Judiciário pode condenar o Poder Público a fornecer medicamentos


21/12/2016 às 16h22
Por Carlos Henrique Dias

A Constituição Federal de 1988 foi desenvolvida com uma atenção especial aos direitos fundamentais, tanto que, ao contrário do que ocorria nas Constituições anteriores, os direitos e garantias fundamentais foram tratados logo de início, no Título II, a partir do artigo 5º. Isso não se deu sem motivo, bastando verificar que o primeiro artigo de nossa Constituição, em seu inciso III, consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.

Indiscutível que a dignidade do indivíduo somente será atendida com a preservação de sua saúde, razão pela qual a Assembléia Constituinte de 1988 incluiu entre o rol de direitos sociais a saúde, nos termos do artigo 6º. Os direitos fundamentais obrigam o Poder Público a atuar de modo a satisfazê-los, em virtude de sua eficácia dirigente.

Desse modo, a previsão da saúde como direito social não pode ser desprezada pelo Estado, tendo em vista ser ele obrigado a garantir à população o mínimo necessário para uma sadia qualidade de vida. Aliás, os gastos que o Estado tem com saúde são custeados pelos próprios contribuintes, através da receita geral dos impostos, sendo que os Municípios, ao contrário do que possa parecer, não suportam seus gastos apenas com as receitas dos seus impostos, mas também por meio de transferências realizadas pela União e pelos Estados, conforme artigo 157 e seguintes da Constituição.

Além de figurar na Constituição como direito social, a saúde é DEVER do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (art. 196). Ademais, o próprio artigo 198 reforça o dever do Poder Público para com a saúde, ao estabelecer em seu § 2º que a União aplicará, anualmente, no mínimo 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde; enquanto que os Estados aplicarão o percentual mínimo de 12% sobre a receita adquirida com seus impostos e transferências recebidas da União, deduzidos as quantias repassadas aos Municípios (art. 6º da Lei Complementar 141/2012).

Os Municípios, por sua vez, também possuem o dever de arcar com ações e serviços públicos de saúde, tendo em vista que o artigo 7º dessa lei impõe a aplicação mínima de 15% da receita de seus impostos e recursos recebidos dos demais entes federativos para essa finalidade. Fica fácil deduzir, portanto, que tanto a Constituição Federal quanto a legislação ordinária conferiu a TODOS os entes federativos o dever de fornecer à população condições mínimas de saúde.

É nesse ponto que surge o objetivo central deste artigo, ou seja, destacar o dever dos Municípios, dos Estados e da União em fornecer medicamentos para quem necessite e não possa custeá-los. Ocorre que, embora exista o dever de implementar políticas públicas com vistas ao atendimento das necessidades da população, em algumas situações o Poder Público deixa de aplicar recursos suficientes na saúde - em determinadas hipóteses por insuficiência de orçamento -, como se pode constatar pela ausência de medicamentos nas "farmácias populares".

De acordo com o artigo 2º, § 1º da Lei 8.080/1990, o dever estatal será cumprido por meio do SUS - Sistema Único de Saúde, através de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços. Como se vê, o acesso aos benefícios se dará de modo universal e IGUALITÁRIO.

Todavia, embora o acesso deva ser igualitário, em determinadas ocasiões o tratamento que o cidadão precisa não está incluído entre aqueles fornecidos pelo SUS e, em virtude do alto custo, não pode ser custeado por ele próprio. Nessa ocasião, em nome do princípio da isonomia, deve ser destinada a ele uma atenção especial, sob a justificativa da situação, também especial, na qual se encontra.

Caso o Poder Público, nesse caso, não conceda os medicamentos de forma amigável, outra opção não resta ao interessado senão fazer uso de seu direito constitucional de acesso à Justiça, garantido no artigo 5º, XXXV, da Constituição. Dessa forma, é cada vez maior o números de pessoas que acionam o Poder Judiciário em busca de medicamentos essenciais ao seu tratamento, quando negado o fornecimento administrativamente pelo Poder Público.

Na maioria dos casos o argumento utilizado pelos Municípios, Estados e até mesmo pela União é a ausência de recursos, e que o fornecimento de medicamentos a um único indivíduo deve ser atendido dentro da "reserva do possível", a fim de não impossibilitar o atendimento das necessidades das demais pessoas. Percebe-se que tal argumento não se justifica, pois aquele que se socorre do Judiciário só adotou tal comportamento porque não teve seu direito social à saúde atendido anteriormente pelo Estado.

Felizmente as recentes decisões judiciais, inclusive dos Tribunais Superiores, como se verificará no julgado do Superior Tribunal de Justiça a seguir exposto, vêm afastando o frágil argumento da "reserva do possível", a fim de privilegiar um "mínimo existencial".

O mínimo existencial reflete aquilo que é indispensável ao Ser Humano, os direitos básicos para a sua sobrevivência, sendo a saúde o mais essencial desses direitos. Nesse sentido, o Poder Judiciário vem concedendo aos indivíduos o direito de receber medicamentos e, consequentemente, condenando o Poder Público a fornecê-los.

O Superior Tribunal de Justiça recentemente proferiu decisão admitindo a possibilidade de o Poder Judiciário condenar os Municípios, os Estados e a União a fornecer medicamentos aos pacientes que deles necessitem para o tratamento de doenças e que não possuam recursos financeiros para adquiri-los. Referido entendimento foi adotado no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 953.862-MG, Relatora Ministra Assusete Magalhães, julgado em 08/11/2016, no qual o Município de Juiz de Fora - MG foi condenado a fornecer medicamentos a um paciente. Vejamos.

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REDUÇÃO. SÚMULA 7/STJ. RAZÕES DE RECURSO QUE NÃO IMPUGNAM, ESPECIFICAMENTE, OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA 182/STJ. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA 568/STJ E ART. 253, PARÁGRAFO ÚNICO, II, B, DO RISTJ. AGRAVO INTERNO PARCIALMENTE CONHECIDO, E, NESSA PARTE, IMPROVIDO. (...) III. Conforme a jurisprudência dominante do STJ, "o funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS é de responsabilidade solidária da União, estados-membros e municípios de modo que qualquer destas entidades tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros" (STJ, AgRg no Resp 1.225.222/RR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 05/12/2013) (...) V. Agravo interno parcialmente conhecido, e, nessa parte, improvido

Nesse processo também se verifica outra questão importante, ou seja, a obrigação solidária existente entre os entes federativos, podendo qualquer deles sofrer a condenação isoladamente. O entendimento do próprio Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a pessoa pode acionar de modo isolado o Município, o Estado ou a União, pois o Sistema Único de Saúde é dever de todos eles.

Considerando o montante dos orçamentos, a observação importante feita pelos Tribunais reside no valor do medicamento, cabendo, geralmente, ao Município fornecer aqueles de menor custo, enquanto que a União suportaria os mais caros.

O Poder Público muitas vezes critica essas decisões, sob o argumento de que o Poder Judiciário estaria violando a Separação dos Poderes ao condenar o Executivo a fornecer medicamentos a pessoas hipossuficientes. De fato, a Separação dos Poderes não pode ser violada, pois se encontra entre as matérias que não podem ser enfraquecidas por Emenda Constitucional (art. 60, § 4º, III da Constituição, conhecidas por clausulas petreas).

Ocorre que a dignidade da pessoa humana, prestigiada pelo fornecimento dos medicamentos e atendimento à saúde, também se faz presente nesse grupo de matérias, conforme artigo 60, § 4º, IV. Além disso, os juízes e Tribunais não estão obrigando o Poder Público a fazer algo sem fundamento legal ou constitucional, pelo contrário, o que ocorre é o atendimento do dever constitucional de assegurar o direito social à saúde.

Cabe destacar também a impossibilidade de o Estado chamar a União ou o Município ao processo movido apenas contra ele, tendo em vista que a obrigação de manter o SUS é solidária, o que torna possível ao cidadão acionar judicialmente qualquer um dos entes federativos. Nesse sentido é o julgamento do Recurso Especial 1.203.244/SC, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça aos 09/04/2014, tendo como Relator o Ministro Herman Benjamin.

Conclui-se, assim, ser possível ao cidadão desprovido de recursos financeiros requerer ao Judiciário que condene o Poder Público a cumprir seu dever constitucional para com a saúde, objetivando receber medicamentos do Município, do Estado ou da União. Tal possibilidade não representa qualquer violação à Separação dos Poderes, mas sim o prestígio da dignidade da pessoa humana e do direito social à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, III, e 6º do texto constitucional.

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Carlos Henrique Dias

Bacharel em Direito - Iturama, MG


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