RESUMO: Propõe-se um breve estudo acerca da crise habitacional e do processo de instituição das ocupações urbanas constituídas para fins de moradia, analisando-se aspectos da autonomia sócioespacial dos ocupantes frente ao sistema de expulsão e exclusão da cidade formal. Defende-se que as ocupações criam um ambiente favorável à ampliação da autonomia e do pensamento crítico dos partícipes, que passam a se enxergar como sujeitos de direitos e a exigir maior participação na gestão da cidade.
INTRODUÇÃO
A cidade deve ser espaço de emancipação, exercício da cidadania, concretização dos direitos fundamentais individuais e coletivos, bem como dos direitos de participação - entendidos aqui como o direito de tomar parte da cidade com real possibilidade de influência sobre o poder político. Portanto, o direito à cidade tem viés democrático e integrador, pautado, sobretudo, na Justiça Social, envolvendo a efetiva participação de seus pertencentes na gestão da cidade.
A questão relativa à concretização do Direito à Cidade na dimensão da garantia de moradia adequada - que transcende o simples “habitar” - carece de eficácia jurídica, já que a segregação sócio espacial permanece uma constante no espaço urbano.
No campo da institucionalidade, aponta-se uma ampliação de direitos relacionados ao usufruto da cidade e à moradia, decorrente da inclusão da função social da propriedade na Constituição Federal (BRASIL, 1988) e da inserção do direito à moradia no rol dos direitos e garantias fundamentais, bem como com o advento do Estatuto da Cidade - Lei 10.257/2001 (BRASIL/2001) e a previsão dos planos diretores como instrumentos de regulação da propriedade. Algumas cidades, como Belo Horizonte, passaram a contemplar a existência de orçamentos participativos e a previsão de realização de audiências públicas em assuntos de importância social, o que, em tese, deveria denotar uma ampliação da participação popular na gestão da cidade.
Contudo, embora seja necessário, o caminho institucional se mostra deficiente para atender às demandas sociais, especialmente no que se refere à moradia. Os processos de produção do capital e seus excedentes, a especulação imobiliária, a gentrificação e o aumento dos alugueis, dentre outros fatores, acentuam o problema da carência habitacional e fomentam o desenvolvimento da moradia informal.
Ermínia Maricato alerta que a ausência de controle público sobre a propriedade da terra contribui para a carência habitacional, a segregação territorial, o aumento do custo da infraestrutura e serviços, aumento da violência, predação ambiental, além de impor maior sacrifício à população pobre excluída da sociedade. Em regra, as leis são aplicadas como se o direito à propriedade fosse absoluto e à moradia, relativo (MARICATO, 2015). Maricato aponta, ainda, que pouco se avançou no plano social após a vigência de mecanismos jurídicos institucionais como o Estatuto da Cidade. A legislação existe, porém não é aplicada a contento. Silke Kapp esclarece que “as políticas e programas já existentes tendem a reproduzir procedimentos de urbanização da cidade formal, também heterônomos.” (KAPP, 2012). Por outro lado, os instrumentos de participação popular existentes deixam a desejar quando analisados sob a perspectiva da efetividade, da real possibilidade de influência. Os mencionados instrumentos de participação são pouco divulgados pelo poder estatal, que possui tendência de atuar pela manutenção do status quo em favor das elites.
A corroborar esta constatação, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o grupo de pesquisa PRAXIS, sediado pelo Departamento de Projetos e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgou, em junho de 2016, relatório sobre as ocupações urbanas existentes, por meio do qual foram catalogados vinte e quatro assentamentos irregulares (BITTENCOURT, NASCIMENTO, GOULART, 2016). De 2008 em diante houve aumento significativo com o surgimento de vinte e duas das vinte e quatro ocupações urbanas catalogadas. Fato interessante é notar que, diversamente da tendência anterior na qual o desenvolvimento informal ocorria, em regra, em áreas periféricas, se constata a constituição de ocupações urbanas em áreas centrais e/ou “valorizadas” no mercado imobiliário de BeloHorizonte, como a recentíssima Ocupação Carolina Maria de Jesus, instalada em um ediíficio inutilizado no bairro Funcionários, no qual se abrigaram cerca de duzentas famílias.
Questiona-se se as ocupações urbanas, tendo em vista seu processo de constituição articulado por diversos atores (moradores, movimentos sociais, advogados e arquitetos populares), ao criar ambientes de luta e resistência, teriam o condão de impulsionar um processo de ampliação e afirmação política da autonomia sócioespacial dos ocupantes, sob o viés do exercício da cidadania, da participação e amplificação da consciência política - dos ocupantes frente ao sistema de expulsão da cidade formal.
OCUPAÇÕES URBANAS COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À CIDADE
A cidade é espaço de luta política e de articulação de direitos. Lefebvre parte da premissa de que o direito à cidade se manifesta “como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito de propriedade) estão implicados no direito à cidade.” (LEFEBVRE, 2006, p. 134). Portanto, na concepção Lefebvriana, o direito à cidade envolveria uma imposição de não exclusão da vida urbana com pleno usufruto dos benefícios dela decorrentes, ao mesmo tempo em que os ônus também são distribuídos de maneira equitativa. O efetivo exercício do direito à cidade tem por consequência a apropriação do espaço urbano pelos partícipes.
O sistema capitalista perpetua e acentua as desigualdades existentes e. O Estado, por sua vez, é o maior ator mantenedor dessas desigualdades, em prol da continuidade dos benefícios das classes detentoras do poder político-econômico que possuem real poder de influência em suas demandas. Diante da evidente crise do sistema capitalista, Lefebvre defende a necessidade de uma reconstrução da cidade em que a participação seja uma constante, transformando-a no local de festa.
A prática, especialmente no que se refere à dimensão da moradia adequada, revela realidade distinta daquela idealizada por Lefebvre. Institucionalmente, apenas na Constituição Federal de 1988 a moradia foi incluída no rol de direitos e garantias fundamentais, estabelecendo-se também a necessidade de observância ao princípio da função social da propriedade. O Estatuto da Cidade veio a lume com preceitos para concretização do direito à moradia que se mostraram insuficientes para a mitigação do problema da habitação.
É neste contexto de crise urbana em conjunto com a ineficiência das ferramentas institucionais que surgem as ocupações, em clara expressão de resistência e luta no território político de embate que se constitui a cidade. Tais assentamentos escancaram as mazelas do sistema de exclusão caracterizado pela produção de excedentes, uma vez que são instalados em terrenos que descumprem a função social da propriedade e que, em regra, possuem o fim único de servir à especulação imobiliária. Os moradores das ocupações, por sua vez, foram privados do acesso à cidade formal e das vantagens que ela oferece. Portanto, dentro de um sistema de contrabalanceamento de direitos, a situação de ilegalidade a que estariam circunscritas as ocupações não é mais ilegal do que a que está incurso aquele que não dá o adequado aproveitamento à propriedade.
OCUPAÇÕES URBANAS E AUTONOMIA SÓCIOESPACIAL
A autonomia sócioespacial está ligada à ideia de independência, liberdade, autossuficiência: determina a liberdade de autogestão daquele grupo no espaço que ocupam na sociedade. Marcelo Lopes de Souza destaca que “as práticas espaciais não são mais do que práticas sociais (ou seja, ações realizadas por assuntos coletivos e incorporadas em uma teia de significados e valores, sejam essas ações intencionais ou não) cuja dimensão espacial seja particularmente forte ou evidente” (SOUZA, 2015, p. 413).
As ocupações urbanas, em contraponto à ordem estabelecida, preenchem um espaço vazio e dão um destino finalístico a um bem sem uso para fazer valer o direito à moradia e, em última instância, aplicar a própria Constituição Federal. Nesta toada, a ação das ocupações e a conjuntura em que estão inseridas as diferenciam das “invasões”, que trazem em si, à primeira vista, um caráter pejorativo, hostil. Invadir significa penetrar num determinado lugar e ocupá-lo pela força, apoderar-se injustamente, tomar para si, ocupar um lugar de forma maciça e abusiva. As ocupações, por sua vez, partem de uma premissa pacífica e positiva, política. Natália Lelis traz importante distinção acerca das diferenças entre os termos “invadir” e “ocupar”:
O ponto mais interessante dessa construção é que ela dissimula o que é o cerne do caráter político das ocupações, aquilo que as constitui como espaços diferenciais - a radicalidade da sua poética. Trata-se de uma presença que é imposta. Ainda que não o faça de maneira explicitamente violenta, com o uso de armas, ela se impõe simbolicamente através do uso de estratégias previamente definidas para viabilizar seu objetivo: o início na madrugada, o grande número de pessoas, a mobilização de apoio nas redes sociais e a mobilização do discurso da legitimidade jurídica. Ela se impõe, nos termos de Ranciere, como alteração (na percepção) do mundo compartilhado.
As ocupações invadem. Invadem o mundo compartilhado. Invadem o terreno dos outros que estavam lá como expectativa de lucro. Invadem a vizinhança como diferença entre os que lutam e os que se sujeitam. Invadem a ordem sócioespecial criada e protegida pela regulação urbana. Invadem o ordenamento jurídico. Não há legalidade presumida com o início de um parcelamento do solo sem projeto aprovado. E é porque invadem que as ocupações se estabelecem como um mundo diferente e da diferença, espaço do que não tem espaço, parcela dos que não têm parcela. (LELIS, 2016, p. 438)
As ocupações, portanto, se constituem no seio de uma ilegalidade formal que merece reflexão frente às desigualdades sistematicamente mantidas. Sopesando valores, de modo a contrabalançar dois direitos garantidos constitucionalmente - a propriedade e a moradia - não nos parece minimamente razoável e humanitário (já que a moradia é um direito humano internacionalmente reconhecido) se atribuir maior valor à propriedade diante de uma situação que evidencia a inutilização de um bem mantido por seu proprietário unicamente para atender a uma expectativa de lucro.
Neste contexto, as reivindicações e ações propostas pelas ocupações demonstram sua natureza de movimentos de resistência nos quais, além da busca pela moradia por si só, existe uma consciência geral acerca da concepção de conflito e de enfrentamento, de não sucumbência à autoridade ditada tanto pelo poder econômico quanto pela propriedade para fins especulativos.
É necessário, porém, reconhecer a heterogeneidade dos moradores das ocupações, cada qual com suas necessidades e valores. Em geral, defendemos que o cotidiano nos assentamentos amplia as concepções que os ocupantes possuem acerca do direito à cidade para além da simples questão do “habitar”, transcendendo a ideia de simplesmente se ter um local para morar como condição de sobrevivência. Em trabalho de campo realizado na Ocupação Camilo Torres (RMBH), os pesquisadores constataram a existência de diversos elementos que ultrapassam o viés da formalidade e ligam a pessoa à sua moradia e ao espaço que está inserido, como “os laços estabelecidos dos moradores com os vizinhos, com a terra, com o espaço em geral e que refletem na subjetividade da pessoa, fazendo parte assim da construção da sua história e da sua personalidade.” (DIAS et al, 2015, p. 09). Essas características iniciam um processo de ampliação da autonomia dos partícipes, que passam a se enxergar como sujeitos de direitos e a exigir do Estado a implementação destes. Deste modo, conclui-se que o fenômeno das ocupações urbanas influencia, sobretudo, no exercício da cidadania e na afirmação da autonomia.
Em outra ponta, Natália Lélis, em seu trabalho já citado, destaca o fato de os ocupantes, dentro do seu processo da diferença e no contexto da pluralidade de participantes, cada um com sua singularidade, buscarem exatamente a aceitação no seio social, inclusive com a adoção de posturas que reproduzem preceitos do capitalismo, em aparente contradição com os fundamentos que legitimam sua luta (LÉLIS, 2016, p. 441-442). Porém, a luta política envolve também a busca pelo seu local de fala, de ser visto como um “igual”, um participante da sociedade e da cidade formal, justificando-se, assim, seu anseio de “pertencer”.
Por outro lado, a existência de vários atores também influenciaria na percepção dos moradores acerca das próprias necessidades, já que diversas vezes os movimentos sociais acabam por assumir o papel principal na propositura de demandas perante o poder público como representantes da ocupação. No mapeamento realizado pelo grupo PRÁXIS de pesquisa, das vinte e quatro ocupações catalogadas na RMBH, apenas a ocupação Terra Nossa, situada no bairro Taquaril, não conta com o auxílio de movimentos sociais. Thiago Lourenço Castelo Branco alerta que a presença de movimentos sociais e de profissionais como arquitetos e advogados populares pode criar suposta relação de dependência dos moradores para com estes atores (LOURENÇO, 2016, p. 85-90).
Sobre esse tema, Natália Lélis destaca: “Há uma contradição no fato de que os promotores almejam a consciência crítica e a emancipação dos moradores adotando, como meio para esse fim, uma estrutura de organização heterônoma e hierarquizada, entendendo como emancipação a apropriação do outro de seus ideais de emancipação” (LÉLIS, 2016, p. 441). Dentro dessa perspectiva, o “outro” estaria falando e demandando de acordo com seus próprios ideais em nome dos ocupantes, estabelecendo, assim, os pontos que seriam de importância àquela ocupação.
Entretanto, embora as críticas sejam em parte verdadeiras, entendemos que a existência desses atores plurais é importante para dar impulso ao processo de afirmação da autonomia sócio espacial no seio das ocupações, para que, em um momento próximo, o pensamento crítico e a consciência política sejam majoritariamente decorrentes das formulações dos próprios ocupantes. O desenvolvimento da autonomia do ser dentro de qualquer seio social e, mais ainda, quando se trata de parcela de sociedade relegada à exclusão e ao esquecimento, exige a presença da troca de ideias e opiniões para que se possa, assim, dar origem aos próprios ideais e enxergar-se como um partícipe da cidade.
CONCLUSÃO
A cidade deve cumprir sua função social como espaço de exercício da autonomia, garantindo-se a todos o direito de tomar parte desta com real possibilidade de influência sobre o poder político. O Direito à Cidade traz em si a ideia de que a todos deve ser assegurado o usufruto dos benefícios do espaço urbano, assim como deve haver uma distribuição equitativa dos ônus dela decorrentes.
Historicamente, o capitalismo impõe a manutenção de uma relação hierarquizada entre as elites detentoras do poder político econômico em face das classes mais pobres, as quais são expulsas da cidade formal por diversos fatores. O sistema capitalista, portanto, funciona como uma ferramenta de manutenção do sistema de desigualdades existente.
O problema da falta de moradia adequada e a clara insuficiência dos mecanismos institucionais para solucioná-lo ou, ao menos, minimizá-lo, contextualizam o surgimento das ocupações urbanas. As ocupações se diferenciam dos assentamentos informais até então existentes em razão da presença de uma maior consciência política social na busca da concretização de seus direitos básicos. Assim é que se afirma que as ocupações são distintas das “invasões”. As ocupações urbanas, diferentemente do simples ato de invadir de maneira injusta um terreno, se constituem em lugares inutilizados que não cumprem uma função social, mantidos, sobretudo, para fins de especulação imobiliária e expectativa de lucro.
Ocupar, portanto, é um ato de resistência política contra o Estado e o poder econômico para fazer valer o direito à moradia e o pertencer à cidade. A ilegalidade formal em que estariam incursos os ocupantes não pode ser considerada mais ilegal que a manutenção de propriedades com fins meramente especulativos. Não nos parece minimamente razoável a atribuição de maior valor ao direito de propriedade exercido unicamente como expectativa de lucro em face da concretização do direito à moradia. As reivindicações e ações propostas pelas ocupações demonstram uma consciência geral acerca da concepção de conflito e de não sucumbência à autoridade ditada pelo poder econômico e pela propriedade.
No contexto da autonomia sócio especial, verifica-se que o cotidiano nestes assentamentos elastece as concepções que os ocupantes possuem acerca do direito à cidade para além do “habitar”, iniciando um processo de ampliação da autonomia dos moradores, que passam a se enxergar como sujeitos de direitos merecedores da atenção estatal.
Por sua vez, a busca de aceitação no seio social pelos ocupantes, inclusive com a adoção de posturas que reproduzem preceitos do capitalismo, em aparente contradição com os fundamentos que legitimam a luta, envolve também a busca pelo seu local de fala, justificando seu anseio de “pertencer”. Lado outro, aponta-se que a presença de uma pluralidade de atores (movimentos sociais, advogados e arquitetos populares, dentre outros), na formação e gestão do assentamento também influenciaria a percepção dos moradores acerca das próprias necessidades, já que estes muitas vezes exercem o papel principal na propositura de demandas perante o poder público como representantes da ocupação.
Não obstante, entendemos que a existência desses atores plurais é fundamental para dar continuidade ao extenso processo de afirmação da autonomia das ocupações e seus moradores. Trata-se de um passo inicial que, futuramente, esperamos viabilizar um processo no qual o pensamento crítico, a consciência política e a afirmação das demandas decorram das formulações dos próprios ocupantes. O desenvolvimento autonomia do ser dentro de qualquer seio social e, mais ainda, quando se trata de parcela de sociedade relegada à exclusão e ao esquecimento, exige a presença da troca de ideias e opiniões para que se possa, assim, dar origem aos próprios ideais e enxergar-se como um partícipe da cidade.