OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS NA PROTEÇÃO DA FAMÍLIA HOMOAFETIVA
Dra. Cheila Geraldi
Advogada, Graduada no Curso de Direito na Faculdade Arnaldo Horácio Ferreira - FAAHF, Luis Eduardo Magalhães, BA, CEP: 47850-000
RESUMO – Este trabalho trata dos Princípios Constitucionais que consolidam alguns valores sociais dentro do Direito das Famílias. A Constituição Federal alçou alguns princípios à condição de fundamentais e estruturantes, entre eles, os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. A sexualidade também é um direito fundamental decorrente da própria condição humana. Importante destacar o princípio da solidariedade, que resulta da superação do individualismo jurídico, do modo de pensar e viver da sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais. O princípio da solidariedade não perde de vista seu caráter de reciprocidade, em que cada pessoa vive em relação para com a outra. À partir desta idéia, é possível inferir um rol de princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família: o princípio da liberdade, da igualdade, da afetividade, do melhor interesse da criança e do adolescente e da convivência familiar. O afeto pode ser apontado, atualmente, como o principal fundamento entre as relações familiares, ainda que não conste no texto da Carta Magna como um direito fundamental. Decorre da valorização constante da dignidade humana. Trata-se do princípio da afetividade, que se funda na liberdade e no desejo, e não mais no critério econômico-patrimonial e consangüíneo. A referência constitucional é norma de inclusão, que não permite deixar desabrigado qualquer tipo de família, incluindo assim, a família homoafetiva.
Palavras-chaves: direito fundamental, princípios constitucionais, família homoafetiva.
INTRODUÇÃO:
O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil atingiu seu ápice com a Constituição Federal de 1988, atingindo principalmente o Direito das Famílias nesse processo de transformação. Foi na vigência da atual Constituição que se consolidou valores há muito clamados pela sociedade, o que propiciou um completo redirecionamento no conteúdo do Direito das Famílias.
Atualmente, os princípios ocupam posição de destaque no sistema das fontes do direito, detendo a primazia na escala hierárquica, como se pode observar com a análise da Lei de Introdução do Código Civil, que em seu Artigo 4º, expressa que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Assim, os princípios assumiram posição de destaque na pirâmide normativa, passando a conformar a lei aos fatos de reconhecida insuficiência desta para realizar os anseios sociais, enquanto os princípios permitiram seu preenchimento e serviram como instrumentos determinantes dos valores supremos intrínsecos à sociedade em determinado contexto.
A Constituição de 1988 alçou alguns princípios à condição de fundamentais e estruturantes, entre eles, os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. O art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988, prevê que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Trata-se daquilo que é denominado na doutrina como superprincípio, ou princípio máximo, ou ainda, princípio dos princípios.
Destarte, diversas são as contribuições doutrinárias no sentido de se definir o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, mas a mais recorrente é a de Kant, para quem deve ser compreendido nos seguintes termos:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. (KANT, 1997, p.43).
Tal princípio colocou a pessoa como centro das preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo o sistema, que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para a proteção das pessoas, independente de sua condição, raça, crença, sexo, idade, cultura ou outras circunstâncias.
A união homoafetiva apresenta alguns requisitos para a sua admissão quais sejam: a seriedade, a estabilidade e o propósito de constituição familiar. Estes, não podem ser reduzidos ao entendimento convencional da autoridade pública ou religiosa, mas valorados segundo a tábua de valores constitucionais que, de maneira objetiva e democrática, fixa na realização da pessoa humana e de sua dignidade o parâmetro para o reconhecimento da entidade familiar.
Tal opção exprime a personalidade de cada indivíduo, bem como de sua tutela, e, portanto, se mostra indispensável para a realização da dignidade da pessoa humana (nos termos da Magna Carta, em seu artigo 1º., III), no Estado Democrático de Direito (conforme o artigo 1º., caput, da Constituição Federal), cujo objetivo é a solidariedade social (art. 3º., I, CF) que pressupõe a convivência com a diversidade e uma barreira a todo e qualquer preconceito (CF, art. 3º., IV).
A sexualidade é um direito fundamental decorrente da própria condição humana. É um direito natural, inalienável e imprescritível de cada um. A sexualidade é um elemento integrante da própria natureza e abrange a dignidade da pessoa humana. O homossexualismo não deve ser visto apenas como uma opção sexual, mas sim, como uma condição sexual. Uma condição imposta pela própria natureza íntima da pessoa, que não deve ser criticada ou ignorada, mas sim, respeitada, com devida proteção ao direito à sua intimidade.
Tratando do princípio da solidariedade, Paulo Lôbo (2008, p.40) ensina: “O princípio jurídico da solidariedade resulta da superação do individualismo jurídico, que por sua vez, é a superação do modo de pensar e viver da sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais.” A República Federativa do Brasil em conformidade com o art. 3º, inc. I, da Constituição Federal de 1988, reconhece a solidariedade social como objetivo fundamental, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, uma vez que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. O princípio da solidariedade pode ser exemplificado com o pagamento dos alimentos, no caso de sua necessidade, nos termos do art. 1.694 do atual Código Civil.
Contudo, vale lembrar que a solidariedade não é só patrimonial, mas também afetiva e psicológica. Em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (Art. 227. CF/88) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação. Enquanto o princípio da dignidade da pessoa humana privilegia o indivíduo, o princípio da solidariedade não perde de vista seu caráter de reciprocidade, em que cada pessoa vive em relação para com a outra. Juridicamente, os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos e, a partir deles, é possível inferir um rol de princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família: o princípio da liberdade, da igualdade, da afetividade, do melhor interesse da criança e do adolescente e da convivência familiar.
Quanto ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, prevê o art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988, que:
Art. 227. é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) reafirma a família como elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças. O princípio do melhor interesse da criança é um dever jurídico imposto à família, à sociedade e ao Estado, que deve ser observado nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade.
Intrinsecamente, relacionado com o princípio do melhor interesse e integrando o núcleo de vários direitos fundamentais, verifica-se o direito a convivência familiar e comunitária. Segundo Fabíola Albuquerque (2009, p.25) “esse direito decorre diretamente do reconhecimento atribuído à família enquanto núcleo natural e fundamental da sociedade”.
A criança precisa de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade, devendo, sempre que possível, crescer com o amparo e sob a responsabilidade dos pais, mas em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e fraternal. A convivência familiar deve ser compreendida como a relação afetiva e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, principalmente as crianças.
Segundo o texto constitucional, em seu artigo 226, caput, família é a base da sociedade, e em momento algum há qualquer predicativo do tipo de formação das famílias que será destinatária da tutela legal. A repersonalização deve ser compreendida como o processo de deslocamento da tutela jurídica do indivíduo proprietário para a tutela do indivíduo enquanto pessoa, dotada de dignidade.
Assim, ilustríssimo Paulo Lôbo, mais uma vez engrandece essas referências com as seguintes palavras:
O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em toda a sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo medida da propriedade, que passa a ter função complementar. (LOBO, 2007, p.51).
Também importante destacar:
A pluralidade das entidades familiares se manifesta quando a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, reconhece outras espécies, para além do casamento, todavia não significa que alberga, apenas aquelas, expressamente, previstas, pelo contrário, sua natureza principiológica e contemplativa da cláusula geral de inclusão tutela todo e qualquer tipo de arranjo familiar, ainda que implícito.(ALBUQUERQUE, 2009, p.88).
Segundo o princípio da liberdade, pode-se verificar em relação aos cônjuges ou companheiros, a escolha do tipo de entidade familiar que será constituída e na sua permanência ou não. Além disso, há também a liberdade ao planejamento familiar, à aquisição e administração do patrimônio familiar, bem como, na escolha de regime de bens para o casamento.
Em relação às pessoas integrantes de um arranjo familiar implícito, quanto à incidência do princípio da liberdade, bastante percucientes são as considerações de Rodrigo da Cunha Pereira:
Uma sociedade justa e democrática começa e termina com a consideração da liberdade e da autonomia privada. Isto significa também que a exclusão de determinadas relações de família do laço social é um desrespeito aos direitos humanos, ou melhor, é uma afronta à dignidade da pessoa humana. O direito de família só estará de acordo com a dignidade e com os Direitos Humanos a partir do momento em que essas relações interprivadas não estiverem mais à margem, fora do laço social. (PEREIRA, 2006, P.100).
Quanto aos filhos, o princípio da liberdade também encontra fundamento no Art. 227 da Constituição Federal, servindo de base para o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º (Lei 8069/90), cujo conteúdo perpassa pelo reconhecimento da liberdade de opinião e expressão e da liberdade de participar da vida familiar e comunitária, sem qualquer tipo de discriminação, conforme pode ser confirmada pela letra do referido artigo:
Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Todavia, deve ser lembrado que a liberdade proclamada, oriunda das relações de afeto, entre pais e filhos, é em função da idade e maturidade da criança, em consonância com a evolução de sua capacidade, pois são pessoas em desenvolvimento. Assim, a liberdade do filho encontra limites nos direitos dos pais, bem como a liberdade dos pais encontra limites nos direitos dos filhos. Trata-se de uma liberdade emoldurada no pressuposto de socialização, da realização afetiva dos seus componentes.
A Constituição Federal de 1988 proclamou a igualdade entre os filhos, independente da origem e proibiu a discriminação. Assim, os filhos havidos por adoção foram incluídos, despontando a família socioafetiva e redirecionando o lugar e papéis de cada componente. Nas contribuições de Rodrigo da Cunha Pereira:
“Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de ‘lugar’ que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai ou mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos”. (PEREIRA, 1997, p.62).
O afeto pode ser apontado, atualmente, como o principal fundamento entre as relações familiares, ainda que não conste a palavra afeto no texto da Carta Magna como um direito fundamental, pode-se dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana. Trata-se do princípio da afetividade.
O princípio da afetividade vem sendo muito bem aplicado na jurisprudência nacional, com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, predominante sobre o vínculo biológico. A razão de ser da formação dos vínculos familiares funda-se na liberdade e no desejo, portanto na afetividade, não mais no critério econômico-patrimonial e consangüíneo.
CONCLUSÃO:
O Código Civil de 2002, apesar de sua reconhecida insuficiência no tratamento de algumas questões de família, contemplou alguns princípios que possibilitam uma interpretação mais aberta e o enfrentamento de questões não positivadas na codificação.
Nos tempos de hoje, não é mais possível compreender os conceitos de direitos de família, dignidade, direitos humanos e cidadania de modo dissociado, pois todos estão intrinsecamente relacionados, e, somente com este olhar é possível realizar o direito de famílias em sua plenitude, o que significa a legitimação e a inclusão no laço social de todas as formas de família, respeito a todos os vínculos afetivos e todas as diferenças existentes.
A referência constitucional é norma de inclusão, que não permite deixar desabrigado qualquer tipo de família, dispondo um conceito pluralístico, podendo, assim, incluir também, por mais resistências culturais, religiosas e sociais, a entidade familiar homoafetiva.