A Evolução Histórica do Acesso à Justiça


06/10/2013 às 10h45
Por Advogada Elis Maria

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo abordar a evolução do acesso à justiça, para entendermos o seu funcionamento nos dias atuais. Trata-se de um trabalho relevante, pois visa fazer um levantamento de todo o processo e as mudanças que esse direito fundamental sofreu, para entendermos por que o nosso sistema judiciário é tão desigual na prática, sendo que na teoria deveria atingir toda a população de maneira igualitária. O direito não deve discriminar, diferenciar ou favorecer uma camada da sociedade em relação à outra, logicamente que, em um país com tantas desigualdades, há toda uma problemática envolvendo esse assunto, contudo sempre é necessário o aprimoramento e a identificação dos pontos que fazem o nosso sistema judiciário tão pouco acessível à população.

Palavras-chave: acesso à justiça; sociedade; sistema judiciário; desigualdade

Abstract: The present work aims to approach the evolution of the access to justice, and the understanding of its operation nowadays. It is a relevant work and it aims to study the whole process and changes that this fundamental right of the people has suffered, seeking the understanding of why our judicial system is, in practice, so unequal, and it should, at least in theory, cover uniformly the entire population. The law should not discriminate, differentiate or favor one layer of society against another, logically that in a country with so much inequality, there is a whole issue involving this subject, however it is always crucial to improve the identification of the points that make our judiciary so little accessible to the overall population.

Keywords: access to justice; society; judiciary; inequality

Introdução

Esse trabalho pretende abordar a evolução histórica do acesso à justiça sobre diferentes ângulos, buscando compreender por que esse direito fundamental não se dá efetivamente. O sistema judiciário não está presente no dia-a-dia do brasileiro, a não ser em meios midiáticos, que, geralmente, tratam o assunto de forma superficial e insuficiente para a sensibilização do cidadão sobre a necessidade de se recorrer à justiça sempre que preciso.Ter a mídia como principal fonte de informação já é um alerta sobre como a educação, e aqui no sentido de letramento, escolarização, é também um fator que afasta o cidadão comum de seus direitos. Ao se pensar em educação, logo se pensa em ensino público, e em Estado, portanto nesse trabalho também será feita uma sucinta definição de Estado, e seu papel dentro da nossa discussão.

Permeando todos esses assuntos, o trabalho traz no inicialmente o acesso à justiça em uma perspectiva histórica, entendendo quais foram os ganhos e as adequações do sistema judiciário à sociedade e ao Estado, sendo que esses dois elementos são extremamente dinâmicos e se relacionam intimamente. Em seguida, será definido e contextualizado o Estado. Um ponto que foi abordado é a própria forma como o Estado é pensado pela sociedade, o que acaba causando um afastamento da população de algo que, assim como o sistema judiciário, teria que funcionar justamente para o povo. Também será tratada a questão dos direitos humanos e a inclusão do acesso à justiça nesse leque de direitos fundamentais. Trabalhado a questão da evolução do acesso à justiça e as reflexões sobre Estado, iremos para as conclusões que obtivemos com esse estudo.

Portanto, esse estudo busca trazer um levantamento dos fatos e fatores que influenciaram o acesso à justiça e como isso refletiu no nosso sistema judiciário atual, considerando que trata-se de um direito garantido pelo Estado e de grande importância para um sistema democrático. Como frisa Mauro Cappelletti (1988, p.): “O acesso à justiça, pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos.”

1. Aspectos Culturais, Sociais e Históricos

Todo ser humano em plena consciência carrega em si uma noção de justiça, esta se relaciona com a visão que cada indivíduo tem de mundo, e a relação causa e consequência que este consegue estabelecer. Pensar em justiça é pensar, sobretudo, numa definição de certo ou errado, e isso está ligado intimamente com as variações de culturas e de ideologias de cada sociedade. Sendo a Justiça uma característica humana básica, é mais do que necessário que todo ser humano tenha acesso à uma Justiça comum, visto nossa organização social, principalmente quando se trata de uma democracia. Sobre essa visão de acesso à Justiça podemos citar José Cichocki Neto (1999, p.61): “Nessa perspectiva, a expressão acesso à justiça engloba um conteúdo de largo espectro: parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo perpassa por aquela que enforca o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais, e, por fim, aquela mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico: mas, outrossim, proporcionar a realização da justiça ao cidadão.”

Assim, acesso à justiça não se limita ao mero contato com os tribunais, e sim com o Direito em si, o caminho que se está entre o cidadão comum e as leis. Portanto, a relação se dá entre o cidadão e o Estado, visto que este além de ser o representante político é de acordo com Gonçalves (2004, p.03): “Nas sociedades modernas, o Estado assumiu para si, em caráter de exclusividade, o poder-dever de solucionar conflitos. (...) Ele é suficientemente forte para impor a qualquer membro da coletividade o cumprimento da norma (...).” Deste modo a história do Acesso à Justiça se confunde com a evolução do Estado, que já foi detido na mão de uma única pessoa, no Estado absoluto e que vem sofrendo um processo de democratização, e quando é falado um processo, trata-se da maneira como ainda há exclusões no que diz respeito a acesso à Justiça hoje.

Atendo-se agora à trajetória do acesso à Justiça podemos pensar que esta preocupação se deu junto às idéias iluministas influentes nos séculos XVIII e XIX, contudo, o Estado não intervinha e não assumia o compromisso pela prestação de serviços jurídicos à população, ou seja, cada cidadão arcava com os custos do processo sem nenhuma ajuda do Estado. Isso fazia com que a legislação só privilegiasse e atendesse a uma elite econômica, essa restrição se fez extremamente contraditória com o avanço das ideias democráticas, e do próprio momento histórico de “liberdade, igualdade e fraternidade.”

No século XX, as camadas populares começam a criar uma organização e legitimar as discussões em torno do tema, como observa Souza (2003, p.167): “No princípio do século, tanto na Áustria como na Alemanha foram frequentes as denúncias da discrepância entre a procura e a oferta da justiça e foram várias as tentativas para minimizar, quer por parte do Estado (...), quer por parte dos interesses organizados das classes sociais mais débeis.” O acesso à justiça começa a ganhar visibilidade e o Estado, que vai ganhando aspectos cada vez mais democráticos, se vê pressionado a tomar medidas a respeito do assunto. Cappelletti (1988, p.31) traça um panorama sobre o primeiro momento: “O despertar do efetivo acesso à justiça deu origem a primeira onda de reformas, podendo ser classificada, numa ordem cronológica, da seguinte forma: a) assistência judiciária; b) representação jurídica para os interesses difusos; c) enfoque de acesso à justiça.”

A assistência judiciária citada por Cappelletti tinha como base os serviços prestados por advogados particulares, sem contraprestação, o que foi denominado de munus honorificum. Isso com certeza já era um começo, entretanto “o Estado não adotou qualquer atitude positiva para garanti-lo.”, segundo Cappelletti (1988, p. 32). Este sistema não teve grande eficiência, pois sem motivação econômica, a qualidade dos serviços eram baixas, sendo que os serviços eram assumidos por advogados sem experiência, e muitas vezes sem qualificação. Cabia ao Estado novamente a busca por essa melhoria de serviço, para que houvesse uma paridade entre os cidadãos.

Assim surge o Judiciare, que de acordo com Cappelletti(1988, p. 35) trata-se de: “(...)um sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei. Os advogados particulares, então, são pagos pelo Estado. A finalidade do sistema judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado.”

O judiciare, surgido na Inglaterra em 1949, vinha como uma solução mais abrangente e o acesso à Justiça começaria a ganhar um corpo, uma definição. Logicamente este sistema ainda continha vários problemas, a contratação de advogados mais qualificados demandam alto custo ao Estado, além de não assegurar os remédios individuais, o mandado de segurança, o habeas corpus, os direitos do consumidor dentre outros não eram assistidos. Contudo a esta gama de limitações Cappelletti(1988, p.37) ressalta um dado interessante: “O judicare, ao contrário da assistência judiciária gratuita criada antes dele, abrangia a todos, indistintamente, e não só os pobres. Na França, desde 1972, é que ele foi idealizado para alcançar não apenas os pobres, mas também algumas pessoas acima do nível de pobreza”. Este fato é fundamental para a democratização, há um estigma sobre os termos “popular”, “assistência governamental” como se só os pobres tivessem necessidade de requisitar o auxílio do Estado, contudo qualquer cidadão que esteja regido sobre as leis deste, tem o direito de ser atendido pelo governo, não se trata de uma questão econômica, “popular” diz respeito a povo, e povo é um conjunto de cidadãos que constroem uma nação. Portanto não é só a classe baixa que deve se preocupar com o acesso à Justiça, mas todas as classes que constituem um país.

O Acesso à justiça, portanto não se limita a questões econômicas e individuais, e sim como um “requisito fundamental- o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos" , conforme ensina Cappelletti(1988, p. 12). Após essa primeira leva de medidas, surge, o que é definido por Cappelleti como a “segunda onda”, traz em foco o direito difuso e aborda algumas das falhas do judiciare, por exemplo, trazendo à tona questões como direitos públicos, dentre outros. Este enfoque, foi o que se enquadrou primeiramente o Brasil, quando em 80 passou a discutir a democratização da justiça. A “terceira onda” diz respeito ao processo de facilitação para o acesso à justiça, através de medidas que tornem mais ágeis os processos judiciários, e que leve a justiça aos cidadãos, ou seja, que o sistema judiciário se enquadre dentro da realidade da sociedade, e não o contrário, e que seja ágil para que consiga atingir o maior número de pessoas.

No caso do Brasil, é no mínimo curioso que o assunto “acesso à Justiça” seja tratado do jeito que é. Já que desde a década de oitenta temos uma constituição que teoricamente se preocupa com uma visão de justiça igualitária, como podemos perceber na fala de Caetano Levi Lopes (1993, p. 197): “No Brasil, especificamente, cuja Carta Política de 1988 é, sem sombra de dúvida, a que mais se encontra, no ocidente, impregnada pelo pensamento humanista jurídico, determina que é dever do Estado prestar a tutela jurisdicional sem restrições ao apregoar (artigo 5 °,XXXV) que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário.” Este fato é curioso se levarmos em conta o nosso processo histórico, onde fomos sujeitados à uma exploração por séculos e quando república, a uma opressão aos direitos humanos por décadas, vindo a ocorrer a abertura política somente na década de 80, sem dúvida a Carta Política de 1988 represente um avanço social.

Outro fator interessante é que a maneira de se pensar Direito aqui no Brasil não teve uma história quantitativa de estudos sociológicos antes da década de 80, vindo a surgir a partir desta década já com o foco em acesso à justiça. Pode-se dizer que este grande impulso da década de 80 tenha se dado justamente por estes fatores, como uma maneira de se buscar uma liberdade que tivesse como base o respeito aos Direitos Civis, um pensamento coerente, já que a voz do cidadão está representada em seus direitos. Há uma observação pertinente de Cleber Francisco Alves (2006, p. 26) sobre este processo no Brasil: “É realmente incrível como o Brasil pode alcançar um avançado estágio em termos de sofisticação da legislação processual civil, considerada das mais modernas do mundo – tendo sido expressivas as conquistas do que se refere à efetivação de medidas relacionadas às chamadas “segunda” e “terceira” onda do acesso à justiça que nos fala Mauro Cappelletti – sem que a intervenção estatal para garantir a eficácia na assistência judiciária tivesse sido plenamente cumprida.”

Neste fragmento Cleber Francisco Alves fala sobre algo fundamental, o que nos leva à primeira discussão, a justiça não se faz apenas de Lei, mas também de Direito, as pessoas precisam ter acesso às leis para que a justiça prevaleça, sobre isso vale um ponto abordado por Caovilla (2006, p. 56): “De nada adianta uma Constituição com inúmeras garantias se a pobreza e a marginalidade afloram a cada segundo, num país que convive com cidadão e cidadãs, homens, mulheres, idosos, crianças, que são tratados de forma diferenciada, cidadão de primeira classe, segunda classe e assim por diante. Falta respeito, dignidade e políticas públicas que objetivem a erradicação da pobreza. Do contrário, não se pode prever um futuro melhor para a sociedade brasileira.”

O Acesso à Justiça no Brasil veio impulsionado pelos movimentos sociais da década de setenta, sendo assim, diferentemente dos outros países, a preocupação principal era com o direito coletivo, ou difuso, relacionando-se portanto com a “segunda onda” de Cappelletti e não com a primeira, que, como já foi visto, se via focada no direito individual. O Brasil é um país que teoricamente, está num estágio avançado no que diz respeito a acesso à Justiça, mas na prática revela um grau de disparidade que reflete a própria disparidade social e econômica que sofre. Não tendo passado nem sequer da primeira fase, a que busca os direitos individuais e a solução de causas mais simples.

É preciso uma política pública que se volta para os meios alternativos de solucionar os conflitos presentes em nossa sociedade como uma maneira de complementar o sistema formal, tornando efetivos os Juizados Especiais para que atinjamos, de acordo com Cappelletti (1988, p. 15): “[...] completa ‘igualdade de armas’ – a garantia de que a conclusão final depende apenas dos méritos jurídicos relativos às partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos.”

2- Reflexões acerca do Estado

Quando abordamos as diversas maneiras que o Estado é estudado podemos perceber o quanto a própria maneira de defini-lo ou pensá-lo justifica o distanciamento do cidadão de seus direitos. Um exemplo interessante sobre como se dá essa relação e de como ocorre essa influência está na maneira como o Estado foi pensado durante séculos, sempre com maior enfoque nos governantes do que nos governados, esse enfoque nos traz a ideia de submissão, de superioridade e inferioridade, como se o cidadão fosse um elemento passivo na constituição. Contudo, a partir de um determinado período essa visão se modifica como podemos observar através da seguinte citação de Bobbio (2003, p. 64): “A reviravolta, a descoberta da outra face da Lua, até então desconhecida, ocorre no início da idade moderna, com a doutrina dos direitos naturais que pertencem ao indivíduo singular. Estes direitos precedem à formação de qualquer sociedade política e, portanto de toda a estrutura de poder que a caracteriza.”

Essa “reviravolta”, indiscutível que é, parece ainda não ter tocado de maneira mais prática o cidadão, principalmente se pensarmos no Brasil, a condição de submissão ainda existe, ainda é aceita em nossos meios. Se pensarmos, em contrapartida, em Estado e sociedade, podemos ver que houve também uma inversão de valores, mas que esta se fez de maneira mais sensível.

Inicialmente pensava-se a sociedade como uma parte do Estado, como se todas as relações sociais fossem também políticas. Mas novamente esse contexto sofre uma modificação devido às diversas transformações econômicas, que passaram a ser elemento determinante para o poder político.

Pensar na abordagem do Estado através do viés popular ou individual, entretanto, não é uma tarefa fácil pela questão documental. Afinal as fontes para os estudos sobre o Estado advêm geralmente das próprias doutrinas políticas do período, que correspondem à idealização da elite em relação ao funcionamento de uma sociedade, e não da instituição política, que é a sua prática.

Percebemos através dessas dicotomias governantes/governados, sociedade/Estado e doutrina política/ instituição política que a delimitação do tema é uma tarefa complexa que exige grande atenção com a própria terminologia utilizada, explicitando que, ao contrário do que ocorre na maioria dos casos em que se trabalha com a noção de doutrina política, esse trabalho pretende explicitar, através do acesso à justiça, como este Estado idealizado serve a população. Outra distinção importante é a que se refere ao ponto de vista sociológico e ao ponto de vista jurídico, estes aspectos também são muito importantes para relacionarmos com o nosso tema principal, pois podemos pensar o Estado como um formulador de normas que deverão ser obedecidas, ou podemos pensar em Estado como uma organização social, quando abordamos o acesso à justiça estamos pensando o Estado nesses dois prismas, pois ao pensarmos na distância que há do Direito em relação ao cidadão, não estamos apontando somente uma questão de organização social, mas também uma necessidade de se estruturar o sistema judiciário.

Abordar os diversos estudos sobre o Estado nos mostra o quanto é obscuro o entendimento dessa instituição tão importante para a sociedade, esse fator é preocupante, pois, se a própria definição é tão controversa, quem dirá a sua atuação, seu funcionamento.

O Estado demonstra uma necessidade clara que o homem tem de se organizar, de estabelecer uma ordem, desta forma o Estado vem como uma maneira encontrada pelo homem para lidar com o poder. Portanto a sociedade confere ao Estado o poder de organizar e de agir sobre o todo, se pensarmos esse aspecto em conjunto com a noção de justiça que cada um carrega dentro de si, veremos que o Estado, como elemento representante da vontade coletiva também carrega em si a visão de justiça coletiva.

Assim, a justiça anterior ao Estado moderno correspondia à visão de justiça de pequenos grupos espalhados pela sociedade, desta maneira, dentro de um pequeno território, tínhamos visões de justiça que variam de acordo com convenções sociais de pequenos grupos, esse fato é problemático, visto que determinado comportamento de um pode não ser bem visto por outro. O Estado moderno, ou nacional, além de trazer para si a responsabilidade de organizar um território, também traz a obrigação de representar a justiça nesse espaço, ou seja, de representar, como já foi dito anteriormente, a noção coletiva de justiça e ordem. A partir desse momento o Estado passa a formular leis que iriam defendê-lo diante da sociedade e também evitar que as relações sociais ultrapassassem determinados limites. O Estado passaria a ser a voz maior dentro de um território. Em contrapartida a sociedade precisava de mecanismos para se representar diante do poder público, e principalmente para isso havia o direito, dessa maneira cada cidadão tinha o poder de se representar diante do Estado.

Nesse ponto nos é válido uma pequena explanação sobre a evolução do Estado, pois, como não podemos ignorar mesmo o Estado moderno se modificou muito com o passar do tempo, não podemos nos esquecer que inicialmente o Estado defendido por Maquiavel representava um poder absoluto e indiscutível sobre a sociedade, que nesse período não tinha mecanismos para se organizar e se representar. A sociedade, nesse primeiro momento do Estado tinha pouca organização própria devido a maneira como as classes sociais se colocavam, com pouca transitoriedade e com um domínio indiscutível da nobreza e do clero sobre os territórios, assim, o rei era a representação do poder divino na Terra, com pouca flexibilidade para alterações. O grande problema desse período consiste na concentração de muito poder nas mãos de um único homem, pois, a visão de justiça de um indivíduo se sobrepunha sobre a visão de uma maioria, já que o Estado trazia para si o poder jurisdicional sobre uma sociedade.

O que modifica completamente esse quadro é a ascensão de uma classe que, embora não viesse da nobreza, detinha o poder econômico: a burguesia. Com o fortalecimento da burguesia a sociedade começa a buscar sua própria organização e sua representação perante o poder. Sobre isso temos Saldanha (1999, p. 119,120): “A presença social da burguesia, apenas sensível de início, torna-se dominante em seguida. Ela condiciona historicamente uma nova perspectiva. Em vez de escalonamento feudal, baseado na tradição e no rang, um individualismo baseado no dinheiro e no “êxito” (este individualismo se refletirá inclusive nas escolas jurídicas posteriores à de Baldo). Em vez de leis variáveis e privilégios, leis iguais para todos – uma igualdade ainda formal apenas, mas isso só depois se notaria.” Com esse novo quadro social a ordem se modifica, os ideais iluministas de fraternidade, liberdade e igualdade são postos como uma nova maneira de se conviver socialmente. O que modifica também é o direito e as leis, visto que essa nova sociedade necessitava de uma forma de organização diferente, o que é natural, pois se considerarmos a feliz colocação de Ribas Marinho (2005, p. 47) : “ Os direitos traduzem com fidelidade o seu tempo. As inquietações daquele exato momento histórico, são, portanto, resultado de um momento na evolução da mentalidade dos seres humanos, podendo, por vezes, parecer eventualmente absurdos, excessivamente dogmáticos, rígidos ou lúcidos e liberais, mas em seu permanente movimento, serão sempre a tradução mais autêntica de um povo.” Adequado então a essa nova visão, o sistema judiciário agora atendia a um Estado liberal, onde todos tinham direitos iguais, direitos esses que agora traziam à tona os direitos fundamentais do homem. Os direitos humanos, embora tenham surgido anteriormente ao período histórico de ascensão da burguesia, passam ter a partir desse ponto uma relevância maior na sociedade.

Fazendo uma breve passagem sobre a história dos direitos humanos podemos dizer que esses estiveram presentes nas civilizações tanto ocidentais quanto orientais desde os primeiros momentos de organização social. O fato é o grau de importância e o que defendiam, esses elementos com certeza se modificaram com o passar dos tempos. Como exemplo podemos dizer que os gregos, com o advento da democracia tiveram forte contribuição para a consolidação dos direitos fundamentais do homem, por outro lado, sabemos que não eram todos que eram considerados cidadãos gregos, ou seja, os direitos fundamentais do homem não se aplicavam a todos. Também podemos perceber a carta magna, escrita em latim e atendendo somente os letrados, outra forma de exclusão. Mesmo assim, esse documento foi de fundamental importância para as constituições atuais.

Contudo foi somente com essa modificação do Estado que os direitos fundamentais do homem ganham sua relevância na sociedade. Tendo surgido principalmente nos Estados Unidos e na França, logicamente dois países que sofriam diversas modificações nos âmbitos políticos e econômicos, sendo que um conquistava a sua independência da Inglaterra e o outro era palco de uma revolução que mudaria a estrutura social permanentemente. Todavia, como observa Ribas Marinho ainda haviam alguns elementos nessa garantia francesa, como podemos observar, na citação de Ribas Marinho (2005, p. 51) : “A Revolução Francesa outorgara uma estupenda obra constitucional, que regulava os princípios fundamentais do Estado e os direitos do cidadão. Entretanto sempre que o povo francês se defrontava com questões relacionadas aos mais diversos ramos do Direito, era forçado a recorrer à legislação ainda proveniente do antigo regime.” Além disso, o Estado liberal trazia alguns problemas em outros âmbitos. Politicamente, o homem se tornou alienado, pois o princípio da representatividade, base do liberalismo, criou a ideia de Estado como um órgão político imparcial, capaz de representar toda a sociedade e dirigi-la através do poder delegado pelos indivíduos. Marx mostrou, entretanto, que na sociedade burguesa esse Estado representa apenas a classe dominante e age conforme o interesse desta. Esse Estado que nascia apresentava, portanto, diversas questões a serem resolvidas, tanto no que diz respeito à ordem jurídica, quanto ao que se refere à organização política. Não podemos excluir, contudo, os avanços dessa organização em função do Estado absoluto, com a colocação dos direitos fundamentais do homem e a busca por uma igualdade entre os cidadãos diante do Estado.

Esses direitos fundamentais, seriam a garantia de que todo homem tinha direito a bens básicos tais como saúde, educação e moradia, elementos considerados primordiais por essa sociedade que buscava uma nova organização social, todos esses direitos deveriam ser garantidos pelo Estado, entretanto o mesmo ainda não se comprometia com o direito do acesso à justiça. O acesso à justiça desde o princípio deveria ser um direito fundamental garantido pelo Estado, afinal, desde os primórdios dos direitos humanos fundamentais o direito de ser julgado fora garantido, portanto, se todos têm direito de serem julgados perante o Estado, porque apenas alguns teriam acesso à uma boa condição de representação? Além disso, o acesso à justiça é uma forma de se obter todos os outros direitos básicos já falados, tais como alimentação, moradia e educação, nada mais lógico do que a garantia também dessa assistência do Estado. Entretanto não é isso que ocorrerá no Estado liberal, vindo então outra modificação no Estado, como podemos observar a partir da seguinte citação de Liguori (2006, p. 04) : ”O tema da sociedade civil tornou-se o centro do debate cultural e político a partir do fim dos anos 1970 no âmbito da chamada “revolução neoconservadora” ou “neoliberal”. Opondo-se radicalmente à concepção do Estado enquanto “sujeito ampliado”, para usar uma expressão gramsciana, essa discussão sustenta hoje uma “supremacia da sociedade civil (significando tal supremacia “uma forte reivindicação do não-estatal) (...)”.

Dessa forma o Estado ganha um novo aspecto a partir da década de 1970, com uma sociedade civil mais representativa diante do Estado. Essa modificação veio muito acompanhada de uma nova noção também dos direitos humanos fundamentais. Para entendermos esse avanço seria necessário passarmos rapidamente pelas transformações percebidas por Marx em torno principalmente das áreas econômicas e sociais, o que pode ser encarado como um ponto positivo e um ponto negativo, pois a doutrina de Marx tinha como falha uma análise muito voltada para a economia.

O século xx ainda passaria por diversas transformações que alterariam drasticamente a ordem mundial, tendo duas grandes guerras, a guerra fria, e outros diversos fatores que fariam com que o homem buscasse se situar nessa realidade transformada. Dentro desse turbilhão de acontecimentos, os direitos fundamentais passam a se consolidar e a expandir as garantias dadas pelo Estado, um Estado neoliberal, que buscava agora atender um número maior da sociedade, que como já dissemos anteriormente contava agora com mais poder representativo.

O acesso à justiça aparece justamente como direito fundamental básico nesse momento político, um momento que tenta sintetizar e sanar a diversidades econômicas e sociais que existem entre as pessoas. O Estado passa agora a ser responsável pelo acesso à justiça integral, e isso quer dizer que o Estado tem que prover a todos os cidadãos uma condição igualitária de representação dos mesmos diante da justiça. Um erro que seria comum era imaginar que a única responsabilidade do Estado teria diante do cidadão seria a garantia do acesso ao judiciário, mas não, acesso à justiça é a garantia de que o Estado vai arcar com todos os gastos em torno dos processos. Esse ganho é primordial para imaginarmos uma sociedade igualitária, pensar que todos têm direitos iguais de exercerem a cidadania, de cobrarem seus direitos do Estado, e de se defenderem perante o mesmo. Para isso ainda nos vale a observação de Pereira (2005, p. 12): “O acesso à justiça é um direito elementar do cidadão, pelo qual ocorre a materialização da cidadania e a efetivação da dignidade da pessoa humana. Mediante o exercício dos direitos humanos e sociais torna possível o Estado democrático de Direito.”

No que permeia o assunto sociedade e Estado seria inevitável pensarmos o acesso à justiça, visto o grau de importância que essa garantia tem diante da organização social, embora muitas vezes pensado, somente após esse novo Estado buscou-se efetivamente uma solução para que todos tivessem acesso às mesmas condições perante a lei. Um exemplo claro seria o caso da própria constituição brasileira. A carta constitucional de 1988 garante em seu artigo 5° LXXIV que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", no Brasil, portanto, todo cidadão tem direito a condições mínimas diante da lei, isso é uma garantia do nosso Estado.

O que resta agora é a conscientização da população a respeito de tal direito, para isso é preciso também educação, o Estado, ao menos legalmente providenciou uma abertura para que todos tenham igual acesso à justiça, entretanto enquanto houver esse número tão elevado de pessoas desinformadas a esse respeito, tal lei passa despercebida. Pensar na evolução do Estado em função da sociedade, é pensar em como o homem conseguiu se organizar com o passar do tempo, e como ainda tem muito para evoluir nesse sentido. O acesso à justiça é um passo importantíssimo para que essa sociedade comece a caminhar para a igualdade.

Considerações finais

Hobbes no século XVII defende que as pessoas se organizam em sociedade, que o Estado surge, para evitar a morte violenta, para evitar que cada indivíduo se torne um território que aja exclusivamente para o próprio benefício sem pensar o quanto isso afeta o próximo. Essa visão, embora dramática, acaba criando um paradoxo em nossa sociedade, visto que mesmo nos organizando em sociedade ainda sofremos de uma violência inexplicável, mas perceptível.

A exclusão é uma violência, convivemos no Brasil com a violência diária de pessoas que não têm acesso à educação de qualidade, à alimentação e também ao acesso à justiça. A importância do acesso à justiça nesse processo é indiscutível, percebemos que este direito fundamental é a ponte necessária para que outros direitos sejam cumpridos, o acesso à justiça é a garantia de que todo cidadão é igual perante a Lei.

O Estado é a instituição responsável pela garantia desse direito, contudo em nosso contexto neoliberal, em que o Estado se reduz diante das grandes corporações detentoras do capital, sabemos que nem sempre as ações do Estado têm como prioridade o serviço público. Esse fato gera um efeito dominó, pois temos uma sociedade que depende em sua maioria do ensino público, e se não há investimento nessa área, cria-se uma sociedade que depende exclusivamente da mídia para se informar. O que essas reflexões em torno do acesso à justiça constroem é a ideia de que a democracia não deve simplesmente atender a todos, mas também ser construída por todos.

  • acesso à justiça
  • democracia
  • Estado
  • direitos fundamentais
  • sistema judiciário

Referências

ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade; por uma Teoria Geral da Política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à justiça e cidadania. 3ª edição. Chapecó: Argos. 2006.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Ellen Gracie Northfleet (trad.). Porto Alegre: Fabris. 1988.

CICHOCKI, José Neto. Limitações ao acesso à justiça. Curitiba: Juruá. 1999.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. São Paulo: Saraiva. 2004.

LEVI LOPES, Caetano. Algumas Reflexões Acerca do Acesso à Justiça. IN: FIDELIS DOS SANTOS, Ernane. Atualidades Jurídicas. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 1993. P. 195-219

PEREIRA, Maria da Guia. O Papel da Defensoria Pública em face dos interesses dos necessitados. Dissertação mestrado .Campina Grande: UEPB, 2005.

SALDANHA, Nelson. Sociologia do Direito. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980.


Advogada Elis Maria

Bacharel em Direito - São Paulo, SP


Comentários