibição geral intensa, embora efêmera. O paciente, um neurótico obsessivo, era dominado por uma fadiga paralisante que durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente devia tê-lo enfurecido. Temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a uma compreensão da condição geral que caracteriza estados de depressão, inclusive as mais graves de suas formas, a melancolia.

No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele.[7]

Nesta linha de intelecção psicanalítica, Lacan traz a debilidade para definir uma maneira específica de o indivíduo trabalhar com o saber, podendo ser natural a ele, eis que todos os indivíduos têm algo que não conseguem ou não querem saber. Por outro lado, ele define a debilidade como uma patologia, quando o indivíduo se põe numa posição débil, de total recusa à dominação do saber.[8]

Já no ramo da Sociologia, o sociólogo Erving Goffman elaborou um conceito matriz – a estigmatização, para demonstrar o efeito gerado quando se coloca aquele que é ‘diferente’ perante as demais pessoas, culminando numa total descrença e reprovação por conta da disparidade.

Enquanto o estranho está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser – incluído, sendo até de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considera-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real. Observe-se que há outros tipos de discrepância entre a identidade social real e a virtual como, por exemplo, a que nos leva a reclassificar um indivíduo antes situado numa categoria socialmente prevista, colocando-o numa categoria diferente, mas igualmente prevista e que nos faz alterar positivamente a nossa avaliação. Observe-se, também, que nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o esteriótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.(...)[9]

Nesta senda, o referido autor define o sujeito estigmatizado e o classifica de três modos, conforme se verá abaixo:

O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela não é conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles? No primeiro caso, está-se lidando com a condição do desacreditado, no segundo com a do desacreditável. Esta é uma diferença importante, mesmo que um indivíduo estigmatizado em particular tenha, provavelmente, experimentado ambas as situações. Começarei com a situação do desacreditado e passarei, em seguida, a do desacreditável, mas nem sempre separarei as duas.

Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – as várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, inclusive aqueles que os gregos tinham em mente, encontravam-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim chamados normais.[10]

Conclui o referido sociólogo:

A característica central da situação de vida do indivíduo estigmatizado pode, agora, ser explicada. É uma questão do que é com frequência, embora vagamente, chamado de “aceitação”. Aqueles que têm relações com ele não conseguem lhe dar o respeito e a consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que ele havia previsto receber; ele faz eco a essa negativa descobrindo que alguns de seus atributos a garantem. [11]

Corroborando com o entendimento explanado, em sua obra acerca do Estranho, Freud constatou que o indivíduo repudia tudo aquilo que desconhece, vez que preza pelo conservadorismo. Em uma instituição educacional, verbi gratia, o incentivo apenas aos alunos com melhor desempenho fortalece o preconceito e a discriminação relativa aos alunos em situação de deficiência mental.[12]

Note-se que há uma grande dificuldade de conceituar a deficiência mental por conta do temor que se tem da diferença e do desconhecido. Isto tem levado a uma grande discriminação contra todas as pessoas com deficiência, mas principalmente contra aquelas com deficiência mental.

É cediço que a perquirição acerca da deficiência mental não se exaure no campo da condição intelectual ou orgânica, devendo ser analisada sob todas as esferas do conhecimento. Organicamente, diz-se haver uma diferenciação entre doença mental, que consiste nos diagnósticos de psicose e psicose precoce e na deficiência mental, que se manifesta nas crianças tenras em período escolar.

A Psiquiatria, por seu turno, define deficiência mental como a redução da capacidade intelectual de um indivíduo e pode ser designada como retardo mental ou oligofrenia. A oligofrenia consiste em um déficit de inteligência e subdivide-se em idiotia, imbecilidade e debilidade, enquanto que o retardo mental está ligado a um nível mental pouco elevado, em que duas das funções cognitivas de adaptação, QI de 70 anos ou menos e ter se manifestado antes dos 18 (dezoito) anos.[13]

Para a AAMR (American Association on Mental Retardation), a deficiência mental está ínsita a um perceptível retardo no desenvolvimento neuropsicomotor, manifestado antes dos 18 anos de idade. O critério etário é importante apenas para que se distinga o retardo mental das demais demências.[14]

Neste viés, o Ministério da Educação (MEC) resolveu seguir o modelo proposto pela Associação Americana de Deficiência Mental (AAMR) para definição da deficiência mental, segundo o qual a Deficiência Mental se caracteriza pelo:

"funcionamento intelectual geral significativamente abaixo da média, oriundo do período de desenvolvimento, concomitante com limitações associadas a duas ou mais áreas da conduta adaptativa ou da capacidade do indivíduo em responder adequadamente às demandas da sociedade, nos seguintes aspectos: comunicação, cuidados pessoais, habilidades sociais, desempenho na família e comunidade, independência na locomoção, saúde e segurança, desempenho escolar, lazer e trabalho". (MEC, 1997, p. 27)[15]

Importante salientar que o critério trazido pela AAMR (American Association on Mental Retardation), envolvendo a manifestação antes ou depois dos 18 (dezoito) anos diz respeito apenas à distinção entre retardo mental e demais demências. Não sendo salutar desamparar aqueles que sofrem da enfermidade, só porque a contraíram depois dos 18 (dezoito) anos de idade.

Segundo a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York em 2007, pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.[16]

Já o decreto federal, afrontado no bojo deste trabalho científico, conceitua deficiência mental como sendo o funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1.comunicação; 2.cuidado pessoal; 3.habilidades sociais; 4.utilização dos recursos da comunidade; 5.saúde e segurança; 6.habilidades acadêmicas; 7.lazer; e 8.trabalho.

Ora, ainda que houvesse uma classificação científica envolvendo a manifestação da deficiência mental antes ou depois dos 18 (dezoito) anos de idade, ela jamais poderia ser usada como argumento para que as pessoas com deficiência mental maiores de 18 (dezoito) anos não tivessem direito ao passe livre, pois isso seria uma total afronta ao princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

{C}3. A exclusão social sofrida pelos portadores de deficiência.

Em tempos passados, a única função desempenhada pelas pessoas “especiais” era de palhaço ou de bobo, com o objetivo de entreter os demais.[17]

A Bíblia, no Antigo Testamento, faz referência a indivíduos com demência e outras deficiências, sendo grande parte deles mendigos e rejeitados pela sociedade, seja pelo medo da doença, seja porque se acreditava que Deus estava punindo-os (Levítico 21: 17-20). Estes indivíduos sobreviviam a partir das migalhas ofertadas pelos sãos.

Com o surgimento do Cristianismo, todavia, todas as pessoas passaram a ser consideradas de maneira homogênea, como filhas de Deus, independentemente de suas características e deficiências físicas ou mentais, merecedoras, portanto, de afeição, porque se passou a entender que Deus não faz acepção de pessoas (Atos 10:34)

Infere-se, deste jeito, que o tratamento despendido aos portadores de necessidades especiais estava associado às crenças religiosas e metafísicas, de acordo como pensava a sociedade da época.

Assim, no século XVI, com a Revolução Burguesa, ocorreu a revolução das convicções, passando-se a entender como elemento causal da deficiência, os infortúnios naturais. Por conseguinte, as deficiências começaram a ser tratadas através da Alquimia, da Astrologia, e da principiante Medicina, fazendo com que novas ideias fossem elaboradas na Filosofia e na Educação.

Necessário elucidar a forma como o deficiente mental se enquadra na sintemática social do mercado de trabalho nos dias hodiernos, que visa à produtividade acima de tudo, do ambiente acadêmico e de lazer.

Doutrinariamente, foi criada a diferenciação dos indivíduos normais (dentro do padrão comum) e os estigmatizados (diferentes e anormais). A implicância dessa bifurcação é muito bem tratada por Goffman, litteris:

Por definição é claro, acreditamos que alguém com estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminação, através das quais efetivamente e, muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria de estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo, racionalizando algumas vezes uma animosidade, baseada em outras diferenças, tais como as de classe social.[18]

É dentro da classificação de estigmatizados que se encaixam os deficientes mentais, pois em meio às suas singularidades fogem daquilo que é padrão, de modo que são colocados à margem dos “comuns”.

Com o intuito de romper com os paradigmas discriminatórios, Sassaki apresenta uma solução:

Pela inserção pura e simples daquelas pessoas com deficiência que conseguiram ou conseguem, por méritos pessoais e profissionais próprios, utilizar os espaços físicos e sociais, bem como seus programas e serviços, sem nenhuma modificação por parte da sociedade, ou seja, da escola comum, da empresa comum, do clube comum, etc. Pela inserção daqueles portadores de deficiência que necessitavam ou necessitam de alguma adaptação específica no espaço físico comum ou no procedimento da atividade comum a fim de poderem, só então, estudar, trabalhar, ter lazer, enfim, conviver com pessoas não- deficientes. Pela inserção de pessoas com deficiência em ambientes separados dentro dos sistemas gerais. Por exemplo: escola especial junto à comunidade; classe especial numa escola comum; setor separado dentro de uma empresa comum; horário exclusivo para pessoas deficientes num clube comum etc. Esta forma de integração, mesmo com todos os méritos, não deixa de ser segregativa.[19]

Paralelo à rotineira exclusão, da qual já padecem os deficientes mentais, lamentável ver o trantorno que lhes causa o orgão responsável pelo tranporte público urbano de Salvador quando estes tentam adquirir o “passe livre”.

A Constituição Federal de 1988 trouxe, de forma inédita, a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República. O princípio da igualdade, por sua vez, ganha nova roupagem, significando que se deve tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desicualdad para diminuir suas diferenças.

{C}3.1 {C} Da exclusão sofrida por portadores de outras deficiências

Importante trazer à baila, que os deficientes físicos domiciliados no Rio de Janeiro sofreram com questão similar, porquanto a Permissionária negava o passe livre nos transportes públicos, ao argumento de que não havia fonte de custeio, que suprisse esta gratuidade. Em cumprimento do seu dever constitucional, o Ministério Público deste estado ajuizou Ação Civil Pública, pugnando que o órgão julgador determinasse a implantação do transporte gratuito para os portadores de deficiência mental. Neste viés, decidiu o Colendo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. PRETENSÃO DE DETERMINAÇÃO À PERMISSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO PARA O TRANSPORTE GRATUITO DE PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA MENTAL. IMPROVIMENTOAO RECURSO. I – Nos termos do art. 203, IV, da Constituição Federal, ‘a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos (…) a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; (...)’. O transporte dos deficientes físicos promove a sua integração à vida comunitária e o Colendo Supremo Tribunal Federal através de seu venerando Tribunal Pleno, julgando a ADI 3768/DF, na qual foi relatora a eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, em julgamento de 19/09/2007, conforme DJ de 20-10-2007, afastou a exigência de fonte de custeio quando se trata de transporte capaz de viabilizar a concretização da dignidade da pessoa humana e de seu bem-estar. Fundamentando-se diretamente na Constituição Federal, o direito ao transporte gratuito de deficientes afasta a necessidade de fonte de custeio; II – Ademais, ‘qualquer cidadão sabe que, independentemente da quantidade de pessoas que utilizam o transporte público, ele deverá ser prestado em horários pré-determinados pela Administração. O custo desta operacionalização é estável. O que se quer demonstrar é que a empresa não tem um custo maior por estar transportando pessoas idosas. O transporte encontra-se ali, disponível, com o custo já estabelecido.’ III – Os deficientes físicos ‘não são em número suficiente para aniquilar os ganhos dos empresários’ e as empresas não têm um custo maior pelo fato de transportá-los, sobretudo a Apelante que já vinha concedendo a gratuidade nos transportes coletivos a 652 pessoas portadoras de deficiência mental sem previsão de fonte de custeio; IV – Improvimento ao recurso.” (A G .REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 847.845 RIO DE JANEIRO; RELATOR : MIN. LUIZ FUX; Primeira Turma; Data 11/12/2012) (grifou-se)[20]

Observe-se que, embora a situação não seja idêntica a que ocorre no estado da Bahia, pode-se perceber que a exclusão sofrida pelos deficientes tem ocorrido em quase todos os lugares, sob fundamentos distintos.

Por oportuno, deve-se pontuar que os portadores de deficiência auditiva obtiveram uma grande conquista, ao ter-se admitido pela jurisprudência pátria como deficiência auditiva não só a perda bilateral, parcial ou total da audição (como pretendia o art. 5º, § 1º, I, alínea “d” do Decreto Federal 5296/2004), mas também a unilateral. Vide as jurisprudências selecionadas, que demonstram o avanço dado pelos nossos tribunais em busca da igualdade e em desfavor da discriminação aos deficientes:

CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA. RESERVA DE VAGAS. DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE DEFICIÊNCIA BILATERAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. I - É dever do Estado, previsto constitucionalmente, assegurar aos portadores de deficiência física condições diferenciadas de atendimento educacional, trabalho, inclusive através de concursos públicos, aposentadoria, entres outros, com vistas a atender, de forma afirmativa, o postulado da Isonomia. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais, em concursos públicos, tem previsão no art. 37, VIII, CF/88, regulamentado pela Lei nº 7.853/89 e, esta, pelos Decretos nºs 3.298/99 e 5.296/2004. II - Pela redação atual do art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99, com redação alterada pelo Decreto nº 5.296/2004, no qual se considera deficiência auditiva apenas a perda da capacidade auditiva bilateral, parcial ou total, não restam dúvidas de que a bilateralidade, ou seja, a perda da capacidade auditiva nos dois membros (ouvidos) é critério determinante para configurar a deficiência auditiva. III - Entendimento diverso, além de destoar das regras vigentes, desvirtua a aplicação do Princípio da Isonomia, na sua essência, uma vez que deixa de diferenciar as situações que realmente reclamam o discrímem, como no caso da surdez bilateral, para privilegiar situação intermediária, não concebida técnica e juridicamente com elemento definidor da deficiência. IV - Apelação improvida. (TRF-5 - AC: 488064 PB 0005610-30.2008.4.05.8200, Relator: Desembargador Federal Leonardo Resende Martins (Substituto), Data de Julgamento: 30/03/2010, Quarta Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça Eletrônico - Data: 08/04/2010 - Página: 688 - Ano: 2010) (grifos não no original)

Veja que neste primeiro julgado colacionado, o Tribunal Regional Federal da 5ª região negou provimento ao apelo, entendendo ser inviável a reserva de vagas em concurso público para portador de deficiência auditiva apenas unilateral, ao argumento de que entendimento diverso distoaria das regras vigentes. Em contrapartida, em decisão recente, pugnou o Tribunal Superior do Trabalho, pela reserva de vagas para o portador de deficiência auditiva unilateral, litteris:

MANDADO DE SEGURANÇA - CONCURSO PÚBLICO - PERDA AUDITIVA UNILATERAL - INCLUSÃO NA LISTA DE CANDIDATOS COM DEFICIÊNCIA - DIREITO LÍQUIDO E CERTO A jurisprudência pátria - interpretando de forma harmônica as disposições do Decreto nº 3.298/99, em conjunto com as disposições legais e constitucionais pertinentes, bem como com o disposto na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - tem reconhecido o direito de os candidatos com perda auditiva unilateral concorrerem, em concurso público, às vagas destinadas às pessoas com deficiência . Precedentes do TST e do STJ. Segurança concedida. (TST, Relator: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 07/10/2013, Órgão Especial) (grifos não no original)

Os portadores de visão monocular (cegueira em um olho só) também lograram êxito no Judiciário brasileiro.

O Decreto 5296/2004, em seu art. 5º, § 1º, I, alínea “c”, é bem restritivo quanto ao que deve ser considerada deficiência visual, preceituando como tal apenas a “cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores”.

Porém, o STJ sumulou entendimento através do enunciado 377, de que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”. Assim, os tribunais de todo o país começaram a aplicar tal entendimento, conforme exemplificamos, transcrevendo o sábio julgado a seguir:

CONCURSO PÚBLICO. FISCAL ESTADUAL AGROPECUÁRIO. HOMOLOGAÇÃO DA INSCRIÇÃO COMO DEFICIENTE FÍSICO. CEGUEIRA MONOCULAR. POSSIBILIDADE. O direito líquido e certo é aquele que se mostra inequívoco, sem necessidade de dilação probatória, urgindo, para sua configuração, a comprovação dos pressupostos fáticos adequados à regra jurídica. A Lei Federal nº 7.853/1989 dispõe sobre a política nacional para a integração das pessoas portadoras de deficiência. O Decreto nº 3.298/99 regulamentou a referida lei, estabelecendo no art. 4º, III, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004, o conceito de deficiência visual. Por seu turno, o artigo 1º, §único, da Lei Estadual 10.228/1994 garante às pessoas portadoras de deficiência o direito de inscrição em concurso público para provimento de cargo compatível com a deficiência de que são portadoras. No âmbito estadual, a questão da conceituação de deficiência física foi regulamentada pelo Decreto nº 44.300/2006, com as alterações veiculadas pelo Decreto nº 46.656/2009, que alterou algumas disposições do Decreto nº 44.300/2006. Desde o julgamento do Mandado de Segurança nº 70028967677, ocorrido em 10/07/2009, este Segundo Grupo Cível vem alinhando o seu entendimento ao da Súmula 377 do STJ, que determina que o portador de visão monocular possui direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes, a despeito da disposição inscrita no artigo 4º, do Decreto n. 3298/1999, com a redação que lhe foi atribuída pelo Decreto n. 5296/2004, sob o fundamento de que esta norma jurídica refere-se tão-somente aos agentes que possuem visão nos dois olhos, e não às hipóteses de cegueira completa em um dos olhos. Comprovado o direito líquido e certo à inscrição no certame nas vagas de deficientes físicos, deve ser concedida a segurança. SEGURANÇA CONCEDIDA. (Mandado de Segurança Nº 70059174557, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Julgado em 13/06/2014) (grifou-se)

3.3. Da Assistência Social e da Evolução na Proteção ao Deficiente

Uma pessoa, que possui uma anormalidade em seu corpo, tende a sofrer com a segregação por não se enquadrar nos padrões estabelecidos em nossa sociedade. Por isso, a assistência social constitui-se em excelente aparato para a harmonização da sociedade e a inclusão das pessoas que se diferenciam das outras. Neste sentido, a nossa Constituição Federal de 1988 cuidou como um dos objetivos da assistência social o tratamento de pessoas portadoras de deficiência, in litteris:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(...)

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

(...)

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos.

(...)

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

Para Marques, este assistencialismo que se dá às pessoas em situação de deficiência busca proteger mais a sociedade do que ao ser que dela necessita, pois, se tal proteção não fosse despendida, a sociedade restaria paralisada, com limites bastante delimitados à realização pessoal, profissional e afetiva de seus membros, conquanto é com a força produtiva que a sociedade moderna preocupa-se em última instância e, por isso, investe em uma política do corpo com vistas a torná-lo produtivo e capacitado para a vida na sociedade moderna sob a égide normalizadora ao qual ela se circunscreve. [21]

Em outra oportunidade, assevera o digníssimo autor que este carrossel produz uma sociedade repleta de preconceitos e de competitividade que, por prepotência dos que se dizem "normais", procura estabelecer os limites do outro, como se este fosse um inválido e, conseqüentemente, um ser digno apenas de "caridades" marginalizadoras e humanamente humilhantes.[22]

Realmente, no sistema capitalista que vivemos, onde as relações estão delineadas pelo binômio produção e lucro, o padrão ideal de homem é daquele que tenha rendimento no mercado. Assim deficiente significaria ser não eficiente, não adequado e improdutivo no Sistema de Capital.

No entanto, nos dias atuais, a situação está sendo analisada com maior austeridade. Isto decorre do aumento da quantidade de pessoas em situação de deficiência e também da eclosão na mídia do acometimento de deficiência por alguns famosos. Exemplo disso é o caso de John Nash, conhecido internacionalmente e ganhador do Prêmio Nobel de Matemática de 1994, ficou famoso quando sua história foi apresentada no filme “Uma mente brilhante”.

Foram sancionadas duas leis para proteção da pessoa em situação de deficiência.

A primeira delas é a Lei 7853/1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, instituindo a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplinando a atuação do Ministério Público e definindo crimes. Esta lei dispõe em seu art. 2º, inciso V, alínea "a”, que ao poder público cabe assegurar, às pessoas com deficiência, o pleno exercício de seus direitos.

A segunda é a Lei 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida e em seu art. 23, destina à administração pública federal dotação orçamentária para programas de adaptação e eliminação de barreiras arquitetônicas nos edifícios públicos sob sua administração e uso.

Some-se a isto, a criação de várias instituições voltadas para a tutela dos direitos do deficiente, tais quais o Centro de Documentação e Informação do Portador de Deficiência (CEDIPOD), o Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (IBDD), a Associação de Assistência à Criança Defeituosa (AACD) e o Centro de Vida Independente do Brasil (CVI-Brasil).

O Ministério Público Federal criou uma repartição em seus quadros denominada Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) para dialogar e interagir com órgãos de Estado, organismos nacionais e internacionais e representantes da sociedade civil, persuadindo os poderes públicos para a proteção e defesa dos direitos individuais indisponíveis, coletivos e difusos – tais como dignidade, liberdade, igualdade, saúde, educação, assistência social, acessibilidade, acesso à justiça, direito à informação e livre expressão, reforma agrária, moradia adequada, não discriminação, alimentação adequada, dentre outros. [23] Esta repartição tem atuado em defesa da pessoa em situação de deficiência.

Foi por meio da referida repartição que o Ministério Público Federal integrou na qualidade de membro efetivo do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, Conade, em 1999. {C}[24]{C}

Em 2005, foi criado o Grupo de Trabalho "Inclusão de Pessoas com Deficiência", por estímulos conferidos por meio da PFDC. Este grupo foi instituído, de início, com o fulcro de acompanhar a implementação do Decreto nº 5.296/2004, ora sindicalizado em seu art. 5°, § 1°, I, “d”, tendo também como objetivos a identificação de problemas relacionados à defesa dos direitos de pessoas com deficiência, que possam ser solucionados mediante atuação extrajudicial; promoção de pesquisas, debates e reflexões para aprimoramento da legislação e das políticas públicas de inclusão; a coordenação de linhas de atuação, metas e diretrizes de trabalho no âmbito do Ministério Público Federal; o acompanhamento da execução dos programas de ações afirmativas asseguradas às pessoas com deficiência; o estreitamento dos canais de comunicação com e entre os órgãos federais ligados à defesa das pessoas com deficiência; e a informação aos procuradores da República acerca das iniciativas sobre a matéria.[25]

Destaca-se ainda a postura integracionista promovida pela Lei 8666/83, em se art. 24, inciso XX, que permite dispensar-se a licitação na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado. Neste caso, a licitação é dispensável e não dispensada, não havendo obrigatoriedade nessa escusa, carecendo, por isso mesmo, da condescendência das entidades licitantes na busca da inclusão das pessoas em situação de deficiência.

Critica-se, por outro lado, o empecilho para aceitação de um deficiente no âmbito laboral, pois isto deriva muito mais da necessidade de conforto que alguns têm do que da efetiva proteção que se diz dar aos deficientes. Correto seria conviver respeitando as limitações dos deficientes, em vez de afastá-los do convívio social.

Destacaram-se na defesa dos direitos dos deficientes a instituição pela ONU do Ano e da Década da Pessoa com Deficiência, em 1981, a Conferência Mundial de Educação para Todos, em 1990 e a Declaração de Salamanca de Princípios, Política e Prática para as necessidades Educativas Especiais, em 1994.

Neste liame, muitos são os movimentos das chamadas ações afirmativas, que se lastreiam em razões humanitárias e coadjuvam na luta pela igualdade dos deficientes.

A atividade empresarial tem como um dos seus grandes princípios a livre iniciativa, que permite ao empresário tomar as medidas que achar conveniente para o aferimento dos lucros de mercado. Neste viés de cognição, o empresário possui uma grande responsabilidade social no que tange às consequências que suas atitudes trarão à sociedade. É por isso mesmo que a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho depende, principalmente, do olhar ético do empresário.

Assim sendo, seja no ambiente laboral, estudantil ou recreativo, o portador de necessidades especiais não pode ser rechaçado das atividades que desenvolvem as demais pessoas, haja vista que ele também é um ser humano e, por conseguinte, está acobertado pelo princípio universal da dignidade da pessoa humana.

Em acórdão histórico e refulgente, o Colendo Superior Tribunal de Justiça decidiu pela isenção no pagamento do Imposto sobre Produto Industrializado por aqueles que possuem algum tipo de deficiência física, ainda que o veículo venha a ser adquirido para que outro dirija em favor do deficiente, consoante se reproduz a seguir:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. ISENÇÃO NA COMPRA DE AUTOMÓVEIS. DEFICIENTE FÍSICO IMPOSSIBILITADO DE DIRIGIR. AÇÃO AFIRMATIVA. LEI 8.989/95 ALTERADA PELA LEI Nº 10.754/2003. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEX MITIOR.

1. A ratio legis do benefício fiscal conferido aos deficientes físicos indicia que indeferir requerimento formulado com o fim de adquirir um veículo para que outrem o dirija, à míngua de condições de adaptá-lo, afronta ao fim colimado pelo legislador ao aprovar a norma visando facilitar a locomoção de pessoa portadora de deficiência física, possibilitando-lhe a aquisição de veículo para seu uso, independentemente do pagamento do IPI. Consectariamente, revela-se inaceitável privar a Recorrente de um benefício legal que coadjuva às suas razões finais a motivos humanitários, posto de sabença que os deficientes físicos enfrentam inúmeras dificuldades, tais como o preconceito, a discriminação, a comiseração exagerada, acesso ao mercado de trabalho, os obstáculos físicos, constatações que conduziram à consagração das denominadas ações afirmativas, como esta que se pretende empreender. 2. Consectário de um país que ostenta uma Carta Constitucional cujo preâmbulo promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, promessas alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, é o de que não se pode admitir sejam os direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, relegados a um plano diverso daquele que o coloca na eminência das mais belas garantias constitucionais. 3. Essa investida legislativa no âmbito das desigualdades físicas corporifica uma das mais expressivas técnicas consubstanciadoras das denominadas " ações afirmativas". 4. Como de sabença, as ações afirmativas, fundadas em princípios legitimadores dos interesses humanos reabre o diálogo pós-positivista entre o direito e a ética, tornando efetivos os princípios constitucionais da isonomia e da proteção da dignidade da pessoa humana, cânones que remontam às mais antigas declarações Universais dos Direitos do Homem. Enfim, é a proteção da própria humanidade, centro que hoje ilumina o universo jurídico, após a tão decantada e aplaudida mudança de paradigmas do sistema jurídico, que abandonando a igualização dos direitos optou, axiologicamente, pela busca da justiça e pela pessoalização das situações consagradas na ordem jurídica. 5. Deveras, negar à pessoa portadora de deficiência física a política fiscal que consubstancia verdadeira positive action significa legitimar violenta afronta aos princípios da isonomia e da defesa da dignidade da pessoa humana. 6. O Estado soberano assegura por si ou por seus delegatários cumprir o postulado do acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. 7. Incumbe à legislação ordinária propiciar meios que atenuem a natural carência de oportunidades dos deficientes físicos. 8. In casu, prepondera o princípio da proteção aos deficientes, ante os desfavores sociais de que tais pessoas são vítimas. A fortiori, a problemática da integração social dos deficientes deve ser examinada prioritariamente, maxime porque os interesses sociais mais relevantes devem prevalecer sobre os interesses econômicos menos significantes. 9. Imperioso destacar que a Lei nº 8.989/95, com a nova redação dada pela Lei nº 10.754/2003, é mais abrangente e beneficia aquelas pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legala pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003), vedando-se, conferir-lhes na solução de seus pleitos, interpretação deveras literal que conflite com as normas gerais, obstando a salutar retroatividade da lei mais benéfica. (Lex Mitior). 10. O CTN, por ter status de Lei Complementar, não distingue os casos de aplicabilidade da lei mais benéfica ao contribuinte, o que afasta a interpretação literal do art. 1º, § 1º, da Lei 8.989/95, incidindo a isenção de IPI com as alterações introduzidas pela novel Lei 10.754, de 31.10.2003, aos fatos futuros e pretéritos por força do princípio da retroatividade da lex mitior consagrado no art. 106 do CTN. 11. Deveras, o ordenamento jurídico, principalmente na era do pós-positivismo, assenta como técnica de aplicação do direito à luz do contexto social que: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". (Art. 5º LICC) 12. Recurso especial provido para conceder à recorrente a isenção do IPI nos termos do art. 1º, § 1º, da Lei nº 8.989/95, com a novel redação dada pela Lei 10.754, de 31.10.2003, na aquisição de automóvel a ser dirigido, em seu prol, por outrem. (STJ – 1ª turma, no REsp 567873 / MG) {C}[26]{C}

Embora já se possamos congratular pelas consideráveis ações tomadas no âmbito do Ministério Público, dos Tribunais Superiores e do Poder Público com vistas a diminuir as diferenças sociais, ainda há muito a se cumprir para que essas diferenças venham ser totalmente superadas.

Devemos nos perguntar se, em meio a tanta evolução, é jurídica e moralmente correta a restrição que faz o decreto para com às pessoas, que contraíram a deficiência após os 18 (dezoito) anos de idade?

Ora, prima-se em um Estado Democrático de Direito pelos valores da proteção à pessoa em situação de deficiência em contraposição à depreciação arcaica de que elas sofrem. A questão da integração social para os portadores de deficiência deve ser analisada com primazia. Assim, diante de negativas oportunistas efetuadas pelo Órgão de Trânsito do Município do Salvador, não há dúvidas que as aspirações sociais mais importantes devem imperar sobre os benefícios econômicos menos consideráveis.

Não há embaraço que ainda nos leve a pensar, diante de flagrante inconstitucionalidade de ato normativo, que seu conteúdo deve ser aplicado literalmente, em detrimento dos princípios elencados em nossa Carta Magna, mormente o da redução das desigualdades sociais (art. 3º, inciso III da CF) e a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da CF).

Nosso Ordenamento Jurídico é bastante enfático ao determinar que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". (Art. 5º LINDB), ao ponto de não se tolerar a prática de lei ou ato normativo que desatenda a sua finalidade maior, que é a diminuição das desigualdades e a erradicação da pobreza.

É garantido a todos nós o direito de oportunidades e para que isso se concretize se faz necessário muitas vezes a inclusão por meio de cotas em vestibulares e em concurso público, atendimento prioritário à pessoa em formação, isenção de taxas e impostos aos comprovadamente carentes, ou até mesmo a concessão de passe livre aos deficientes mais necessitados.

Seriam inócuas estas modalidades de proteção se as garantias constitucionais não fossem executadas para todos aqueles que se encontram em uma dimensão diversa da nossa, só porque a sua relegação se deu após completar 18 (dezoito) anos.

4. Da necessidade de aplicação dos princípios constitucionais na análise dos casos concretos

Os direitos sociais e princípios elencados em nossa Carta Magna de 1988 têm cunho programático, impondo ao legislador ordinário que privilegie precipuamente a regulamentação deles. Estes direitos são a consequência da tentativa de utilização da Constituição não apenas pela compreensão gramatical que tem, mas pelo peso que o seu conteúdo traz ao intérprete e aplicador do Direito.

Busca-se, com a promulgação da Carta Magna, o exercício efetivo dos princípios da liberdade e da igualdade. Diferentemente do que se diz, os direitos fundamentais não têm apenas a função de garantir que o Estado intervenha em menor grau de intensidade na vida dos cidadãos, mas também de afastar as desigualdades econômicas e sociais existentes no século atual.

Destarte, o Estado tem o dever de diminuir as desigualdades existentes, através do poderio que tem e por meio de sua administração sobre os administrados. Neste sentido, o Estado-Juiz tem o importante papel de pacificar as relações sociais, através da aplicação dos direitos fundamentais.

Vê-se que o papel dos direitos fundamentais é também de direcionar o Estado em relação ao conteúdo dos atos que irá efetivar. Isto porque, os princípios fundamentais elencados pela Carta Magna são limites na atuação dos políticos, eis que ditam o caminho que se deve seguir.

Neste contexto é que os órgãos judicantes têm a importantíssima função de concretizar os direitos elencados na Carta Magna. Cite-se Binenbojm:

“Á jurisdição constitucional compete realizar tal projeto, atuando como árbitro do jogo democrático e tendo como objetivo assegurar, contra eventuais maiorias, a pauta de direitos fundamentais e a sobrevivência das minorias políticas. Embora a jurisdição 1968 constitucional se apresente como uma instância de poder contra majoritário, situada no limite entre o jurídico e o político, sua missão será a de intervir a favor e não contra a democracia”[27]

Nesse contexto, interessante trazer à baila a clássica figura do Juiz-Hércules, de Dworkin.[28]

O juiz Hércules, criação do referido autor, simboliza as peculiaridades de que deve ser dotado o magistrado ao construir o direito, em cada caso, no intuito de se formar a melhor decisão possível amparada na leitura moral dos princípios, eis que “uma decisão jurídica de um caso particular só é correta, quando se encaixa num sistema jurídico coerente[29]”.

Para tanto, Dworkin apresenta a necessidade de reconstrução racional e coerente do direito vigente, fundada em uma leitura moral dos direitos individuais. Esta reconstrução parte de uma perspectiva liberal do direito, fundada numa exegese moral dos princípios, em que os direitos devem ser entendidos como limites ao poder do Estado.

O juiz Hércules deve, então, com base em uma leitura moral dos direitos individuais, fundada no tratamento de todos com igual respeito e consideração, se utilizar de todos os precedentes judiciais para fazer a melhor interpretação do direito vigente.

Nota-se, que o Judiciário tem fundamental importância para a concretização dos direitos fundamentais ante ao rol de direitos garantidos pela Constituição Federal e à limitação de recursos do Estado.

Para Ronald Dworkin (1999, p. 492), o Direito vai muito além dos precedentes jurisprudenciais e das convenções entre os homens, perfazendo-se para a resolução dos casos concretos por meio da interpretação aplicativa dos princípios jurídicos.

Nesta senda, aduz o denominado autor:

A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade. [30]

Deste modo foi que o emérito doutrinador trouxe tamanha contribuição para o pós-positivismo jurídico, pois construiu a noção de que os princípios jurídicos devem ser analisados como verdadeira norma jurídica. Nesta linha de intelecção é que o autor chega a afirmar que não se pode reconhecer força normativa ao convencionalismo dos homens ou aos precedentes, mas sim aos princípios colhidos deles.

Quando perquirido acerca da antinomia que poderia surgir da interpretação e aplicação dos princípios jurídicos, responde o referendado autor:

Esses são princípios independentes, e considerá-los contraditórios seria um grave mal entendido da lógica dos princípios. Não é incoerente reconhecê-los como princípios; pelo contrário, qualquer ponto de vista moral seria falho se negasse um dos dois impulsos. Em alguns casos, porém, vão entrar em conflito, e a coerência então exige um sistema não arbitrário de prioridade, avaliação ou acomodação entre eles, um sistema que reflita suas fontes respectivas em um nível mais profundo de moral política.[31]

Neste espectro, Paulo Bonavides consigna que:

“Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da ciência jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo este desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.”[32]

Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 23-25), a igualdade é um princípio com duplo objetivo: primeiro, propiciar a garantia individual contra perseguições e segundo, para aniquilar os favoritismos.[33]

Nesta toada, os saberes abalizados do autor mencionado caminham no direcionamento de considera viciada toda norma enunciada em termos que prefigurem uma situação única, pelo que singularize para sempre um destinatário. Conclui o autor:

“...é simplesmente ilógico, irracional, buscar em um elemento estranho a uma dada situação, alheio a ela, o fator de sua peculiarização. Se os fatores externos à sua fisionomia são diversos (quais os vários instantes temporais) então, percebe-se, a todas as luzes, que eles é que se distinguem e não as situações propriamente ditas. Ora, o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta.” [34]

Observe-se que, por tudo quanto dito e explanado, inevitável concluir que atualmente vivenciamos uma era em que os princípios regem as relações jurídicas e não podem ser negligenciados em momento algum.

Neste condão, ao tratarmos das necessidades dos deficientes mentais, seus direitos e sua reinserção no âmbito social, não podemos olvidar que, acima de tudo, devemos aplicar os princípios, pois deles emanam os mandamentos indispensáveis à manifestação da justiça.

Passemos, pois, a analisar os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, intransponíveis quando se trata de pessoas deficientes.

A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como princípio, instituindo um estado igualitário com o fim de ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).

A concretização do princípio da igualdade depende do critério-medida, objeto de diferenciação. Isso porque o princípio da igualdade, ele próprio, nada diz quanto aos bens ou aos fins de que se serve a igualdade para diferenciar ou igualar as pessoas. As pessoas ou situações são iguais ou desiguais em função de um critério diferenciador. Duas pessoas são formalmente iguais ou diferentes em razão da idade do sexo ou da capacidade econômica. Essa diferenciação somente adquire relevo material na medida em que lhe agrega uma finalidade, de tal sorte que as pessoas passam a ser iguais ou diferentes, de acordo com o mesmo critério, dependendo da finalidade a que ele serve. [...] Do mesmo modo, duas pessoas podem ser compreendidas como iguais ou diferentes segundo o critério da capacidade econômica: devem ser vistas como diferentes para pagar impostos, se uma delas tiver maior capacidade contributiva são tratadas igualmente para votar e para obtenção de licença- maternidade, porque a capacidade econômica é neutra relativamente a concretização dessas finalidades.

Vale dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão, tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam a utilização de critério distintos pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, não. Mais do que isso: fins diversos conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito. Como postulado, sua violação reconduz a uma violação de alguma norma jurídica. Os sujeitos devem ser considerados iguais em liberdade, propriedade, dignidade. A violação da igualdade implica a violação a algum princípio fundamental.[35]

Ademais, a Constituição da República de 1988 consagrou o direito de sermos iguais, quando as disparidades tornam alguns potencialmente inferiores aos demais, do mesmo modo que consagrou o direito à desigualdade, quando esta for elementar para diminuir as inferioridades.

Na preciosa lição do doutrinador Alexandre de Moraes, o princípio da igualdade tem tríplice finalidade: limitação ao legislador, no exercício de sua função típica, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, ao intérprete e à autoridade pública, que não poderão aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias e entre os particulares em suas relações interpessoais, senão vejamos:

A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito de um tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo Ordenamento Jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvador por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

A eficácia se configura como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição, como norma suprema, proclama.

O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontrem em situações idênticas, Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.

A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não-discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critéios de juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com alguns direitos e garantias constitucionalmente protegidos.

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma fialidade razoavelmente proporcional ao fim visado.

Importante, igualmente, apontar a tríplice finalidade do princípio da igualdade- limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular. O legislador, no exercício de sua função constitucional de edição normativa, não poderá afastar-se do princípio da igualdade, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Asim, normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias, sem qualquer finalidade lícita, serão incompatíveis com a Constituição Federal.

O intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Ressalte-se que, em especial o Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito ao caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas. Nesse sentido, a intenção do legislador constituinte ao prever o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (uniformização na interpretação da Consti tuição Federal) e o recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (uniformização na interpretação da legislação federal). Além disso, sempre em respeito ao princípio da igualdade, a legislação processual deverá estabelecer mecanismos de uniformização de jurisprudência a toods os Tribunais.[36]

“Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior, raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre se ditingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade de valia que ofereceu a todos; raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato, quase sempre os distingue conforme circunstâncias em que se produzem, ou conforme a repercussão que têm interesse geral. Todos essas situações, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos são essenciais ao processo legislativo, e não ferem o princípio da igualdade. Servem, porém, para indicar a necessidade de uma construção teórica, que permita distinguir as leis arbitrárias das leis conforme o direito, e eleve até esta alta triagem a tarefa do órgão do Poder Judiciário.[37]

Em que pese estar a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais ligados de forma indissociável, mesmo nas ordens normativas onde a dignidade ainda não recebeu referência expressa, não se poderá chegar à concussão de que não se faça presente, na condição de valor informador de todo o Ordenamento Jurídico, desde que estejam reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais da pessoa humana.[38]

De acordo com Ingo Sarlet:

“...retomando a ideia nuclear que já se fazia presente até mesmo no pensamento clássico – que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifique o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como qualidade integrante da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo, (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe inerente. Assim nesta linha de entendimento, houve até mesmo quem afirmasse que a dignidade representa “o valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível [...] Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado prévio, não esquecendo, todavia, que o direito poderá exercer papel crucial na proteção e promoção, não sendo, portanto, completamente sem razão que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano como tal. [...] Além disso, como já frisado, não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que parece ser opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias concretas já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que em princípio, todos - mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.[39]

Para SARLET (2002, p 111), todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se lhes a tarefa de respeitar e proteger, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quando no dever de protegê-la contra ofensas oriundas de terceiros, seja qual for a procedência.

Assim, prossegue o citado autor, assegurando que (2002, p. 112) o princípio da dignidade da pessoa humana não impõe apenas um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos. Seguindo este raciocínio, sustenta-se que a concretização do programa normativo do princípio da dignidade da pessoa humana impõe aos órgãos estatais e especialmente ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica, que atenda às exigências do princípio. Em outras palavras, o princípio da dignidade impõe ao Estado a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam todos os obstáculos que impeçam as pessoas de viverem com dignidade.

Por isso que o descumprimento de um princípio representa insurgência contra o Ordenamento Jurídico em sua essência.

Destarte, vozes enaltecedoras dos princípios elementares das pessoas em situação de deficiência têm se levantado e combatido a discriminação que faz o Decreto Federal.[40]

Uma grande parte dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia já entende que desatender aos deficientes com a ausência do passe livre está em desacordo com o espírito da lei. {C}[41]{C}

Despicienda, todavia, a análise exclusiva e literal da lei municipal e do Decreto Federal, eis que destoam dos princípios constitucionais.

5. Do Decreto Federal n° 5296/2004

O Decreto Federal n° 5296/2004{C}[42]{C} regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

Para este Decreto, a aprovação de projeto envolvendo transporte coletivo, e a execução de qualquer tipo de obra, quando tenham destinação pública ou coletiva se sujeitam ao cumprimento das suas disposições, sempre que houver interação com a matéria nele regulamentada.

Do mesmo modo, dispõe o referido diploma normativo que para melhorar a acessibilidade no planejamento e na urbanização das vias, praças, logradouros, parques e demais espaços de uso público, serão observadas as regras gerais previstas neste Decreto, acrescidas das normas técnicas de acessibilidade da ABNT e pelas disposições contidas na legislação dos Estados, Municípios e do Distrito Federal.

Se não forem observadas as normas deste Decreto, serão aplicadas sanções administrativas, cíveis e penais cabíveis, previstas em lei.

De maneira geral, os mandamentos contidos no referido Decreto são admiráveis e escusáveis de retoques ou melhorias. Indique-se, desta feita, a regra contida na Seção II, que trata “Da Acessibilidade no Transporte Coletivo Rodoviário”, mais precisamente no art. 38 que diz que “no prazo de até vinte e quatro meses a contar da data de edição das normas técnicas referidas no § 1o, todos os modelos e marcas de veículos de transporte coletivo rodoviário para utilização no País serão fabricados acessíveis e estarão disponíveis para integrar a frota operante, de forma a garantir o seu uso por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida”.

O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, os Conselhos Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, e as organizações representativas de pessoas portadoras de deficiência terão legitimidade para acompanhar e sugerir medidas para o cumprimento dos requisitos estabelecidos neste Decreto.

Outrora, o decreto mencionado foi alvo de Arguição Incidental de Inconstitucionalidade por ofensa aos arts. 24, 203, inciso XIV, 227, inciso IV, 244, inciso II, todos da Constituição Federal, tendo o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia decidido realizar apenas o controle de convencionalidade, coibindo a limitação etária para revelação da “deficiência mental”, principalmente porque referida deficiência pode ser adquirida posteriormente, conforme se depreende do acórdão colacionado a seguir:

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. PASSE LIVRE. DEFICIÊNCIA MENTAL. AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA JULGADA IMPROCEDENTE. RECURSO DE APELAÇÃO DO AUTOR.

1. Arguição incidental de inconstitucionalidade dos arts. 2º, § 1º, da Lei nº7.201/2007 e art. 5º do Decreto Federal nº 5296/2004. Rejeição. Não se vislumbra qualquer ofensa aos arts. 24, inc. XIV, 203, inc. IV, 227, inc. II e 244, da CF, posto que a sentença objurgada não negou a possibilidade de se conceder a gratuidade de transporte coletivo às pessoas comprovadamente portadoras de deficiência. Todavia, embora não se vislumbre a inconstitucionalidade dos arts. , § 1º, da Lei nº 7.201/2007 e art. do Decreto Federal nº 5296/2004, cabível o controle de convencionalidade dos aludidos dispositivos em relação aos tratados e convenções de direitos humanos que não tenham equiparação às normas constitucionais, visando assegurar a plena vigência das normas legais que compõem o ordenamento jurídico.

2. Examinando o que dos autos consta, verifica-se que o feito encontra-se satisfatoriamente instruído com a prova documental carreada aos fólios, prescindindo-se, portanto, da realização de prova técnica, bem como da colheita dos depoimentos das partes, uma vez que as versões fáticas esposadas na inicial e na contestação afiguram-se suficientemente claras. Saliente-se, ainda, que o despacho saneador, pode ser dispensado desde que estejam presentes nos autos elementos necessários e suficientes à solução da lide, permitindo, assim, que o feito seja julgado com base no 333, do CPC. Preliminar de nulidade da sentença por atalhamento da instrução probatória que se afasta.

3. A lei Orgânica do Município assegura a gratuidade nos transportes coletivos urbanos ao deficiente mental, comprovadamente carente, sendo editada a Lei Municipal nº 7.201/2007 para disciplinar a matéria, considerando pessoa com deficiência o disposto no art. 247, da Lei Orgânica do Município, combinada com os critérios do art. 5º do Decreto Federal nº 5.296/2004. 4. Todavia, analisando o art. 5º, do Decreto Federal nº 5.296/2004, constata-se que o conceito de deficiência mental é eminentemente restritivo e obstativo, com indicação de patamar límitrofe, a saber, momento que antecede aos dezoitos anos de idade, tolhido o direito de um incontável número de portadores de deficiência mental, quando em verdade deveria integrá-los, de forma irrestrita e efetiva, à sociedade. 5. Compulsando os autos, verifica-se que o apelante sofre de retardo mental moderado (CID10F71.9) e já possuía o cartão de passe livre, encontrando-se aposentado por invalidez, sendo comprovadamente pessoa carente, conforme documentos de fls. 16/22 e 25/26, fazendo jus, portanto, ao benefício da gratuidade nos transportes coletivos. 6. Desta forma, não há que se falar em limitação etária para revelação da “deficiência mental”, principalmente porque referida deficiência pode ser adquirida posteriormente, não se justificando a recusa do órgão público no ato de recadastramento do cartão. 7. Ademais, a Lei Municipal nº 7201/2007 e o Decreto nº 5296/2004 devem ser interpretados à luz dos fundamentos e objetivos da Constituição vigente, bem como dos tratados e convenções internacionais, que buscam assegurar a pessoa com deficiência, o seu ingresso na vida social e no mercado de trabalho, através de normas compensatórias e políticas públicas. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E PROVIDO. (Processo: TJ/BA APL 00149946920108050001 BA 0014994-69.2010.8.05.0001; Primeira Câmara Cível; Julgamento: 16/07/2012; Publicação: 16/11/2012)[43]

Por fim, pode-se arrematar que a Lei Municipal nº 7201/2007 e o Decreto nº 5296/2004 devem ser interpretados consoantes os fundamentos e objetivos da nossa Constituição Cidadã, bem como dos tratados internacionais, que buscam garantir à pessoa com deficiência, a sua integração na sociedade.

6. Da Inconstitucionalidade do art. 5°, § 1°, I, “d” do Decreto Federal n° 5296/2004

Controle de Constitucionalidade consiste na verificação de conformidade entre uma lei ou um ato normativo e a Constituição Federal. Este controle pode ser formal, dividindo-se em: subjetivo (quando a apuração incide sobre vício de iniciativa) ou objetivo (quando o vício não se encontra na iniciativa, mas sim nas demais fases do processo), ou material (quando o conteúdo da norma entra em confronto com a Constituição).

Conceituado o instituto do controle de constitucionalidade, necessário que entendamos qual a natureza jurídica dos decretos, enquanto atos normativos e normas inseridas em nosso Arcabouço Legislativo, para apurarmos a possibilidade de aplicação do aludido controle sobre ele.

Na preciosa lição da professora Maria Sylvia (2010, p. 233), “decreto é a forma de que se revestem os atos individuais ou gerais, emanados do Chefe do Poder Executivo”. Quando comparado à lei, ele é classificado como ato normativo derivado, pois não pode criar direito novo, mas tão-somente estabelecer normas que permitam a forma de executar a lei. [44]

Sob o escólio do mestre Hely Lopes MEIRELLES diz-se que:

“no poder de chefiar a Administração está implícito o de regulamentar a lei e suprir, com normas próprias, as omissões do Legislativo que estiverem na alçada do Executivo. Os vazios da lei e a imprevisibilidade de certos fatos e circunstâncias que surgem, a reclamar providências imediatas da Administração, impõem que se reconheça ao Chefe do Executivo o poder de regulamentar, através de decreto, as normas incompletas.”[45]

Conveniente elucidar que os decretos decorrem do poder regulamentar, poder este conferido à Administração Pública, mais especificamente ao chefe do Poder Executivo.

Na preleção lustrosa do insigne mestre Dirley da Cunha, o Poder Regulamentar:

“... é aquele que confere aos chefes do Executivo a atribuição para explicar, esclarecer, explicitar e conferir fiel execução às leis ou disciplinar matéria que não se sujeita à iniciativa de lei. Esse poder se exerce por meio da expedição de regulamentos, que são atos administrativos normativos, ostentando, por conseguinte, caráter geral e abstrato.

O poder regulamentar é privativo dos chefes do Executivo (vide art.84, IV, CF), não podendo ser delegado. O regulamento se formaliza pelo decreto, que é o ato administrativo formal.

Além dos regulamentos de execução, que são aqueles expedidos para a fiel execução da lei, temos hoje, após o advento da EC n° 32/2001 (que deu nova redação ao art. 84, VI), os chamados regulamentos autônomos ou independentes, que visam regular matérias não reservadas à lei, em especial a respeito da organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgão público. De fato, em face do art. 84, VI, da Constituição, compete privativamente ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre: 1) a organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, e 2) sobre a extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. Tal regulamento também é expedido por meio de decretos. O regulamento autônomo, não obstante ato secundário, é uma fonte primária porque ele inaugura a ordem jurídica para dispor sobre determinada matéria. Hoje, existe somente a nível federal, podendo vir a existir no âmbito dos Estados e Municípios, desde que estes emendem suas Constituições estaduais ou leis orgânicas.

A toda lei cabe regulamentação, seja ela auto-aplicável ou não (aquelas que dependem da regulamentação só produzem plenos efeitos após essa providência).

As ilustres administrativistas Maria Sylva Zanella Di Pietro e Odete Medauar identificam o poder regulamentar como uma espécie de poder normativo, afirmando que este compreenderia todos os atos normativos da Administração Pública, que não se resumem aos regulamentos dos Chefes do Executivo. Estão com razão as eminentes autoras.

Com efeito, a competência normativa da Administração Pública é ampla. Compreende atos normativos dos diversos órgãos da Administração direta e entidades da Administração indireta, expedidos por resoluções, instruções, portarias e regimentos. É bem verdade que todos estes atos estabelecem normas que têm alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor. Eles não possuem o mesmo alcance nem a mesma natureza que os regulamentos baixados pelo Chefe do Executivo.

Ademais, o poder normativo também engloba a competência normativa das chamadas agências reguladoras, pois estas se prestam a atividades essencialmente normativas, mas não através de decretos, uma vez que estes são próprios dos Chefes do Executivo. As agência reguladoras exercerão o poder de regulamentar as leis que disponham sobre os serviços de suas competências.

Em todas as hipóteses, o ato normativo não pode contrariar a lei, nem criar direitos ou impor obrigações, proibições ou penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao Princípio da Legalidade.

A propósito, cumpre salientar que são muito tênue as diferenças entre a lei e o regulamento, uma vez que ambos os atos destinam-se a disciplinar, normativamente, determinadas matérias para pô-las em execução em execução no ambiente social. É muito frequente, por exemplo, a concordância de expressões como “a lei visa regulamentar...”, circunstância que revela a semelhança entre os dois atos.

Nesse contexto, pode-se até afirmar, sem equívoco, que a lei e o regulamento, do ponto de vista material, identificam-se, sendo a mesma coisa. Ambos os atos são leis em sentido material, pois encerram normas gerais e abstratas.

Sem embargo disso, lei e regulamento distinguem-se, quer quanto ao objeto, quer quanto à forma.

Com efeito, lei é ato normativo de natureza originária ou primária, editada via de regra pelo Poder Legislativo, que inaugura ou inova na ordem jurídica, disciplinando diretamente matéria constitucional, criando direitos e impondo obrigações.

Já o regulamento, a seu turno, é ato abaixo da lei (infralegal), de natureza derivada ou secundária, editado pelo chefe do Poder Executivo, que não inova na ordem jurídica, destinando-se tão-somente a viabilizar a efetiva execução das leis, pressupondo, naturalmente, a existência destas.

Assim, de observar que, a partir dessa distinção, a lei surge como uma garantia constitucional do cidadão, tendo em vista que, em conformidade com o art. 5°, II, da Constituição Federal de 1988, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Logo, só a lei pode restringir direitos e impor obrigações, servindo de parâmetro imediato de validade de todos os atos da Administração Pública e condicionando, em consequência, a legitimidade de toda a atuação dos agentes públicos, inclusive para a edição de regulamentos.

O regulamento é ato normativo subordinado à lei e pressupõe a existência desta. Sua função é explicitar a lei visando a sua fiel execução. Não pode dispor contra ou extra legem, mas tão-somente secundum legem. É o que assegura, aliás, o art. 84, IV, da Constituição Federal, que atribui competência privativa ao Presidente da República para sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. Corrobora esse preceito o art. 49, V, também da Constituição, que concede a competência exclusiva do Congresso Nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.

Todavia, é possível a existência de regulamentos que se prestam a executar diretamente a norma constitucional. Isso ocorre quando a Constituição subtrai do legislador determinadas matérias franqueando-se à disciplina direta do regulamento do Poder Executivo. Quando isso ocorre, temos os chamados regulamentos autônomos ou independentes, que, nada obstante atos infralegais, assumem a natureza de atos primários. Esses regulamentos não se sujeitam à lei, pois se equivalem, quanto ao objeto, a elas.

Em que pese certa divergência doutrinária, reconhecemos a presença desses regulamentos autônomos na Constituição Federal de 1988. Foi visível, a nosso sentir, a intenção da EC n° 32/2001 em introduzir no texto constitucional a figura em tela. Ora, constava na redação anterior do art. 84, VI, a competência do Presidente da República para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, na forma da lei. Com a EC n° 32, essa matéria foi franqueada ao decreto, que, como se sabe, é o ato que formaliza a exteriorização do regulamento.

De um modo geral, e à guisa de conclusão, podemos sublinhar que os regulamentos são atos normativos infralegais que objetivam, em regra, a executar a lei, editados pelo chefe do Poder Executivo no exercício do poder regulamentar. Não podem restringir direitos, tampouco impor obrigações, prestando-se tão-somente a explicar os conteúdos das leis, para torna-las mais claras, compreensíveis e realizáveis. Todas as leis podem, sem exceção, ser regulamentadas, podendo existir, inclusive, leis que só são aplicadas após serem regulamentadas, vale dizer, leis que dependem de regulamentação para incidir.[46]

Percebe-se da citação transcrita acima que a lei é ato normativo de natureza primária, editada pelo Poder Legislativo, que inaugura ou inova na ordem jurídica, disciplinando matéria constitucional, criando direitos e impondo obrigações. O regulamento, por sua vez, é ato infralegal, secundário, editado pelo chefe do Poder Executivo, que não inova na ordem jurídica, destinando-se tão-somente a viabilizar a efetiva execução das leis, pressupondo, naturalmente, a existência destas, de maneira que não podem restringir direitos, tampouco impor obrigações, prestando-se tão-somente a explicar os conteúdos delas, para torná-las mais claras e executáveis.

A Constituição é a sede do fundamento dessa competência no seu artigo 84, IV, senão vejamos:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

IV – sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. (grifo nosso).

(...)

VI - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

A inconstitucionalidade direta, conhecida ainda como antecedente, consiste na violação frontal do ato impugnado à Constituição, ou seja, entre as normas constitucionais e o ato combatido não há outro interposto. Tal fenômeno acontece entre as espécies normativas primárias, quais sejam aquelas que retiram o fundamento de validade diretamente da Constituição, segundo rol do art. 59 da CF. Nestas hipóteses, havendo violação à Constituição será uma inconstitucionalidade direta, pois as espécies ali ofendidas retiram seu fundamento diretamente da Constituição.

Deste modo, se o ato não integrar o exaustivo rol do art. 59 da Constituição Federal, ele não poderá ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, por não haver afronta direta ao texto constitucional, em virtude de seu fundamento não ser retirado diretamente da Carta Magna. É o que ocorre com os atos tipicamente regulamentares, pois não se conectam diretamente com a nossa Constituição, apenas tornam exequível um ato primário. Então não há violação direta à Constituição, não cabendo ADI. Assim há que se falar somente em inconstitucionalidade indireta.

Excepcionalmente, existe a possibilidade de os atos normativos, não previstos no rol do art. 59 da Constituição Federal, retirarem fundamento dela, podendo ser objeto de ADI, mesmo sendo um ato infralegal. É o que acontece em dois casos: nos decretos autônomos e nos atos que extrapolam sua competência de regulamentar uma matéria, usurpando a competência de lei, tratando de conteúdo diretamente constitucional. Deste modo, visualizamos atos infralegais que assumem função de espécies normativas primárias, podendo-se falar em inconstitucionalidade direta, abrindo leque para a propositura de uma ADI.

Nosso paradigma é classificar o Decreto Federal 5296/2004 em autônomo (art. 84, VI da CF) ou regulamentar (art. 84, IV da CF)

O decreto Federal 5296/2004 não é, por ele mesmo, considerado autônomo, uma vez que se autodenomina como regulamentador da Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, e a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

A problemática incide em saber se o este decreto, que se denomina regulamentar, estrapola os limites da lei, a qual pretende esclarecer, carecendo assim de controle de legalidade ou de constitucionalidade.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o decreto regulamentar em crise deve ser distinguido de duas formas: a) Decreto regulamentar que viola lei regulamentada e b) Decreto que pretende ter natureza regulamentar, mas assume características de Decreto autônomo.

Na primeira forma resta configurada uma crise de legalidade, pois o decreto regulamentar viola diretamente a lei, e não a Constituição, sendo esta violada apenas indiretamente. Na segunda situação, todavia, fala-se em crise de constitucionalidade, porque o decreto, que seria regulamentar, se torna autônomo e faz às vezes de um ato normativo primário inconstitucional, violando o princípio da Reserva Legal, eis que ao invés de regulamentar lei infraconstitucional, regulamenta dispositivo da própria Constituição Federal.

Destaque-se que o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao tratar sobre a violação do decreto à lei que pretende regulamentar, utiliza as locuções “extrapolar” ou “exceder” significando verdadeira contrariedade à lei, amoldando-o, por isso, como ato secundário ilegal, e não como ato primário inconstitucional.

Cumpre registrar que as crises de legalidade não podem ser objeto de análise em sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade, no âmbito da qual somente são impugnáveis as conflagrações de constitucionalidade. Em outra senda, pelo controle difuso, não há qualquer impedimento à averiguação da validade de ato do Poder Público pelo Judiciário, seja nas análises de constitucionalidade, quanto nas de legalidade, não se fazendo presentes as limitações que se colocam ao controle concentrado.

Transcreve-se os seguintes julgados, de onde se extraiu as diferenciações entre o controle de constitucionalidade e o controle de constitucionalidade, para que melhor se entenda o que já explicado:

A Confederação das Federações das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil - CONFAEAB ajuíza a presente ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, impugnando o "art. 1º, do Decreto nº 4.560/02, publicado no Diário Oficial da União, de 31.12.2002, que altera o Decreto nº 90.922, de 6 de fevereiro de 1985, regulamentador da Lei nº 5.524, de 5 de novembro de 1968" (fls. 02/03). Sustenta-se, na presente ação direta, que o decreto presidencial em questão ofende as normas inscritas no art. 22, incisos I e XVI, c/c o art. 44, todos da Constituição Federal (fls. 21). Para apreciar o cabimento da presente ação direta, impõe-se analisar questão preliminar pertinente à própria admissibilidade, na espécie, do processo de fiscalização normativa abstrata, considerada a natureza mesma do decreto regulamentar em causa. E, ao fazê-lo, reconheço que a controvérsia instaurada na presente sede processual diz respeito a típica hipótese de antagonismo entre ato normativo de caráter secundário, de um lado, e determinado diploma legislativo, de outro, a refletir a existência de mero conflito de legalidade. Na realidade, como o ato infralegal ora questionado foi editado em função da Lei federal nº 5.524/68, torna-se claro que a situação de antinomia acaso existente poderia traduzir, eventualmente, comportamento administrativo efetivado em desarmonia com o texto da lei, circunstância essa que se revelaria apta a configurar hipótese de simples incompatibilidade legal. A controvérsia ora em análise, portanto, conduz a uma só conclusão: quer se trate de normas editadas "contra legem", quer se cuide de regras promulgadas "ultra legem", a situação de contraste a ser examinada reduz-se, no caso, a uma única hipótese, consistente no reconhecimento de que ato de menor hierarquia jurídica teria transgredido a normatividade emergente de um estatuto de caráter meramente legal. Cumpre registrar, neste ponto, considerados os próprios fundamentos em que se apóia a pretensão de inconstitucionalidade ora deduzida, que o Poder Executivo - ao desempenhar, concretamente, a sua competência regulamentar - não se reduz à condição de mero órgão de reprodução do conteúdo material do ato legislativo a que se vincula, não obstante o estado de subordinação hierárquico-normativa a que está sujeito o exercício da função regulamentar. Há que se reconhecer, desse modo, ao Poder Executivo, embora limitadamente, um círculo de livre regramento da matéria, em cujo âmbito seja-lhe atribuído um resíduo de atuação jurídica. Daí a advertência do saudoso Ministro CARLOS MEDEIROS SILVA, cujo magistério vale rememorar (RDA 33/457): "A função do Regulamento não é reproduzir, copiando-os literalmente, os termos da lei. Seria um ato inútil, se assim fosse entendido. Deve, ao contrário, evidenciar e tornar explícito tudo aquilo que a lei encerra. Assim, se uma faculdade, ou atribuição, está implícita no texto legal, o regulamento não exorbitará se lhe der forma articulada e explícita." (grifei) Essa mesma orientação é perfilhada pelo eminente Professor MIGUEL REALE, em lição exposta em parecer jurídico que produziu nos autos da ADI 561/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 179/35-73, 63): "Os regulamentos têm por fim tornar possível a execução ou aplicação da lei, preenchendo lacunas de ordem prática ou técnica porventura nela existentes, sendo plenamente legítimas as regras destinadas à consecução dos objetivos visados pelo legislador. Essa é uma exigência conatural à atividade administrativa, e corresponde à dinâmica do Direito." (grifei) Vê-se, desse modo, que o eventual extravasamento dos limites materiais do diploma legislativo em causa (Lei federal nº 5.524/68), por parte do ato ora questionado, poderá configurar estado de direta insubordinação aos comandos da lei, matéria essa que, em função de sua natureza mesma, acha-se pré-excluída do âmbito temático de incidência da fiscalização abstrata de constitucionalidade. De outro lado, e mesmo que, a partir do vício jurídico da ilegalidade, fosse lícito vislumbrar, num desdobramento ulterior, a potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-ia em face de situação de inconstitucionalidade indireta ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada: "Não cabe ação direta quando o ato normativo questionado, hierarquicamente inferior à lei, deve ser confrontado diretamente com a legislação ordinária e só indiretamente com a Constituição, pois, neste caso, cuida-se de ilegalidade e não de inconstitucionalidade." (RTJ 172/47-48, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao refletir esse entendimento, firmou-se no sentido de repelir a possibilidade de controle jurisdicional de constitucionalidade, por via de ação, nas situações em que a impugnação "in abstracto" venha a incidir sobre atos, que, não obstante veiculadores de conteúdo normativo, ostentem caráter meramente ancilar ou secundário, precisamente porque editados em função das leis a que aderem e cujo texto pretendem regulamentar ou implementar: "As resoluções editadas pelo Poder Público, que veiculam regras de conteúdo meramente regulamentar, não se submetem à jurisdição constitucional de controle 'in abstracto', pois tais atos estatais têm por finalidade, em última análise, viabilizar, de modo direto e imediato, a própria execução da lei. Se a interpretação administrativa da lei divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o Decreto impugnado pretendeu regulamentar, quer porque se tenha projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer porque tenha investido contra legem, a questão posta em análise caracterizará típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar a utilização do mecanismo processual de fiscalização normativa abstrata." (RTJ 179/35-37, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) É por tal razão que esta Suprema Corte já advertiu que crises de legalidade - que irrompem no âmbito do sistema de direito positivo, caracterizadas pela inobservância, por parte da autoridade pública, do seu dever jurídico de subordinação normativa à lei - revelam-se, por sua natureza mesma, insuscetíveis de controle jurisdicional concentrado (RTJ 152/352, Rel. Min. CELSO DE MELLO), pois a finalidade a que se acha vinculado o processo de fiscalização normativa abstrata restringe-se, tão-somente, à aferição de situações configuradoras de inconstitucionalidade direta, imediata e frontal (RTJ 133/69, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RTJ 134/558, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 137/580, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE MELLO): "- Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado 'ultra legem', quer porque tenha permanecido 'citra legem', quer, ainda, porque tenha investido 'contra legem', a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. - O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada." (RTJ 158/54-55, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Em suma: para que se viabilize o controle abstrato de constitucionalidade, é preciso que a situação de conflito entre o ato estatal dotado de menor positividade jurídica e o texto da Constituição transpareça, de maneira direta e imediata, do cotejo que se faça entre as espécies normativas em relação de antagonismo, independentemente de o contraste hierárquico com a Carta Política exigir, como sucede no caso, um necessário confronto prévio com qualquer estatuto de caráter legal, como tem enfatizado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Não se legitima a instauração do controle normativo abstrato, quando o juízo de constitucionalidade depende, para efeito de sua prolação, do prévio cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outras normas jurídicas infraconstitucionais editadas pelo Poder Público. A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame 'in abstracto' do ato estatal impugnado seja realizado, exclusivamente, à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado." (RTJ 147/545-546, Rel. Min. CELSO DE MELLO) A inviabilidade da presente ação direta, em decorrência das razões mencionadas, impõe uma observação final: no desempenho dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar. Cabe acentuar, neste ponto, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira validade constitucional da norma legal que inclui, na esfera de atribuições do Relator, a competência para negar trânsito, em decisão monocrática, a recursos, pedidos ou ações, quando incabíveis, inviáveis, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível com a jurisprudência predominante do Tribunal (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175). Impõe-se enfatizar, por necessário, que esse entendimento jurisprudencial é também aplicável aos processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 563/DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD - ADI 593/GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - ADI 2.060/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.207/AL, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.215/PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis que, tal como já assentou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento positivo brasileiro "não subtrai, ao Relator da causa, o poder de efetuar - enquanto responsável pela ordenação e direção do processo (RISTF, art. 21, I) - o controle prévio dos requisitos formais da fiscalização normativa abstrata, o que inclui, dentre outras atribuições, o exame dos pressupostos processuais e das condições da própria ação direta" (RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Sendo assim, considerando as razões expostas, não conheço da presente ação direta de inconstitucionalidade, restando prejudicada, em conseqüência, a apreciação do pedido de medida cautelar. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se. Brasília, 15 de dezembro de 2005. Ministro CELSO DE MELLO Relator (ADI 3052 MC / DF - DISTRITO FEDERAL
MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE; Relator(a): Min. CELSO DE MELLO; Julgamento: 15/12/2005) (grifou-se)

EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. ICMS: "GUERRA FISCAL". AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS DO REGULAMENTO DO ICMS (DECRETO Nº 2.736, DE 05.12.1996) DO ESTADO DO PARANÁ. ALEGAÇÃO DE QUE TAIS NORMAS VIOLAM O DISPOSTO NO § 6º DO ART. 150 E NO ART. 155, § 2º, INCISO XII, LETRA "g", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO OS ARTIGOS 1º E 2º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 24/75. QUESTÃO PRELIMINAR, SUSCITADA PELO GOVERNADOR, SOBRE O DESCABIMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, PORQUE O DECRETO IMPUGNADO É MERO REGULAMENTO DA LEI Nº 11.580, DE 14.11.1996, QUE DISCIPLINA O ICMS NAQUELA UNIDADE DA FEDERAÇÃO, ESTA ÚLTIMA NÃO ACOIMADA DE INCONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR. 1. Tem razão o Governador, enquanto sustenta que esta Corte não admite, em A.D.I., impugnação de normas de Decreto meramente regulamentar, pois considera que, nesse caso, se o Decreto exceder os limites da Lei, que regulamenta, estará incidindo, antes, em ilegalidade. É que esta se coíbe no controle difuso de legalidade, ou seja, em ações outras, e não mediante a A.D.I., na qual se processa, apenas, o controle concentrado de constitucionalidade. 2. No caso, porém, a Lei nº 11.580, de 14.11.1996, que dispõe sobre o ICMS, no Estado do Paraná, conferiu certa autonomia ao Poder Executivo, para conceder imunidades, não- incidências e benefícios fiscais, ressalvando, apenas, a observância das normas da Constituição e da legislação complementar. 3. Assim, o Decreto nº 2.736, de 05.12.1996, o Regulamento do ICMS, no Estado do Paraná, ao menos nesses pontos, não é meramente regulamentar, pois, no campo referido, desfruta de certa autonomia, uma vez observadas as normas constitucionais e complementares. 4. Em situações como essa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ainda que sem enfrentar, expressamente, a questão, tem, implicitamente, admitido a propositura de A.D.I., para impugnação de normas de Decretos. Precedentes. Admissão da A.D.I. também no caso presente. 5. Algumas das normas impugnadas não podem ser objeto de consideração desta Corte, em A.D.I., porque, temporárias, já produziram os respectivos efeitos antes de sua propositura, ficando sujeitas ao controle difuso de constitucionalidade, nas vias e instâncias próprias, e não ao controle concentrado, "in abstrato", segundo jurisprudência já pacificada no Tribunal. Quanto a elas, portanto, a Ação está prejudicada e por isso não é conhecida. 6. A Ação é, porém, conhecida no que concerne às demais normas referidas na inicial. E, a respeito, a plausibilidade jurídica ("fumus boni iuris") e o "periculum in mora" estão caracterizados, conforme inúmeros precedentes do Tribunal, relacionados à chamada "guerra fiscal", entre várias unidades da Federação, envolvendo o I.C.M.S. 7. Conclusões: a) não é conhecida, porque prejudicada, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quanto ao art. 51, inciso V, e seu § 5º, "a"; ao inciso I do art. 577, ambos do Decreto nº 2.736, de 05.12.1996 (Regulamento do ICMS do Paraná); ao item 78 do Anexo I; ao item 6 da Tabela I do Anexo II; ao item 17-A da Tabela I do Anexo II; e ao item 22 da Tabela I do Anexo II; b) conhecida a A.D.I., quanto aos demais dispositivos impugnados na inicial, e deferida a medida cautelar, para suspender a eficácia, a partir desta data, das seguintes normas do mesmo Decreto (nº 2.736, de 5.12.1996, do Paraná): I - art. 15, III, "d"; II - art. 51, IV, §§ 3º e 4º; III - art. 51, XV e § 15; IV - art. 51, XVI e § 15; V - art. 51, XVII e § 16; VI - art. 54, inc. I; VII - art. 57, § 2º, "a" e "c"; VIII - art. 78 e seu parágrafo único; IX - art. 92-A; X - artigos 572 a 584, excetuado, apenas, o inc. I do art. 577. 8. Todas as questões decididas por unanimidade. (ADI 2155 MC, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 15/02/2001, DJ 01-06-2001 PP-00076 EMENT VOL-02033-02 PP-00249 RTJ VOL-00177-03 PP-01136) (grifou-se)

E M E N T A: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ATO NORMATIVO. DECRETO FEDERAL Nº 1990, DE 29.08.1996: ATO ADMINISTRATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA AÇÃO. 1. A Lei nº 8.031, de 12.04.1990, criou o Programa Nacional de Desestatização e deu outras providências. 2. E o Decreto nº 1.990, de 29.08.1996, baixado pela Presidência da República, "no uso da atribuição que lhe confere o artigo 84, inciso IV, da Constituição e tendo em vista o disposto" naquela Lei, visou a executá-la. 3. Trata-se, pois, de ato administrativo de mera execução da Lei. Não propriamente normativo. Insuscetível, assim, de controle concentrado de constitucionalidade, "in abstrato", mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, pois esta só é admitida pela C.F., quando impugna "ato normativo" (art. 102, I, "a"). 4. Se o Decreto, eventualmente, tiver excedido os limites da Lei nº 8.031, de 12.04.1990, ou mesmo do Decreto nº 1.204, de 29.07.1994, que a regulamentou, conforme se alegou na inicial, então poderá ser acoimado de ilegal, nas instâncias próprias, que realizam o controle difuso, "in concreto", de legalidade dos atos administrativos. 5. Aliás, o próprio controle jurisdicional de constitucionalidade de ato meramente administrativo, de execução de lei, pode, igualmente, ser feito nas instâncias ordinárias do Poder Judiciário. Não, assim, diretamente perante esta Corte. 6. Tudo conforme precedentes referidos nas informações. 7. A.D.I. não conhecida, prejudicado o requerimento de medida cautelar. (ADI 1544, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/1997, DJ 05-09-1997 PP-41869 EMENT VOL-01881-01 PP-00001) (grifou-se)

Para o eminente professor Alexandre de Moraes, seguindo-se o entendimento aventado pela Corte Excelsa, somente é possível o controle de constitucionalidade dos decretos, que são elaborados tendo em vista a inexistência de lei anterior que porventura pudesse vir a ser regulamentada por eles. Nas demais hipóteses não é cabível o controle de constitucionalidade, visto que a violação reside na contrariedade com a lei, ainda que reflexa ou indireta ao texto constitucional, sendo, por isso mesmo, ilegal e não inconstitucional. Vejamos in litteris:

O Supremo Tribunal Federal, excepcionalmente, tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo. Nessa hipótese haverá possibilidade de análise de compatibilidade diretamente com a Constituição Federal para verificar-se a observância do princípio da reserva legal.

Assim, em relação aos decretos presidenciais (CF, art 84 IV), o Supremo Tribunal Federal, após consagrar o entendimento de que existe para assegurar a fiel execução das leis, entende possível o controle concentrado de constitucionalidade dos denominados decretos autônomo, afirmando que, “não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição exige” (medida liminar –STF- Pleno – Adin1.435-8).

Nos demais casos, a questão situa-se somente no âmbito legal, não possibilitando o conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade.

Assim decreto executivo que, editado para regulamentar a lei, venha a divergir seu sentido ou conteúdo, extravasando a previsão do art. 84, IV, da Constituição Federal (insubordinação executiva), não poderá ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que essa violação, reflexa e indiretamente, atinja o texto constitucional, pois regulamento contrário à lei é ilegal.

Da mesma forma, em todas as hipóteses em que a edição de atos normativos secundários, em função das leis que pretendem regulamentar, apresentarem vícios jurídicos, por desrespeito à subordinação normativa à lei, não caberá ação direta de inconstitucionalidade, devendo o problema ser solucionado pela supremacia da aplicação da lei.[47]

Debruçando-nos sobre a vasta jurisprudência do Judiciário baiano, percebemos que a Lei Municipal nº 7201/07, bem como o Decreto Federal nº 5296/2004 já tiveram sua constitucionalidade questionada, por via difusa, conforme se passa a transcrever:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CONTRA MUNICÍPIO DE SALVADOR, VISANDO A CONCESSÃO DA GRATUIDADE NO TRANSPORTE COLETIVO. PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL. SENTENÇA QUE JULGOU IMPROCEDENTE A AÇÃO. RECURSO DE APELAÇÃO DO AUTOR QUESTIONANDO INCIDENTALMENTE A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL Nº 7201/07 E DO DECRETO FEDERAL 5296/2004. RESERVA DE PLENÁRIO. REMESSA AO TRIBUNAL PLENO. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDO E DECLARADA A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 2º DA LEI MUNICIPAL Nº 7201/2007. PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. PRELIMINAR ARGUIDA DE ERROR IN PROCEDENDO E IN JUDICANDO REJEITADA. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.

O Plenário deste E. Tribunal de Justiça, em decorrência da arguição de incidente de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei Municipal nº 7201/2007, declarou a sua constitucionalidade, na sessão de 12/06/2013. Como é sabido, no nosso sistema processual, o juiz é o destinatário da prova, a quem cabe à análise da conveniência e necessidade da sua produção.

Com efeito, o poder instrutório do juiz, a teor do que dispõe o art. 130, do CPC, permite-lhe o indeferimento de provas que reputar desnecessárias para firmar seu juízo de convicção, com tais fundamentos rejeita-se a preliminar suscitada pelo apelante, pela ausência de perícia médica.

Quanto ao mérito da pretensão recursal, ficou demonstrado que o autor, ora apelante, não se enquadrou ao quanto estabelecido na lei, ou seja, acuidade visual, que é a forma de classificar a cegueira, igual ou menor que 0,05 para ser considerado deficiente visual.

(Classe: Apelação n.º 0072086-05.2010.8.05.0001 Foro de Origem: Salvador; Órgão: Primeira Câmara Cível; Relator: Des. Augusto de Lima Bispo; Apelante: Claudio Almeida dos Santos; Defensor: Astolfo Santos Simões de Carvalho; Apelado: Municipio do Salvador; Procurador: Roberto O dwyer; Assunto: Transporte Terrestre).[48]

Interessante notar que, mesmo após decisão exarada pelo Tribunal Pleno Do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que resolveu pela constitucionalidade da lei que remete ao Decreto 5296/2004, as câmaras cíveis, que apreciavam as causas oriundas de litígios sobre negativa do passe livre, continuarão a tratar a questão de forma equânime, de maneira a enaltecer o princípio da dignidade da pessoa humana, senão vejamos:

AÇÃO ORDINÁRIA. DENEGAÇÃO DE BENEFÍCIO DO PASSE LIVRE NO SISTEMA DE TRANSPORTE COLETIVO DO MUNICÍPIO DE SALVADOR A PESSOA PORTADORA DE DOENÇA MENTAL. IMPROCEDÊNCIA. DEMANDANTE BENEFICIÁRIO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. DISPENSA DO PAGAMENTO DE CUSTAS PROCESSUAIS E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. APELAÇÃO. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE. PRELIMINAR ARGUIDA DE ERROR IN PROCEDENDO E IN JUDICANDO REJEITADA. RESERVA DE PLENÁRIO. REMESSA AO TRIBUNAL PLENO. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDO E DECLARADA A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 2º DA LEI MUNICIPAL Nº 7201/2007. PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. DIREITO À GRATUIDADE DO TRANSPORTE COLETIVO URBANO. PREENCHIMENTO DE REQUISITOS ESTABELECIDOS EM LEI ESTADUAL Nº 7.201/2007, PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E ISONOMIA. SENTENÇA REFORMÁVEL. RECURSO PROVIDO. O Plenário deste E. Tribunal de Justiça, em decorrência da arguição de incidente de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei Municipal nº 7201/2007, declarou a sua constitucionalidade, na sessão de 12/06/2013. Como é sabido, no nosso sistema processual, o juiz é o destinatário da prova, a quem cabe à análise da conveniência e necessidade da sua produção. Com efeito, o poder instrutório do juiz, a teor do que dispõe o art. 130, do CPC, permite-lhe o indeferimento de provas que reputar desnecessárias para firmar seu juízo de convicção, com tais fundamentos rejeita-se a preliminar suscitada pelo apelante. Acolhível a pretensão de gratuidade do transporte coletivo Municipal manifestada por quem demonstra a condição de deficiente mental, hipossuficiente nos termos da Lei nº 7.201/2007 e considerando princípios constitucionais, sobretudo o direito à saúde, a decisão merece reforma porque dissociada das provas carreadas aos autos. Evidentemente a patologia que acomete o Autor, deficiência mental, comprometem suas habilidades, conforme se depreendem das provas produzidas. A superveniência de incapacidade comprovada após os 18 anos de idade não pode ser tratada de forma diversa em relação aos deficientes que adquiriram a patologia na infância, sob pena de afronta ao princípio da isonomia e dignidade da pessoa humana. (Apelação 0051997-92.2009.8.05.0001 ; Relator(a): Augusto de Lima Bispo; Comarca: Salvador; Órgão julgador: Primeira Câmara Cível; Data do julgamento: 10/02/2014 Data de registro: 12/02/2014[49]) (grifos não no original)

Averigue-se que os decretos, assim como todos os atos administrativos, podem sofrer controle judicial. Como já demonstrado acima, o art. 5°, parágrafo 1°, alínea “d” do Decreto Federal 5296/2004, está eivado de vício material de inconstitucionalidade, eis que fere de morte princípios constitucionais, notadamente o da isonomia e da dignidade da pessoa humana e, conforme se demonstrará a seguir, ele também nega vigência à Convenção Internacional de proteção aos deficientes, a qual recebeu status de emenda constitucional, tendo em vista que ingressou em nosso Ordenamento através do procedimento ofertado pelo Congresso Nacional para aprovação das emendas.

7. Das Convenções Internacionais de Proteção aos Deficientes Físicos e Mentais.

Por certo, o Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, foi editado e sancionado pelo Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição.

Importante apreender que o Congresso Nacional aprovou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência conforme o procedimento do § 3º do art. 5º da Constituição, sendo, deste modo, equivalente à emenda constitucional, podendo servir de parâmetro para a efetivação do controle de constitucionalidade.

Por conseguinte, aplica-se também à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, os parágrafos 3° e 4° do art. 5° da Constituição Federal, conforme transcrição infra:

“§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

A Convenção, da qual o Brasil também foi signatário, tem como objetivo promover o pleno exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais por parte das pessoas com deficiência. Para tanto, ela leva em consideração o fato de que a maioria das pessoas com deficiência vive em condições de pobreza e, por isso, reconhece a necessidade crítica de lidar com o impacto negativo da pobreza sobre pessoas com deficiência.

Nesta linha de intelecção, a Convenção foi elaborada para proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência, prestando significativa contribuição, com o fito de corrigir as profundas desvantagens sociais delas e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos.[50]

Neste ensejo, trasladam-se importantes trechos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência:

Artigo 3

Princípios gerais

Os princípios da presente Convenção são:

a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;

b) A não-discriminação;

c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;

d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade;

e) A igualdade de oportunidades;

f) A acessibilidade;

g) A igualdade entre o homem e a mulher;

h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

Artigo 5

Igualdade e não-discriminação

1.Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.

2.Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.

3.A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.

4.Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias.

Artigo 19

Vida independente e inclusão na comunidade

Os Estados Partes desta Convenção reconhecem o igual direito de todas as pessoas com deficiência de viver na comunidade, com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas, e tomarão medidas efetivas e apropriadas para facilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo desse direito e sua plena inclusão e participação na comunidade, inclusive assegurando que:

Artigo 20

Mobilidade pessoal

Os Estados Partes tomarão medidas efetivas para assegurar às pessoas com deficiência sua mobilidade pessoal com a máxima independência possível:

a) Facilitando a mobilidade pessoal das pessoas com deficiência, na forma e no momento em que elas quiserem, e a custo acessível;

b) Facilitando às pessoas com deficiência o acesso a tecnologias assistivas, dispositivos e ajudas técnicas de qualidade, e formas de assistência humana ou animal e de mediadores, inclusive tornando-os disponíveis a custo acessível;

c) Propiciando às pessoas com deficiência e ao pessoal especializado uma capacitação em técnicas de mobilidade;

d) Incentivando entidades que produzem ajudas técnicas de mobilidade, dispositivos e tecnologias assistivas a levarem em conta todos os aspectos relativos à mobilidade de pessoas com deficiência.

Torna-se imperioso constatar que a adesão a um tratado vincula o Estado signatário, em relação aos outros, dentro da órbita do Direito Internacional. Neste liame Hildebrando Accioly assevera que:

O tratado é uma norma internacional com efeitos não somente em relação à ordem jurídica do estado contratante, mas vincula-o, igualmente, enquanto sujeito de direito internacional, em relação ao conteúdo do tratado, até que este seja extinto ou denunciado aos demais estados contratantes. Cumpre advertir que a própria lei constitucional não pode isentar o estado de responsabilidade por violação de seus deveres internacionais.[51]

Conclui o referendado autor:

A estrita observância de tratados, não sujeitos a alteração pela lei interna posterior, impõe-se como corolário lógico e imperativo jurídico, sob pena de esvaziar o processo de institucionalização do direito internacional e de construção de seu conteúdo, devendo tanto a legislação quanto a jurisprudência internas observarem tais preceitos. Em contraste com a concepção nacionalista das relações entre o estado e o mundo, a visão internacionalista insere o estado em sociedade de estados, que abrange todo o globo, e de que os estados fazem parte. A própria noção de sociedade internacional, enquanto entidade, superior a cada um de seus integrantes, situa cada estado, particularmente considerado, em relação ao todo. O império da lei limita a soberania, submetendo o estado, em sua atuação, à legalidade internacional, na ação restritiva resultante das obrigações deste em relação à sociedade.[52]

A Convenção de Guatemala, elaborada em 28 de março de 1999, tem por objetivo eliminar todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, propiciando sua plena integração à sociedade. Neste afã, todos os Estados devem adotar medidas em todos os âmbitos para diminuir as diferenças, tais quais:

a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração;

b) medidas para que os edifícios, os veículos e as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o transporte, a comunicação e o acesso das pessoas portadoras de deficiência;

c) medidas para eliminar, na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas portadoras de deficiência; e

d) medidas para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta matéria estejam capacitadas a fazê-lo.[53]

Como prioridade, a Convenção determina que sejam adotadas as seguinte medidas:

a) prevenção de todas as formas de deficiência preveníveis;

b) detecção e intervenção precoce, tratamento, reabilitação, educação, formação ocupacional e prestação de serviços completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida para as pessoas portadoras de deficiência; e

c) sensibilização da população, por meio de campanhas de educação, destinadas a eliminar preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o direito das pessoas a serem iguais, permitindo desta forma o respeito e a convivência com as pessoas portadoras de deficiência.[54]

Um aspecto interessante elencado no artigo IV da Convenção, ora pormenorizada, é o incentivo à pesquisa científica e tecnológica relacionada com a prevenção das deficiências, o tratamento, a reabilitação e a integração na sociedade de pessoas portadoras de deficiência, bem como o desenvolvimento de meios e recursos destinados a facilitar ou promover a vida independente, a autossuficiência e a integração total, em condições de igualdade, à sociedade das pessoas portadoras de deficiência.

Para efetivação de tudo quanto exposto, os Estados-Partes deverão comprometer-se a apresentar relatórios, a cada quatro anos, ao Secretário-Geral da Organização para que o envie à Comissão para análise e estudo, incluindo as medidas que os Estados membros tiverem adotado na aplicação desta Convenção e qualquer progresso alcançado na eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, devendo conter, também, todas as circunstâncias ou dificuldade que afete o grau de cumprimento decorrente desta Convenção.

Não poderíamos deixar de falar sobre a Convenção de Guatemala, também chamada de Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, promulgada pelo Decreto 3956/2001.

Esta Convenção se colocou aberta a todos os Estados membros para sua anuência, na cidade da Guatemala, Guatemala, em 8 de junho de 1999 e, a partir dessa data, permaneceu aberta à assinatura de todos os Estados na sede da Organização dos Estados Americanos até sua entrada em vigor. Todavia, depois de entrar em vigor, ela ficou aberta à adesão de todos os Estados que não a tenham assinado em período anterior.

Seu texto é iniciado pela conceituação de expressões importantíssimas na busca da isonomia material entre todas as pessoas, tais quais, “deficiência” e “discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência”, senão vejamos:

Artigo I

Para os efeitos desta Convenção, entende-se por:

1. Deficiência

O termo "deficiência" significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.

2. Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência

a) o termo "discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.

b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação.

Depreende-se do texto da Convenção pormenorizada que objetiva-se por meio dela combater todas as formas de discriminação, de maneira que não devem prosperar as diferenciações entre pessoas não portadoras de deficiência e as que são portadoras, e as que são portadoras entre elas mesmas.

Assim, o art. 5°, § 1°, I, “d” do Decreto Federal n° 5296/2004, ora sindicalizado, deve ser rechaçado do nosso Ordenamento jurídico, dado que cria diferenciação não só entre o ser não dotado de deficiência e o que é dotado, mas também entre os que são dotados uns para com os outros, em virtude de conceder passe livre aos que contraíram a deficiência mental antes dos 18 (dezoito) anos e não o conceder aos que contraíram a deficiência depois desta idade. Não há diferença! Tanto o que contraiu a doença antes dos dezoito anos, quanto o que só adquiriu após esta idade, merecem o referido benefício.

Vejamos abaixo os objetivos desta Convenção:

Artigo II

Esta Convenção tem por objetivo prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade.

Artigo III

Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a:

1. Tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, entre as quais as medidas abaixo enumeradas, que não devem ser consideradas exclusivas:

a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração;

b) medidas para que os edifícios, os veículos e as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o transporte, a comunicação e o acesso das pessoas portadoras de deficiência;

c) medidas para eliminar, na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas portadoras de deficiência; e

d) medidas para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta matéria estejam capacitadas a fazê-lo.

2. Trabalhar prioritariamente nas seguintes áreas:

a) prevenção de todas as formas de deficiência preveníveis;

b) detecção e intervenção precoce, tratamento, reabilitação, educação, formação ocupacional e prestação de serviços completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida para as pessoas portadoras de deficiência; e

c) sensibilização da população, por meio de campanhas de educação, destinadas a eliminar preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o direito das pessoas a serem iguais, permitindo desta forma o respeito e a convivência com as pessoas portadoras de deficiência.

Artigo IV

Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a:

1. Cooperar entre si a fim de contribuir para a prevenção e eliminação da discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência.

2. Colaborar de forma efetiva no seguinte:

a) pesquisa científica e tecnológica relacionada com a prevenção das deficiências, o tratamento, a reabilitação e a integração na sociedade de pessoas portadoras de deficiência; e

b) desenvolvimento de meios e recursos destinados a facilitar ou promover a vida independente, a auto-suficiência e a integração total, em condições de igualdade, à sociedade das pessoas portadoras de deficiência.

Conclama esta Convenção que deve ser criada uma Comissão para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, com o fito de acompanhar o cumprimento pelos Estados-partes dos compromissos assumidos por ocasião da adesão à Convenção, conforme se transcreve abaixo:

Artigo V

1. Os Estados Partes promoverão, na medida em que isto for coerente com as suas respectivas legislações nacionais, a participação de representantes de organizações de pessoas portadoras de deficiência, de organizações não-governamentais que trabalham nessa área ou, se essas organizações não existirem, de pessoas portadoras de deficiência, na elaboração, execução e avaliação de medidas e políticas para aplicar esta Convenção.

2. Os Estados Partes criarão canais de comunicação eficazes que permitam difundir entre as organizações públicas e privadas que trabalham com pessoas portadoras de deficiência os avanços normativos e jurídicos ocorridos para a eliminação da discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência.

Artigo VI

1. Para dar acompanhamento aos compromissos assumidos nesta Convenção, será estabelecida uma Comissão para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, constituída por um representante designado por cada Estado Parte.

2. A Comissão realizará a sua primeira reunião dentro dos 90 dias seguintes ao depósito do décimo primeiro instrumento de ratificação. Essa reunião será convocada pela Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos e será realizada na sua sede, salvo se um Estado Parte oferecer sede.

3. Os Estados Partes comprometem-se, na primeira reunião, a apresentar um relatório ao Secretário-Geral da Organização para que o envie à Comissão para análise e estudo. No futuro, os relatórios serão apresentados a cada quatro anos.

4. Os relatórios preparados em virtude do parágrafo anterior deverão incluir as medidas que os Estados membros tiverem adotado na aplicação desta Convenção e qualquer progresso alcançado na eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. Os relatórios também conterão todas circunstância ou dificuldade que afete o grau de cumprimento decorrente desta Convenção.

5. A Comissão será o foro encarregado de examinar o progresso registrado na aplicação da Convenção e de intercambiar experiências entre os Estados Partes. Os relatórios que a Comissão elaborará refletirão o debate havido e incluirão informação sobre as medidas que os Estados Partes tenham adotado em aplicação desta Convenção, o progresso alcançado na eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, as circunstâncias ou dificuldades que tenham tido na implementação da Convenção, bem como as conclusões, observações e sugestões gerais da Comissão para o cumprimento progressivo da mesma.

6. A Comissão elaborará o seu regulamento interno e o aprovará por maioria absoluta.

7. O Secretário-Geral prestará à Comissão o apoio necessário para o cumprimento de suas funções

Deveras, esta Convenção vigorará indefinidamente, porém qualquer Estado Parte poderá denunciá-la, cessando seus efeitos para o Estado denunciante, permanecendo em vigor para os demais Estados Partes. Contudo, a denúncia não eximirá o Estado Parte das obrigações que lhe impõe esta Convenção com respeito a qualquer ação ou omissão ocorrida antes da data em que a denúncia tiver produzido seus efeitos.

Vê-se que o requisito etário trazido pelo Decreto Federal não condiz com a vontade do legislador constitucional, ao fazer a Convenção de Proteção aos Deficientes ingressar em nosso Ordenamento Jurídico com status de Emenda Constitucional e a Convenção de Guatemala com status de norma supralegal, devendo, então, receber interpretação ampliada e conforme a nossa Carta Política.

8. Das consequências causadas pelo deferimento da gratuidade.

Sumariza-se da pesquisa deflagrada através deste trabalho científico, que as organizações fincadas em tutelar os direitos das pessoas em situação de deficiência possuem grande relevo no movimento inclusivo e antidiscriminatório daqueles que involuntariamente não conseguem se virem inseridos nos diversos setores da vida.

A atuação do Ministério Público, em âmbito Federal e Estadual, com a organização de repartições voltadas para o combate de práticas excludentes da pessoa em situação de deficiência tem sido muito valiosa e repercute positivamente, elevando os dados estatísticos daqueles que, ainda que física ou mentalmente impossibilitado, conquistam empregos, públicos ou privados, e ingressam em instituições de ensino, antes disponível apenas para os seres considerados “normais”.

Não há como negar já ter havido evolução, apesar de resistir a problemática da não concessão da gratuidade nos transportes públicos às pessoas em situação de deficiência, por via administrativa. Em nossa praxe, o princípio da isonomia não tem se concretizado da forma como determina a nossa Lei Maior, de modo que as minorias ainda não são devidamente respeitadas.

Sob o mesmo enfoque, pode-se afirmar que, enquanto não concedido o passe livre administrativamente estar-se-á violando o direito mais elementar de todos, que é o da dignidade da pessoa humana, que consiste também na liberdade de se locomover, de estar aonde se quer estar. E para aqueles que além de deficientes mentais, são hipossuficientes financeiramente, este direito só se concretizaria se subvencionado pelo Poder Público.

A concessão do passe livre aos deficientes mentais de Salvador, que contraíram a doença após os 18 (dezoito) anos de idade, causaria uma verdadeira progressão no fenômeno da inclusão social, de maneira que os deficientes mentais poderiam se locomover pela cidade com maior facilidade.

Assim, eles poderão exercer suas atividades, seja no âmbito laboral ou estudantil, sem desprezar os momentos recreativos. Nada seria mais justo, haja vista que os deficientes mentais, que estão acobertados pelo direito à gratuidade nos transportes públicos municipais, são eminentemente hipossuficientes, sem condições de prover suas necessidades econômico-financeiras, e, como corolário, sem a possibilidade de pagar pelas suas idas e vindas ao entorno desta Capital.

Do mesmo modo não ocorreria se a eles não fosse concedida a gratuidade nos transportes públicos municipais, pois não teriam a oportunidade de envolverem-se nos eventos comuns da vida, restando segregados da sociedade.

Conclusão

À guisa de considerações finais, podemos dizer que o art. 5°, § 1º, alínea “d” do Decreto Federal n° 5296/2004 colide com nosso Ordenamento Jurídico vigente. Não há razão para conceituar deficiente mental apenas como aquele cuja enfermidade tenha se manifestado antes dos 18 (dezoito) anos ou que tenha limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas.

A pessoa com deficiência tem direito à inclusão, que consiste na igualdade de alcance ao espaço comum da vida social. A mudança deve começar na própria sociedade, pois se esta não for democraticamente inclusiva, onde todos possam de forma igualitária se manifestar nas diferentes instâncias de tomada de decisões, tendo disponível o suporte que for preciso para ensejar essa participação, tal igualdade não será atingida.

De nada serve ser garantida a igualdade por nossa Carta Política, se, na prática, mecanismos outros de regulamentação da vida, como o Decreto Federal, cerceiam as oportunidades que viabilizam a concretização da igualdade.

Os setores políticos e governamentais ainda precisam tornar coerente a prática com os escritos legais. Em relação às pessoas “especiais”, há de remover todos os obstáculos que as impedem de transitar no espaço comum aos demais. Assim, o Poder Executivo transmite para a pessoa com deficiência e para as pessoas que estão a sua volta quase que a totalidade do encargo sobre o alcance do acesso aos “lugares comuns”.

Aí se enquadra o importante papel do Poder Judiciário, pois é por ele que dará a edificação de efetivo respeito a essa parte da população, que com muito fervor procura a concretização de direitos, já garantidos nas leis e nos princípios.

[1] O método hipotético-dedutivo de Karl Popper emana “das generalizações aceitas, do todo, de leis abrangentes, para casos concretos, partes da classe que já se encontram na generalização” (LAKATOS, Eva Maria y MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. 4ª.ed. Editora Revista e Ampliada, São Paulo: Atlas, 2004, p. 71)

[2] Disponível em: http://esaj.tjba.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=6D8FDA798BA77EAD392639420E66470F.cjs2 Acesso em: 20/11/2015

[3] Disponível em: http://esaj.tjba.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=6D8FDA798BA77EAD392639420E66470F.cjs2 Acesso em: 20/11/2015

[4]Disponívem em: http://esaj.tjba.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=121818 Acesso em: 20/11/2015

[5] Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102000000100017 Acesso em 20/11/2014

[6] Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-82712010000200009&script=sci_arttext Acesso em: 20/11/2014

[7] FREUD, Sigmund “Inibição, Sintoma e Ansiedade”, in: S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XX. (1925-1926). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, p. 91 a 94.

[8] Lacan, J. (1985a). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)

[9] GOFFMAN. E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Ed. Guanabara, Rio de Janeiro: 2004, Pág. 06.

[10] Ibid. GOFFMAN. Pag. 7 e 8

[11] Ibid. GOFFMAN. Pag. 11

{C}[12]{C} Freud, S.. O estranho. Obras completas, ESB, v. XVII, Ed. Imago, Rio de Janeiro: (1919/1996)

[13] Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-14982010000200008&script=sci_arttext Acesso em 20/11/2014.

[14] TELFORD, C. W.; Sawrey. O indivíduo excepcional. Ed. Zahar , Rio de Janeiro, 1974.

{15} MEC - Ministério da Educação do Brasil (1997). Educação especial: deficiência mental. Brasília, DF: Autor. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/direitoaeducacao.pdf Acesso em 20/12/2014

[16] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Acesso em 04/12/2014.

[17] Disponível em: http://proex.pucminas.br/sociedadeinclusiva/sem3/marcos_clayton_oliveira.pdf Acesso em 04/12/2014.

[18] Ibid. GOFFMAN, p.15

[19] SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997, p. 34-35.

[20] Extraído de acórdão exarado pelo Supremo Tribunal Federal: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3390590 Acesso em 04/12/2014

[21] MARQUES, Carlos Alberto. Implicações políticas da institucionalização da deficiência. Revista Educação & Sociedade,vol. 19 n. 62 Campinas: abril, 1998. Extraído do sítio eletrônico:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000100006

{C}[22]{C} MARQUES, Carlos Alberto. "A estrutura paralela do ensino especial." Tribuna da Tarde. Juiz de Fora, 10 jul. 1992a, p. 4.

{C}[23]{C} http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/institucional/a-procuradoria-federal/apresentacao-1

{C}[24]{C} WIECKO DE CASTILHO, E. Mp Federal E Os Direitos Das Pessoas Com Deficiência. Revista Dialógico, nº 11 – ano V - do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático. Revista Eletrônica – www.mpd.gov.br.

[25] Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/institucional/grupos-de-trabalho/inclusao-pessoas deficiencia/institucional/apresentacao/ Acesso em 04/12/2014.

{C}[26]{C} Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=1056025&num_registro=200301510401&data=20040225&tipo=5&formato=PDF Acesso em 04/12/2014

[27] BINENBOJM. Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2 ed. Rio de Janeiro: Revonar, 2004, p. 10.

{C}[28]{C} DWORKIN, Ronald. O império do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1999p. 377-492.

{C}[29]{C} HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume 1, p. 289

{C}[30]{C} Ibid. DWORKIN. p. 492 e 305.

[31] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999 p. 320.

[32] BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 1998, p. 265

[33] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3° edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2002.

[34] DE MELO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3° edição, Melheiros Editores, São Paulo, 2002, p 35.

[35] ÁVILA, Humberto, TEORIA DOS PRINCÍPIOS, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, Malheiros Editores, São Paulo, 2003. p. 93-94.

[36] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 24ª Edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2010, Pág. 36 a 38.

[37] DANTAS, F. C. San Tiago. Igualdade perante a lei e due process of law: contribuição ao estudo da limitação constitucional do Poder Legislativo. Revista Forense, v. 116, p. 357 a 367, Rio de Janeiro, 1948

[38] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2° edição, Revista e Ampliada, Porto Alegre, 2002, p. 89.

{C}[39]{C} Ibid. SARLET, p. 41, 42 e 43.

[40] “Admissível a concessão da gratuidade do transporte coletivo Municipal postulada por quem é acometida de deficiência mental, nos termos da Lei nº 7.201/2007 e Lei Orgânica do Município. A superveniência de incapacidade comprovada após os 18 anos de idade não pode ser tratada de forma diversa em relação aos deficientes que adquiriram a patologia na infância, sob pena de afronta ao princípio da isonomia e dignidade da pessoa humana.”(Apelação 0096400-49.2009.8.05.0001; Quarta Câmara Cível; Relatora Lícia de Castro L. Carvalho; TJ/BA)

[41] “No tocante à exigência, constante no Decreto Federal acerca da necessidade de que a deficiência tenha sido adquirida antes dos 18 anos, tem-se que tal discriminação não se mostra razoável, extrapolando a finalidade e o texto das leis que busca regulamentar. APELO PROVIDO” (Apelação 0120542-20.2009.8.05.0001; Primeira Câmara Cível; Relatora Maria da Purificação da Silva; TJ/BA)

[42] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm Acesso em 04/12/2014

[43] Disponível em: http://tj-ba.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/115413881/apelacao-apl-149946920108050001-ba-0014994-6920108050001 Acesso em 04/12/2014.

[44] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo; 23° edição; ed. Atlas, São Paulo, 2010, p.233.

[45] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27ª ed. São Paulo:Malheiros, 2002, p.124.

[46] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo, Ed, Jus Podivm, 12° edição, Estado, 2013, págs. 89 a 92.

[47] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 24ª Edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2010, Pág. 747/748.

[48] Cuidava-se o Incidente de Inconstitucionalidade de processo em fase de apelação cível interposta contra sentença que julgou improcedente o pedido do autor, não concedendo o benefício da gratuidade no transporte coletivo, por entender que o mesmo não é portador de deficiência física ou incapacitado de desenvolver suas atividades. Alega, o autor, ora apelante, possuir perda visual no olho direito, e o olho esquerdo com acuidade 1,0. Nesta senda, foi remetido ao Tribunal Pleno do TJ/BA o exame acerca da relevância da inconstitucionalidade, levantada pelo apelante, incidenter tantum, do art. 2º da Lei Municipal nº 7201/07, que assegura gratuidade de transporte para as pessoas portadores de deficiência e que comprovem carência econômica, com destaque, no ponto, a redação do art. 5º do Decreto Federal nº5296/04.

{49}Disponível em: http://esaj.tjba.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=123082&vlCaptcha=aqawb; Acesso em 04/12/2014

[50] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Acesso em 04/12/2014

{51} ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba; Manual de Direito Internacional Público; 17° Edição, Editora Saraiva; 2009 p. 218

{52} Ibid. ACCIOLY. p. 223

{53}Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm Acesso em 15/01/2015

{54} Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm Acesso em 15/01/2015

  • Deficiente mental; transporte público urbano; prin

Referências

REFERÊNCIAS

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Advocacia Emilia Belmonte

Bacharel em Direito - Salvador, BA


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