Lendo em sua íntegra o projeto de Lei 2126/2011, popularmente conhecido como "Marco Civil na Internet", me debrucei em lucubrações das quais julguei pertinente tecer algumas considerações no presente texto. A execração tamanha por parte de alguns, em especial nas redes sociais, em campanhas cheias de boa vontade contra "a censura" e a “liberdade de expressão” chamou-me à atenção, e como operador do Direito, tendo que estar atento às inovações legislativas diuturnamente, acordei com a inquietação de lê-lo e o fiz atentamente em seus exíguos 25 artigos.
Feito isso, confirmei o que já suspeitava, já que no início de todo esse burburinho já havia lido alguma coisa sobre. Não há nada de censura ou tolhimento à liberdade de expressão, ressalvado o que está constitucionalmente previsto nos direitos e garantias fundamentais expressos no Magno Texto, que estabelece os limites ao exercício da liberdade de expressão, vedando-se o anonimato e se garantido o direito de resposta. Isto é tônica basilar ao exercício das liberdades individuais e coletivas, sem que o seu exercício interfira na liberdade alheia, inclusive, proporcionando o princípio do contraditório e da ampla defesa, logo, onde está a alegada censura?
O que vemos são seres que vagueiam como autônomos, replicando conteúdo tendencioso sem nenhum embasamento mínimo ou um argumento sustentável. Vejo o controle do lobo sobre o homem, massa ignara que segue inerte como gado ao matadoiro, simplesmente alheio ao que realmente se esconde por trás de cada declaração tendente à dar um rumo a determinado fato.
Todo projeto de Lei, em princípio, parte dos anseios de determinada parcela da sociedade, que, por óbvio, possui interesse na matéria específica. Ora, o 'marco civil' regulamenta o uso responsável e responsabilizável de quem faz uso deste tipo de serviço, elevando-o, inclusive ao status de Direito Fundamental do Cidadão, já que preconiza em seu artigo 7º que "o acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania [...]". Ora, o exercício da cidadania é direito fundamental. Perguntamos quem tem interesse de que o uso da rede mundial seja regulamentado? A população em quase que sua totalidade - guardada a sua proporção infra-estrutural em um país de dimensões continentais como o Brasil - que hoje faz uso da internet para se comunicar, estudar, trabalhar, pagar suas contas e exercer a sua cidadania através dos diversos meios que hoje se encontram disponíveis, como os veículos de denúncia, utilidade pública, emissão de documentos, v. G.
Hoje um indivíduo que mora no extremo norte do país, em região de dificílimo acesso, pode tranquilamente se conectar à determinado órgão em qualquer estado da Federação e requisitar informações e/ou emissão de documentos, sem precisar se locomover. Essa é a parcela da população que necessita de que a utilização da rede seja regulamentada, afinal, as relações sociais se tornaram mais complexas e dinâmicas em todas as esferas. O comércio eletrônico movimenta bilhões ano e se expande em proporções geométricas. Da poltrona da sala ou da praça de alimentação de um shopping no interior da Bahia, se negocia e se compra de um vendedor no Sri Lanka do outro lado do mundo pelos "e-bays" da vida digital. Viva a globalização e a ampla concorrência, mas quem fiscaliza e regulamenta tudo isso? E se no clímax da negociação algo sai errado quem e de que forma alguém será responsabilizado? Falo com conhecimento de causa.
Acostumado a vender e comprar pela internet de/para diversas partes do mundo, tendo inclusive atuado ativamente no e-commerce no auge do "boom" do comércio eletrônico, cerca de 06 a 08 anos atrás, recentemente fui ludibriado por determinado vendedor com um perfil falso, que, porém, tinha todas as características que me fazem identificar um perfil real. Como resultado, fiquei com o prejuízo de cerca de seiscentos reais e a única coisa que pude fazer foi indignar-me e bater a minha cabeça contra a parede em sinal de auto-indulgência. Afinal, a quem eu iria recorrer e quais provas utilizar, já que nada havia no que me fundamentar? Em um país onde a jurisprudência concorre com a legislação, poderia arguir algo em juízo e tentar inovar doutrinariamente, mas isso, a priori, não repararia o dano. Outrossim, "Nullum crimen, nulla poena sina praevia lege", não há crime sem lei anterior que o defina, ou pena sem prévia cominação legal.
Eis porque crimes que nos deixam perplexos, como a exibição de armas, venda de drogas, pedofilia, apologia à violência, intolerância e ofensas diversas ao estado democrático de direito abundam a rede sem que ninguém seja penalizado.
Em nome da alegada liberdade de expressão, grupos e facções de diversas tendências alargam o ódio e o preconceito indiscriminado sob o manto escarlate da impunidade (e do anonimato) sem que nada possa ser feito. Fiquei feliz ao ler na data de ontem, em determinado portal jurídico: "Postagem no Facebook é admitida como prova". Tal fato aconteceu em uma demanda trabalhista oriunda da 1ª Vara do Trabalho do Paraná, em fase de Execução e em sentença mantida pelo TRT daquela região (Processo TRT-PR-07933-2009-020-09-00-0). Admiro a coragem do magistrado em prolatar uma decisão baseada em uma postagem em uma rede social.
Mas, enquanto isso, milhares de crimes acontecem todos os dias, em todos os lugares e se espalham, muitas vezes como virais, às vezes mesmo, sob o aspecto de "denúncias", que invadem as páginas de nossas redes sociais. Vejo pessoas "denunciando" crimes como pedofilia, por exemplo, postando vídeos e fotos de crianças e adolescentes em poses ou danças sensuais sob o pálio da "denúncia". Às vezes denota-se que o "postante" não tem o mínimo de instrução, e às vezes o faz por mera ignorância, mas, afinal, ninguém deve se furtar da responsabilidade de seus atos sob desculpa de desconhecimento da Lei.
Esse é somente um dos exemplos e certamente não é dos menos repugnantes. Diariamente vejo publicações nas redes sociais que beiram a surrealidade. Temos vasto cardápio de idiossincrasias massificadas, desde intolerância religiosa, de gênero e "raça" à apologia ao suicídio e ao uso indiscriminado de drogas. Ninguém está imune, pois a "liberdade de expressão" é onipresente.
A Lei é feita por pessoas, atendendo ao anseio de pessoas, e, portanto, falha, posto que o Direito seja ciência dinâmica fruto de seu tempo e momento histórico. Prescreve-se o dever ser, e isto, por óbvio depende do contexto ao qual se insere o cidadão mediano, no caso em questão, a nossa sociedade onde está arraigado o conceito hegemônico ocidental presente na obra do incomparável professor Boaventura Sousa Santos, à qual tivemos a honra de discorrer criticamente¹.
Não existe consenso quando se fala direitos humanos, cidadania, liberdade de expressão. Não raro nos esbarramos em conceitos sofismáveis, frutos de toda a nossa bagagem cultural, herdada, muitas vezes, de uma infância extremamente conservadora (ou extremamente permissiva). Vivemos em uma sociedade onde o ter sobrepuja o ser e onde as desigualdades aterrorizam, e não vemos uma fagulha no fim do túnel. As mudanças parecem cataclísmicas e irreversíveis, e nos momentos de lucidez, nos deparamos com um cenário que nos faz questionar aonde chegamos e até onde iremos. Mas se quedar inerte na escuridão, por não vislumbramos a luz no final do túnel certamente não é a decisão mais acertada. Temos que continuar caminhando, afinal, Cronos é um deus impiedoso, e tal qual titã impávido massacra os que se detém no seu caminho.
Entendemos ser a Lei 2126/2011 um avanço memorável na resolução e deslindes de fatos que hoje se amontoam sem um norte, uma direção nos foros, principalmente, em uma época em que a implementação de processo e procedimentos digitais e eletrônicos, em tese, facilita e alarga as fronteiras monumentais da jurisdição. Julgamos, no entanto, que precisa ser aperfeiçoada e desdobrada, quiçá, complementada por diplomas outros, o que não lhe tirará o mérito da inovação jurídica. Neste quesito, embora exista muita aberração doutrinária travestida de conhecimento acadêmico, também possuímos operadores e pesquisadores incansáveis e honestos que se debruçam a extrair da fria letra de Lei coerentes compêndios em consonância com a dinamicidade social.
O Marco Civil da Internet atende sim a um clamor social e por isso deve ser tratado mais com compreensão do contexto social e das modernas relações de convivência que com a ojeriza e a aversão com o qual tem se apresentado a muitos.
¹SILVA, Eliabe Sales. Direitos humanos: uma hegemonia frágil. Visão crítica da obra de Boaventura Sousa Santos. Conteudo Jurídico, Brasilia-DF: 2014.