1 - Introdução
Ao extermínio do homem pelo homem dá-se o nome de homicídio. Ocorre, no entanto, que nem sempre, na empreitada criminosa, o autor age sozinho.
Quando um agente, objetivando levar a óbito sua vítima, age em cooperação para prática da conduta delitiva com outro agente (em unidade de desígnios) há o chamado concurso de pessoas.
Contudo, quando o coautor o faz motivado por um pagamento ou mesmo pela promessa de uma vantagem, surge uma das hipóteses do homicídio dito qualificado.
A conduta está tipificada no inciso I, § 2º do artigo 121 do Código Penal. O mesmo dispositivo legal traz uma pena em abstrato de doze a trinta anos para o delito, diferentemente do homicídio simples (que possui pena de seis a vinte anos).
O referido crime é também conhecido como assassínio, condutício, homicídio de mercado, homicídio por mandato ou homicídio mercenário (OLIVEIRA, 2011). Trata-se de um crime de concurso necessário, onde um agente previamente contrata outro para realizar o verbo nuclear do tipo contra a vítima.
Não se trata aqui da chamada autoria mediata onde o autor se faz valer de um inimputável ou induz alguém em erro ou coação para tirar a vida de outrem. Nessas hipóteses não há concurso, pois o executor foi na verdade um instrumento do crime e não coautor.
A título de conhecimento e exemplificação justifica-se apresentar um famoso caso envolvendo a família real portuguesa pouco antes da independência. Alguns historiadores contam de um homicídio aparentemente realizado a mando de Carlota Joaquina, esposa do rei D. João. O referido crime ocorreu em 1820, no Rio de Janeiro. A então princesa, supostamente, teria encomendado a morte de Gertrudes Pedra Carneiro Leão, esposa de Fernando Carneiro Leão, conde de Vila-Nova de São José, diretor do Banco do Brasil e também amante de Carlota Joaquina (GOMES, 2007, pag 162).
Gertrudes foi morta a tiros em frente a sua residência no conhecido Bairro do Catete. O crime teria sido executado por um escravo, um capoeirista conhecido pela alcunha de “corta-orelha”.
Prendendo-se novamente ao estudo da qualificadora, percebe-se que problemática encontra-se no fato de que o nosso Código Penal não traz expressamente a responsabilidade de cada um dos coautores para o referido homicídio. Parte da doutrina aponta para que ambos devam responder pela qualificadora. Por outro lado há quem defenda que a qualificadora deva recair necessariamente ao executor, contudo nem sempre deve o mandante incorrer na mesma sorte. A divisão existe também na jurisprudência como se vê à frente.
Para se chegar a uma possível conclusão, necessário se faz compreender, dentre outros assuntos, as regras de comunicabilidade do artigo 30 do Código Penal, o conceito de circunstância e de elementar de um crime, a diferenciação entre tipo básico e derivado e natureza jurídica da qualificadora.
O presente trabalho busca analisar os principais argumentos existentes atualmente e as soluções interpretativas para o impasse.
2. A qualificadora: analise do inciso I, §2, 121 do Código Penal
Para que se possa versar sobre o alcance de uma norma jurídica, o primeiro passo deve ser a leitura atenciosa de sua letra. Para tanto, se propõe adiante um breve estudo do texto legal:
Art. 121. Matar alguém:
Pena — reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
CASO DE DIMINUIÇÃO DE PENA
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
HOMICÍDIO QUALIFICADO
§ 2º Se o homicídio é cometido:
I — mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II — por motivo fútil;
III — com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV — à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V — para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena — reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
O parágrafo 2º trata do homicídio qualificado. Observa-se no inciso primeiro, que a recompensa pode ser paga (entregue previamente) ou prometida (será dada num outro momento).
A paga ou promessa de recompensa é tratada como um exemplo de motivo torpe. Isso se torna evidente quando o inciso traz a expressão “ou outro motivo torpe”.
Vale ressaltar que há um consenso entre a doutrina de que a recompensa pode ser de qualquer natureza e não necessariamente em pecúnia. Portanto, uma promessa de casamento ou mesmo de favores sexuais se enquadrariam no delito.
Em uma primeira leitura parece natural entender que a qualificadora acima verificada se aplicará a ambos, mandante e executor. Até mesmo porque o artigo 29 do Código Penal, adotanto a teoria monista moderada, dispõe que:
Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
Grande parte da jurisprudência e da doutrina também segue por este sentido, inclusive o Supremo Tribunal Federal.
E M E N T A - I. Homicidio: qualificativa de cometimento do crime mediante paga ou promessa de recompensa que, embora relativa ao mandatario, se comunica ao mandante. II. Júri: quesitos: pretensa nulidade que, se existente, nenhum prejuizo causou a defesa, pois relativo o quesito impugnado a segunda qualificadora do homicidio, cuja pena foi fixada no minimo legal. III. Júri: quesito não obrigatorio: menor importancia da participação de co-réu, não alegada pela defesa.::
(STF. HC 69940, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 09/03/1993, DJ 02-04-1993 PP-05621 EMENT VOL-01698-06 PP-01127).(grifei)
Na mesma Corte ainda pode-se citar:
E M E N T A: Júri: alegação de nulidades que, quando acaso existentes, teriam convalescido, a falta de argüição oportuna. 1. Jurados: não realizado o sorteio de substitutos dos faltosos no inicio do julgamento anterior, como determinado pelo art. 445 C.Pr.Penal, o sorteio ulterior haveria de ter sido precedido de providencia que assegurasse a publicidade do ato e a possibilidade de ciencia pelos interessados dos novos jurados a convocar; não obstante, nulidades relativas a composição da lista de jurados hao de ser arguidas na abertura da sessão de julgamento, sob pena de convalescimento: precedentes do Tribunal (C.Pr.Pen., arts. 571, V, e 572, I). 2. A dispensa, apenas porque contraditada pela defesa, de testemunha arrolada pela acusação, se indevida, quando não se entende que se trate de nulidade que só pela propria acusação pudesse ser arguida, certamente que também estaria sanada pela falta de alegação oportuna, logo depois de ocorrida (arts. 571, VIII, e 572, I). 3. Homicidio qualificado: a comissão do homicidio mediante paga, sendo elementar do tipo qualificado, e circunstancia que não atinge exclusivamente o "accipiens", mas também o "solvens" ou qualquer outro co-autor: precedentes.
(STF. HC 71582, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 28/03/1995, DJ 09-06-1995 PP-17230 EMENT VOL-01790-02 PP-00331).(grifei)
Contudo, percebe-se que o assunto merece um estudo um pouco mais reflexo tendo em vista a existência do artigo 30 do Código Penal que trata justamente da comunicabilidade (ou incomunicabilidade) das circunstancias e condições de caráter pessoal.
Em análise a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em decisões um pouco mais recentes que as do Supremo, o que se pode perceber é uma divisão de entendimento.
Em sentido convergente a Suprema corte pode-se citar:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO MEDIANTE PAGA. EXCLUSÃO DE QUALIFICADORAS.
INVIABILIDADE. PAGA OU PROMESSA DE RECOMPENSA. COMUNICABILIDADE.
RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE.
1. No homicídio mercenário, a qualificadora da paga ou promessa de recompensa é elementar do tipo qualificado e se estende ao mandante e ao executor.
2. Para se excluir a qualificadora do recurso que impossibilitou a defesa da vítima é indispensável o revolvimento do material fático-probatório, o que é vedado na via do habeas corpus.
3. Ordem denegada.
(STJ. HC 99.144/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 09/12/2008).
Ou ainda:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO.
PRONÚNCIA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE. EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS. PAGA OU PROMESSA DE RECOMPENSA. COMUNICABILIDADE AO MANDANTE DO CRIME. MEIO CRUEL E RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO.
EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 21 DO STJ. PRISÃO PREVENTIVA. MOTIVAÇÃO IDÔNEA. RÉU QUE RESPONDEU PRESO AO PROCESSO. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA (DEGRAVAÇÃO DE CD). CERCEAMENTO DE DEFESA INOCORRENTE.
1. O Magistrado de primeiro grau procedeu adequadamente e de maneira concreta a fundamentação acerca da admissibilidade das qualificadoras do crime de homicídio, contendo a decisão impugnada sucinto juízo de probabilidade em respeito à competência do Conselho de Sentença, inexistindo, assim, a alegada violação do art. 93, IX, da Constituição Federal.
2. No homicídio mercenário, a qualificadora da paga ou promessa de recompensa é elementar do tipo qualificado e se estende ao mandante e ao executor do crime.
(...)
7. Habeas corpus denegado.
(STJ. HC 78.643/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 17/11/2008)
Por outro lado se observa:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO.
JÚRI. QUESITAÇÃO. SENTENÇA. MOTIVO TORPE.
I - Os dados que compõem o tipo básico ou fundamental (inserido no caput) são elementares (essentialia delicti); aqueles que integram o acréscimo, estruturando o tipo derivado (qualificado ou privilegiado) são circunstâncias (accidentalia delicti).
II - No homicídio, a qualificadora de ter sido o delito praticado mediante paga ou promessa de recompensa é circunstância de caráter pessoal e, portanto, ex vi art. 30 do C.P., incomunicável.
III - É nulo o julgamento pelo Júri em que o Conselho de Sentença acolhe a comunicabilidade automática de circunstância pessoal com desdobramento na fixação da resposta penal in concreto.
Recurso provido.
(STJ. REsp 467.810/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/11/2003, DJ 19/12/2003, p. 576)
E ainda:
PROCESSUAL PENAL - TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL - HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO - MANDANTE - QUALIFICADORAS - CIRCUNSTÂNCIAS SUBJETIVAS E OBJETIVAS - SITUAÇÕES DE COMUNICABILIDADE - INÉPCIA DA DENÚNCIA E FALTA DE JUSTA CAUSA - INOCORRÊNCIA - NULIDADE DO LAUDO DE EXAME CADAVÉRICO - PROCEDÊNCIA - PERÍCIA REALIZADA POR APENAS UM PERITO OFICIAL - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
- No homicídio do tipo mercenário, a qualificadora relativa ao cometimento do delito mediante paga ou promessa de recompensa é uma circunstância de caráter pessoal, não passível, portanto, de comunicação aos co-autores ou partícipes, por força do art. 30 do Código Penal. Precedente.
- Não constitui ilegalidade cada autor, co-autor ou partícipe responder pelas suas circunstâncias pessoais, dentre as quais situa-se a motivação do delito - o executor será responsabilizado por ter aceitado retirar a vida de outrem mediante o recebimento de uma contra-prestação, já o autor intelectual será responsabilizado pela sua intenção ao ter dado causa à prática infracional, como é o caso dos autos: a paciente - acusada de ser a suposta mandante do homicídio - foi denunciada, também, com base no inciso I do § 2º do art. 121 não devido ao fato do crime ter sido perpetrado sob encomenda, mas porque foi torpe a sua motivação.
- As qualificadoras objetivas não se enquadram nas circunstâncias incomunicáveis, devendo, por isso, serem estendidas aos participantes do delito. Mesmo que se entenda que para haver a comunicação da circunstância real, o co-autor ou o partícipe deverá dela ter tido conhecimento, a sua verificação demandaria aprofundada análise de matéria fático-probatória, impossível de ser feita no âmbito estreito do remédio heróico.
- No âmbito deste Colegiado, tem-se consagrado que o trancamento da ação penal por falta de justa causa deve ocorrer, somente, em situações excepcionais, ou seja, apenas quando se constata, prima facie, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito, ou, ainda, a indiscutível deficiência da peça vestibular. Hipóteses inocorrentes no caso sub examen.
- Reputa-se nulo o laudo de exame cadavérico caso não sejam respeitados os requisitos do art. 159, caput, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 8.862/94. Assim, como a perícia foi realizada por apenas um médico legista oficial, sendo que a exigência legal é de dois peritos, forçoso reconhecer a sua nulidade.
- Recurso parcialmente provido, tão somente para declarar a nulidade do laudo de exame cadavérico.
(RHC 14.900/SC, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em 17/06/2004, DJ 09/08/2004, p. 277)
Como se pode observar, o assunto merece análise mais profunda uma vez que não há uniformidade de decisões nem mesmo entre as turmas do STJ. Razão esta que se passa a analisar a comunicabilidade pelo estudo do artigo 30 do Código Penal.
3. Análise do Artigo 30 do Código Penal: Circunstâncias, Elementares e Condições Pessoais
A comunicabilidade ou não das circunstâncias entre os coautores de um delito é regida pelo disposto no artigo 30 do Código Penal Brasileiro.
Art. 30 - Não se comunicam às circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.
Com a leitura do artigo supramencionado percebe-se que ele se divide em duas partes: uma regra e uma exceção à regra. A regra é que não devem comunicar aos agentes as circunstâncias e nem as condições de caráter pessoal.
Excepcionalmente haverá comunicação, ou seja, eventualmente estas circunstâncias ou condições pessoais de um agente serão consideradas para os demais: quando estas se tratarem de elementares do crime.
Exige-se neste ponto do trabalho um estudo conceitual. É necessário definir com relativa precisão os termos: circunstâncias, condições pessoais e elementares do tipo.
Para o professor Rogério Greco as circunstâncias são “dados periféricos, acessórios que gravitam ao redor da figura típica” (GRECO, 2011, pag.98).
Fernando Capez e a professora Maria Stela Prado em seu Código Penal Comentado lecionam que as circunstâncias:
Constituem dados acessórios, não fundamentais para a existência da figura típica, que ficam a ela agregados, com a função de influenciar na pena. Sua exclusão não interfere na existência da infração penal, mas apenas a torna mais ou menos grave. Encontram-se na Parte Geral ou na Parte Especial, situando-se, neste último caso, nos parágrafos dos tipos incriminadores (os chamados tipos derivados). Por exemplo: se o homicídio é cometido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação do ofendido, a pena será reduzida de 1/6 a 1/3 (CP, art. 121, § 1º) (CAPEZ, PRADO, 2012, 112).
No mesmo sentido leciona César Roberto Bitencourt que as “circunstâncias são dados, fatos, elementos ou peculiaridades que apenas ‘circundam’ o fato principal. Não integram sua figura típica, podendo contribuir, contudo, para aumentar ou diminuir a sua gravidade” (BITENCOURT, 2000, pag 399)
Com base na leitura dos renomados doutrinadores acima expostos é possível compreender que circunstâncias são os dados acessórios que têm a função de influenciar na aplicação da pena, como por exemplo: agravantes e atenuantes, causas de aumento e diminuição da pena etc.
As circunstâncias são ainda dividas em objetivas e subjetivas.
As objetivas são aquelas ligadas a aspectos objetivos do delito, como por exemplo, modo de execução (traição, surpresa), lugar (ermo, grande circulação), momento do crime (noite) etc.
As circunstâncias subjetivas são aquelas que estão ligadas a pessoa e não ao fato, como a personalidade do agente ou os motivos que levaram o sujeito a cometer o crime.
Bitencourt leciona que as “condições de caráter pessoal são as relações do agente com o mundo exterior, com os outros seres, como estado de pessoa, de parentesco etc.” (BITENCOURT, 2000, pag 399)
Para Greco, as elementares são “dados essenciais à figura típica, sem os quais ou ocorre uma atipicidade absoluta ou uma atipicidade relativa” (GRECO, 2011, pag. 99).
O professor César Bitencourt ensina que as “elementares do crime são dados, fatos, elementos e condições que integram determinadas figuras típicas” (BITENCOURT, 2000, pag 399).
Capez e Stela Prado complementam indicando que “as elementares encontram-se no caput dos tipos incriminadores, que, por essa razão, são chamados de tipos fundamentais (CAPEZ, PRADO, 2012, 113)”.
Com as devidas conceituações, passa-se a explorar o que dispõe o artigo. Quando o texto esclarece que “não se comunicam às circunstâncias e as condições de caráter pessoal” está afirmando, por outro lado, que as circunstâncias objetivas (de caráter real) sempre vão se comunicar.
E como demonstrado anteriormente, a incomunicabilidade das circunstâncias e as condições de caráter pessoal é a regra, mas há exceção prevista no artigo: quando for uma elementar.
A título de exemplo tem-se o caso do sujeito pretende subtrair valores de uma repartição publica e chama seu amigo que é vigilante nesta repartição e tem fácil acesso ao cofre do local.
Conforme artigo 327 do Código Penal o vigilante é funcionário público e o seu amigo (desempregado e mentor do delito) sabe disso. A característica de pertencer ao funcionalismo público é pessoal e pertence ao vigilante. Via de regra ela não se comunicaria, pois conforme letra da lei, “não se comunicam às circunstâncias e as condições de caráter pessoal”.
Contudo esta qualidade de funcionário público é elementar do delito de peculato, pois está descrita no caput do tipo penal como se vê a diante:
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.(grifei).
As circunstâncias elementares, desde que atinjam a esfera de conhecimento de todos, sempre se comunicarão aos demais participantes do delito, da exceção prevista na parte final do artigo 30 do Código Penal.
Superada a análise do artigo 30, o próximo passo é estudar a natureza da paga ou promessa de recompensa para que se verifique em qual desses termos ela se adequa.
4. Natureza Jurídica da paga ou promessa de recompensa
Conforme já exposto, a paga ou promessa de recompensa é um exemplo de motivo torpe, portanto trata-se também de um motivo. Conclui-se assim a partir da leitura do texto legal que diz que o homicídio será qualificado quando for praticado “mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe”.
Como sendo motivo, trata-se de uma circunstância de caráter pessoal, ou seja, a paga ou promessa de recompensa configura a razão de agir do agente. Está ligada, portanto ao executor, que agiu impelido pelo recebimento. Por esse modo, essa circunstância de caráter pessoal só viria a se comunicar ao mandante se for ela uma elementar.
Contudo não se pode afirmar que trata-se de uma elementar pois não integra o núcleo do tipo. Não sendo uma elementar, por conseguinte, não se comunica ao mandante.
Conclui Capez e Stela Prado que o homicídio mercenário “constitui qualificadora subjetiva, já que diz respeito ao motivo que levou o agente a cometer o delito. Por constituir circunstância subjetiva, não se comunica aos demais coautores ou partícipes, nos termos do art. 30” (CAPEZ, PRADO, 2012, 312).
No mesmo sentido o criminólogo espanhol Jose Manoel Ferro Veiga, em comentário ao artigo 139, 2 do Código Penal da Espanha que assevera:
El precio, recompensa o promesa es la segunda circunstancia cualificativa del asesinato (art. 139.2) y corresponde con la agravante genérica del art. 22.3 del Código Penal. El fundamento de esta circunstancia cualificativa radica en una mayor reprochabilidad, en una mayor culpabilidadpor el móvil abyecto de matar a otro por puro interés material. El precio, la recompensa o lapromesa ha de ser el motivo por el que ejecuta la muerte de otro, la causa motriz del delito.
Esta circunstancia cualificativa del asesinato requiere la presencia de dos personas: de quien ofrece el pago, la recompensa o promesa (instigador o inductor) y de quien ejecuta el hechodelictivo por tales motivos (autor material o ejecutor). La agravante alcanza únicamente a este último pues sólo él actúa con el móvil de lucro que fundamenta esta agravante. El precio,recompensa o la promesa deben tener un contenido económico, aunque legalmente no se establece esta limitación.(VEIGA, 2012,p. 198)(grifei)
Como defensores deste entendimento podemos citar Fernando Capez, Flávio Monteiro de Barros, Luiz Regis Prado e Rogério Greco (PAULA, CARDOSO, 2014).
Esta proposta considera as qualificadoras como meras circunstâncias, muito embora existam doutrinadores que entendem de forma diversa.
O professor Fernando Galvão considera as qualificadoras como elementares do crime. Este entendimento vê a qualificadora como um tipo autônomo.
Como os tipos derivados qualificados derivados são autônomos em relação a figural fundamental por expressa previsão do artigo 30 do CP, todas as elementares dos tipos qualificados que envolvam características pessoais do autor podem se comunicar aos demais participantes do crime (GALVÃO,2013, pag 89).
Para melhor juízo deste fragmento da teoria do tipo penal é razão pela qual se passa a analisar os conceitos de tipo básico e tipo derivado.
5. Estrutura do tipo penal: o tipo básico e tipo derivado
O tipo penal é a mais precisa redução a termo da conduta humana. Há tipicidade quando o comportamento praticado se amolda exatamente às características do arquétipo normativo.
O tipo pode ser básico (fundamental) ou derivado. O Tipo fundamental (ou básico), via de regra, é o caput do artigo e descreve os requisitos essenciais da ofensa ao bem jurídico tutelado.
O tipo derivado, por sua vez, demonstra sempre uma conexão com o fundamental e cumpre a função de especificar peculiaridades agravando, atenuando, qualificando ou privilegiando a conduta.
A doutrina aponta ainda para os chamados delicta sui generis. Estes são tipos autônomos com aparência de privilegiados, por exemplo, o infanticídio.
O professor Fernando Galvão considera que os tipos derivados qualificados são autônomos em relação à figura fundamental, por tanto, são elementares que podem se comunicar aos demais participantes do crime.
Contudo, este não representa o entendimento majoritário da doutrina conforme se vê na explicação de Heleno Fragoso.
Nos casos de crimes qualificados ou privilegiados, não surge a formação de novo tipo. Estamos diante de elementos acidentais que alteram o tipo fundamental, agravando ou atenuando, de forma característica, a pena cominada. A configuração de tais hipóteses pressupõe sempre a aplicação do tipo básico ou fundamental (FRAGOSO, 1971).
Pode-se perceber então que as qualificadoras não são elementares do tipo. As elementares pertencem tão somente o denominado tipo básico (fundamental). Assim como as agravantes e atenuantes, as qualificadoras são tipos derivados.
A remoção de uma elementar é capaz de fazer desaparecer um tipo penal ou transformá-lo em outro.
No caso de remoção de uma circunstância o tipo básico não é afetado, ou seja, não gera atipicidade nem configuração de outro crime.
Ao se considerar, por outro lado, a qualificadora como tipo básico (e consequentemente uma elementar) por certo ela se comunicará ao mandante.
Contudo nada impede que este mandante seja movido por um motivo de relevante valor moral, como no exemplo de Marcelo Carvalho, um filho que ao ver o pai acometido de sofrimento e agonia implorando pela morte contrata outrem para cometer eutanásia.
Sendo assim:
A admissão da comunicabilidade da paga ou promessa de recompensa, seja por considerá-la uma elementar do tipo ou uma circunstância real, possibilitaria, em tese, que um homicídio fosse praticado por motivo torpe e relevante valor moral ao mesmo tempo, como no exemplo supra citado, igualando-se a hipótese acima o caso de um filho que contrata terceiro para ceifar a vida de seu pai visando a receber uma herança (CARVALHO, 2009)
Pode-se citar ainda o caso do sujeito que contrata alguém para matar o estuprador de sua filha. Caso estes mandantes respondam pela qualificadora, restará configurado o concurso de privilégio e qualificadora subjetiva, ou seja, um crime considerado “torpe” e “moral” simultaneamente.
6. Aspectos controvertidos sobre a individualização da pena.
Aplicando a teoria anteriormente explanada (qualificadora como circunstância que não se comunica), há num primeiro momento a sensação de que se solucionaram os problemas.
Entendendo a qualificadora como mera circunstância não haverá, por óbvio, comunicação ao mandante. Este poderá inclusive, se for o caso, ser beneficiado pela causa de diminuição de pena do parágrafo 1º (o privilégio).
A opção, contudo não traz uma solução para o fato de que o executor, ainda que pratique o homicídio por relevante valor moral ou social, não poderá ser beneficiado pelo privilégio, pois a lei considera que o ajuste de recompensa é exemplo de motivo torpe.
Sendo torpe, por obvio, não pode ser de relevante valor moral ou social.
Há de se convir, no entanto, que ato de contratar é algo objetivo, prático, palpável. Contudo, a lei o equipara a torpeza que é de fato um conceito subjetivo que depende de valoração por parte do juiz.
Por esta ótica, sem que houver ajuste o executor pratica conduta “torpe” que em nenhuma hipótese será de relevante valor moral ou social.
Supõe-se então uma situação em que um sujeito tenha uma jovem filha que beira a morte e necessita urgentemente de um rim para que sobreviva, contudo não aparecem doadores. Um jovem médico muito influente de um hospital o aborda e diz que o seu tipo sanguíneo e idade o faz ser um doador perfeito para acamada senhorita. Diz ainda que a equipe dele está pronta para fazer o transplante desde que ele ponha fim à vida do Diretor do hospital para que ele venha alcançar o cargo. O pobre senhor, na ânsia de ver sua filha curada, tira a vida do terceiro e sua filha recebe o tão precioso órgão.
No caso em tela o senhor evidentemente agiu movido pela recompensa de um rim para sua filha que corria sério risco de morte. Perguntas surgem então: seria possível dizer, no entanto que o seu motivo foi repugnante, viu ou repulsivo? Seria possível dizer que houve relevante valor moral? Nesse caso, seria possível aplicar a causa de diminuição de pena do parágrafo 1º para o executor?
Certamente à primeira pergunta deve-se responder que não. Não se pode qualificar o ato do senhor como ignóbil. À segunda pergunta, certamente houve um valor moral que talvez possa ser considerado relevante.
Para a última pergunta, pela doutrina e jurisprudência majoritária, certamente a resposta é não. Por estes entendimentos sem dúvida o executor responderia pela qualificadora do inciso I, parágrafo 2º, sem o privilégio.
A título de tese defensiva, para a fim de evitar a maior penalidade ao pai da senhorita, poder-se-ia alegar coação moral, estado de necessidade ou até mesmo uma tese de clemência (tendo em vista que o caso iria ao tribunal do júri que permite a plenitude de defesa, admitindo então a tese em questão).
Contudo, nenhuma interpretação seria capaz de sanar uma falha no texto da lei. No momento em que o legislador colocou a paga ou promessa como um exemplo de motivo torpe, não se pode separar estes conceitos. Sendo assim, o comportamento do senhor no exemplo será sempre torpe.
Assim, por mais que o executor tenha agido por uma razão que não se pode considerar “torpe” seu crime será “torpe”. A falha legislativa demonstra uma incoerência técnica que afasta a individualização da pena, uma vez que impede a aplicação do privilégio.
Agora, ao se considerar a teoria em que a qualificadora se comunica ao mandante, tecnicamente, nem mesmo este poderia receber a causa de diminuição de pena do parágrafo 1º (ainda que tenha mandado matar o estuprador de sua filha), pois o que é “torpe” não pode ser “moral”.
Considerações Finais
Por todo o exposto considera-se o texto legal resta eivado de equivoco trazendo de fato dúbia interpretação e constantes injustiças aos apenados. A melhor solução seria a reformulação da letra da lei tornando clara a individualização da Pena bem como separando o motivo torpe e o ajuste de recompensa.
Contudo, levando em consideração que a função dos operadores da lei não prevê a alteração de texto normativo, mas apenas sua interpretação e aplicação, observa-se que imputar qualificadora ao mandante do crime não é a decisão mais acertada.
Conforme visto, a motivação do delito para o mandante não necessariamente será torpe. Caso seja, deve ele responder pela torpeza. É notória ainda uma periculosidade maior na ação do executor, uma vez que este foi movido apenas pelo dinheiro. Fica ainda mais evidente o desprezo pela vida. Trata-se de um “profissional da morte” que bate a porta de qualquer um, desde que seja pago para isso.
Não se pode considerar também que a qualificadora se comunica ao mandante, pois não uma elementar do crime de homicídio. Pela lógica do artigo 30 do Código Penal é incompatível sua comunicação ao mandante.
Além de tudo deve-se ponderar que se há dúvida deve se aplicar a medida mais protetiva ao réu em respeito a um dos princípios basilares do direito penal.