Resumo: Como resultado de um longo processo histórico de apreciação aos direitos humanos, o Tribunal Penal Internacional se estabelece como o primeiro órgão de jurisdição internacional de caráter permanente com o objetivo de por fim à impunidade dos autores de crimes que afetam a comunidade internacional em seu conjunto. O Tribunal decorre do desenvolvimento de uma cidadania mundial onde todos os atores sociais devem zelar pela perpetuação da paz mundial e reprimir aos atos que ameacem perturbá-la. O presente estudo, visa delinear o contexto de surgimento do Tribunal Penal Internacional bem como seus princípios basilares e limites de jurisdição e, pretende ainda, analisar a sua contribuição para a efetivação dos Direitos Humanos.
Palavras Chave: Tribunal Penal Internacional, crimes contra a humanidade, cidadania mundial, direitos humanos, justiça internacional.
Abstract: As a result of a long historical process of human rights appreciation, the International Criminal Court establishes itself as the first permanent body of international jurisdiction to end the impunity of perpetrators of crimes affecting the international community as a whole. The Court derives from the development of a universal citizenship where all social actors must ensure the perpetuation of world peace and repress acts that threaten to disturb it. The purpose of this study is to outline the context of the emergence of the International Criminal Court, as well as its basic principles and limits of jurisdiction, and also intends and to analyze its contribution to the effectuation of Human Rights.
KeyWords: International Criminal Court, crimes against humanity, universal citizenship, human rights, International justice
1. Introdução
A história da humanidade é marcada por terríveis atrocidades. Perante tantas violações à dignidade humana surge um elo entre todas as comunidades mundiais: a busca pela paz. O estudo do Tribunal Penal Internacional está intrinsecamente ligado às graves ofensas aos direitos humanos já que tribunais deste tipo surgiram como resposta à crimes de tal gravidade que constituem uma ameaça ao bem estar mundial.
Durante muito tempo imperou a certeza de impunidade por parte daqueles que praticaram crimes de lesa-humanidade. Figuras com notória influência política se viam protegidos por sua nacionalidade e sentiam-se livres para cometerem atrocidades em outros Estados pois estes, eram seguros de que o direito interno de seus países impediria sua extradição e consequentemente sua condenação.
A impunidade perante a prática de tais crimes gerava um imenso mal-estar social, e passava a imagem que o Direito não alcançava personalidades politicamente influentes. Com a intensificação do debate acerca da universalidade dos direitos inerentes à pessoa humana no período do pós guerra, houve uma maior preocupação em estabelecer um Tribunal de jurisdição internacional e em 1993, o Brasil já havia se posicionado a favor da criação de um tribunal, no contexto da discussão no âmbito do Conselho de Segurança sobre a criação de uma instância ad hoc para a antiga Iugoslávia.
Como resposta aos antigos anseios da sociedade, nasce o Tribunal Penal Internacional que tem sua ação guiada na promoção da paz, da segurança e do bem estar da humanidade, exercendo sua jurisdição sobre os crimes mais lesivos à comunidade internacional, sob a justificativa de que a impunidade dos autores de tais crimes fere a noção de cidadania mundial e o combate a tais condutas ofensivas é de suma importância para a sua prevenção, efetivando, assim, a justiça internacional.
2. Antecedentes Históricos e Definição de Tribunal Penal Internacional
A ideia de criação de um órgão jurisdicional internacional não é recente. Em 1872, o suíço Gustave Moynier, um dos fundadores do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, apresentou proposta para estabelecer uma corte de natureza permanente para lidar com casos que representassem ofensas ao então nascente direito humanitário. Esta corte, seria majoritariamente composta por juízes neutros, e atuaria em casos de guerras entre Estados. Em 1937 a Sociedade das Nações elaborou a convenção sobre Terrorismo onde estava contido o estatuto de um tribunal criminal internacional permanente, mas a única nação a ratificá-lo foi a Índia e esse tribunal nunca saiu do papel. Foi somente no século XX com o advento da 2º Guerra Mundial que a necessidade de julgar as atrocidades cometidas na guerra foi amplamente apoiada.
2.1 A Convenção de Genebra e o Tratado de Versalhes
A Convenção de Genebra de 1864 e seus protocolos são a fonte do Direito Internacional Humanitário, e definiram os direitos e os deveres das pessoas, combatentes ou não, no período de guerra. Entre o rol dos direitos e deveres resguardados por esta convenção, pode-se citar a proibição do uso de armas químicas e o tratamento digno de prisioneiros de guerra. Esta convenção foi a pioneira a introduzir os direitos humanos em âmbito universal.
O Tratado de Versalhes de 1919, que pôs fim a Primeira Guerra Mundial, utilizou a supracitada convenção para justificar a condenação da Alemanha por praticar crimes de guerra e trouxe como inovação o conceito de responsabilização penal individual, no âmbito do direito internacional, além de suscitar a possibilidade de realizar julgamentos por crimes contra a humanidade previstos outrora na Convenção de Genebra.
Estas primeiras tentativas apontaram uma preocupação acerca da necessidade de um organismo de jurisdição penal.
2.2 O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e de Tóquio
Os Tribunais Militares Internacionais de Nuremberg e de Tóquio, criados após a Segunda Guerra Mundial tinham como objetivo julgar as atrocidades cometidas durante a guerra e indiciaram os réus por crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, devendo a responsabilidade dos acusados ser apurada tanto como indivíduos tanto como pertencentes de uma organização. Assim, a posição dos acusados não os isentava de responder por seus delitos e nem funcionaria como atenuante da pena. Esses tribunais compuseram a base de um novo sistema jurídico de direito internacional e criaram um novo paradigma de Justiça Internacional.
Muitas críticas acerca destes tribunais foram levantadas, sobretudo por terem estabelecido uma justiça de ‘vencedores contra vencidos’ e por terem sido tribunais ad hoc, criados posteriormente aos fatos. Muitos autores apontam ainda uma violação ao princípio da legalidade, que preceitua que não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal (nullum crimen nulla poena sine lege), pois não havia definição em lei como crime dos crimes de genocídio e lesa-humanidade, a fonte usada nestes tribunais foi então o costume internacional. Há ainda acusações sobre a seleção dos acusados ter sido meramente política e uma intensa crítica acerca da aplicação de pena capital.
2.3 Os Tribunais Penais ad hoc da Organização das Nações Unidas
O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPIY) e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) foram criados pelo Conselho de Segurança da ONU com vistas a dar resposta às atrocidades cometidas durante o conflito na antiga Iugoslávia e aos assassinatos em massa em Ruanda.
Ambos os Estatutos dos Tribunais ad hoc em comento, contêm princípios baseados no Direito Humanitário para a aplicação de suas sentenças, quais sejam, a exclusão da pena de morte, de penas corporais e trabalhos forçados. O desenvolvimento desses mecanismos jurídicos foi de extrema relevância para a manutenção da justiça internacional pois romperam com a ideia de que os tribunais internacionais só forneciam a justiça dos vencedores contra os vencidos.
2.4 A criação de um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente
Os julgados de crime lesa-humanidade até então feitos tinham todos caráter excepcional e um fim objetivo. A criação de um Tribunal Penal Internacional que atuaria de forma permanente foi cogitada pela primeira vez na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, que pediu à Corte Internacional de Justiça que avaliasse a possibilidade de criação de um tribunal para julgar casos semelhantes aos julgados nos tribunais de Nuremberg e Tóquio.
De 1951 a 1953 foram expostos projetos de estatuto para o futuro tribunal através de dois comitês constituídos pela Assembleia Geral da ONU, mas por decorrência da Guerra Fria, a elaboração do mesmo foi suspensa e, somente em 1989, a Comissão de Direito Internacional voltou a tratar do assunto.
Entre 1995 e 1998 a Assembleia Geral da ONU volta a convocar um comitê para a elaboração de um texto consolidado do Projeto de Estatuto para a criação de um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente. A partir de uma Conferência de Plenipotenciários (1998), houve o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, que aprovou o Estatuto de Roma por 120 votos a favor, 7 contrários (Estados Unidos, Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia), além de 21 abstenções. O referido estatuto é o instrumento legal que rege a competência e o funcionamento do Tribunal Penal Internacional (Artigo 1) e versa sobre os crimes que constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade.
3. O Tribunal Penal Internacional e os sujeitos de direito internacional
Uma grande questão acerca da responsabilidade Penal Internacional sempre foi determinar se a pessoa humana é sujeito do Direito Internacional ou objeto deste. Os Estados, durante maior parte de sua existência, foram considerados pelo Direito Internacional como sujeitos de Direito. Dessa forma, passou-se a confundir a responsabilidade das nações com a de seus governantes e as pessoas a seu serviço, gerando assim uma lacuna de impunidade.
O Estatuto de Roma pressupõe a instituição de um regime de autêntica cidadania mundial, em que todas as pessoas, naturais ou jurídicas, de qualquer nacionalidade, tenham direitos e deveres em relação à humanidade como um todo, e não apenas umas em relação às outras pela intermediação dos respectivos Estados.
Nesse sentido, a definição de um ato criminoso, bem como o julgamento e punição do agente responsável, não constituem mais matérias restritas à soberania nacional de cada Estado, mas sim são relevantes a nível supranacional, garantindo a manutenção da justiça e a prevenção de novos atos criminosos.
4. Princípios do Tribunal Penal Internacional
Antes de adentrar nos princípios informadores do Tribunal Penal Internacional, é conveniente delimitar o que se entende por princípios. Princípios são preceitos, leis ou pressupostos considerados universais, com abrangência superior as normas, que devem ser observados tanto pelo legislador, quanto pelo operador do direito. O artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, preceitua: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
A atuação do Tribuna Penal Internacional é regida por alguns princípios basilares. Aqui trataremos dos princípios da complementaridade, da universalidade, da responsabilidade penal individual, do juiz natural, da legalidade e da imprescritibilidade.
4.1 Princípio da Complementaridade
O princípio da complementaridade preceitua que o Tribunal Penal Internacional não terá primazia na competência de julgamento daqueles que cometerem os crimes previstos em seus Estatutos, mas sim atuará subsidiariamente ao Estado daquele que praticou o ato ilícito. Este princípio está expresso no art. 1 do Estatuto de Roma que diz que o referido tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre aqueles que cometerem crimes de maior gravidade e abrangência internacional (fixados nos termos do Estatuto) e agirá de forma complementar às jurisdições penais nacionais, bem como no §10 do Preâmbulo do mesmo.
O caso, ou situação, será admissível pelo Tribunal Penal Internacional se observadas as seguintes hipóteses:
i) O processo ter sido instaurado, estar pendente ou a decisão proferida no Estado ter sido feita com vistas a eximir a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal;
ii) Haver uma morosidade excessiva no processamento do caso;
iii) O processo não estar sendo conduzido de maneira independente e imparcial, o que se contrapõe com a intenção de levar a pessoa em causa para responder perante a justiça;
Assim, reconhece-se que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional não se sobrepõe a dos Estados, mas age de forma a impedir que as condutas descritas no art. 5º do Estatuto de Roma permaneçam injustificadamente impunes.
4.2 Princípio da Universalidade
O princípio da universalidade determina que os Estados-membro se submetam a jurisdição da Corte Penal Internacional, não podendo se eximir de sua apreciação em determinados casos ou situações. Assim, o Estado signatário deve aceitar integralmente o que dispor o Estatuto de Roma, comprometendo-se integralmente com seu texto, pois este não admite reservas. Caso fossem admitidas reservas ao Estatuto, os Estados-membro poderiam eximir-se de certos mandamentos do mesmo, o que poderia gerar instabilidade e abrir brechas para a impunidade.
4.3 Princípio da Responsabilidade Penal Individual
Tal princípio preconiza que a responsabilização penal dos crimes sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional repousa sobre o indivíduo, sem prejuízo da responsabilidade do Estado perante a ordem internacional (Art. 25 §4, ETPI).
O art. 25, § 3º do Estatuto expõe que será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem:
a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável;
b) Ordenar, solicitar ou instigar à prática desse crime, sob forma consumada ou sob a forma de tentativa;
c) Com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática;
d) Contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum.
A ideia da responsabilização dos indivíduos perante a corte internacional remonta às lacunas deixadas pelas Convenções de Genebra de 1949, que sempre foram criticadas pelo fato de terem dado pouca ou quase nenhuma importância às regras materiais e processuais da ciência jurídica criminal.
4.4 Princípio do Juiz Natural
Para que a imparcialidade e a justiça seja garantida se faz necessária a vedação a tribunais de exceção. Os tribunais de exceção são aqueles criados para julgar um caso concreto com fim específico, tendo caráter excepcional e temporário.
O princípio do juiz natural se contrapõe inteiramente aos tais tribunais pois defende que o juiz deve ser pré-constituído pela lei e não constituído post factum, e defende ainda a impossibilidade de alteração discricionária das competências judiciais, assegurando a unidade de jurisdição.
4.5 Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade ou da reserva legal é um dos princípios mais importantes do Direito, podendo ser encontrado em todos os sistemas jurídicos do mundo. Ele está presente no art. 5o, XXXIX, da CF/1988, bem como no art. 1o, do Código Penal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Tal princípio impede o uso dos costumes e analogia para criar tipos penais incriminadores ou agravar as infrações existentes e é fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito pois impede normas retroativas, além de vedar a decretação de proscrição.
É possível notar no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em seus art. 22, 23 e 24, a presença deste princípio quando dispõe em seu capítulo III os princípios gerais do Direito Penal: nullun crimen sine lege, nulla poena sine lege e irretroatividade ratione personae.
Nullun crimen sine lege, não há crime sem lei, disposto também na Declaração Universal dos Direitos Humanos no art. 11, II: “Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso”.
Nulla poena sine lege, não há pena sem lei, nos termos do Estatuto, art. 23: “Qualquer pessoa condenada pelo Tribunal só poderá ser punida em conformidade com as disposições do presente Estatuto”.
A não retroatividade ratione personae, assegurada pelo Estatuto de Roma em seu art. 24, estabelece que nenhum indivíduo será incriminado por conduta anterior à vigência do mesmo e admite a retroatividade da Novatio legis in mellius antes de proferida sentença definitiva.
4.6 Princípio da Imprescritibilidade
No direito romano-germânico, a prescrição é um instituto que visa regular a perda do direito de punir do Estado, devido ao decurso de determinado período de tempo. Tal não ocorre nos crimes de competência do Tribunal Penal Internacional face sua peculiar gravidade. O Estatuto de Roma em seu art. 29 determina: “Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem”, e essa imprescritibilidade está atrelada a manutenção da ordem jurídica internacional, perante a instabilidade jurídica gerada com o cometimento de tais crimes.
5. Crimes de Competência do Tribunal Penal Internacional
O termo competência deriva do latim competentia,ae e de competĕre, significando 'proporção, simetria’ ou, 'competir, concorrer’. A competência é o limite da jurisdição, pois delimita as hipóteses em que o órgão jurisdicional pode julgar a lide. Os critérios de atribuição de competência do Tribunal Penal Internacional são:
i) Ratione materiae - crimes dispostos no artigo 5o. do Estatuto (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão);
ii) Ratione temporis - artigo 11 - ilícitos cometidos após a entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional e após a acessão do Estado-parte;
iii) Ratione loci - artigo 12 §2 a) - crime praticado no território dos Estados-Membro ou a bordo de um navio, ou aeronave, cuja matrícula seja daquele Estado);
iv) Ratione personae - artigo 12 §2 b), nacionalidade da pessoa a quem é imputado o crime.
Nos termos do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional terá competência para julgar, de forma complementar às jurisdições penais nacionais, os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.
Por crime de genocídio, segundo o Estatuto de Roma, se entende qualquer um dos atos enumerados em seu art. 6º, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Os crimes contra humanidade são aqueles dispostos no art. 7º do referido Estatuto tais como: crime de homicídio, tortura, apartheid, extermínio, entre outros, quando cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil com vistas a ferir de forma grave a integridade da pessoa humana e serão reconhecidos tanto em situações de conflito armado internacional ou não internacional, como em tempos de paz.
Constituem crimes de guerra aqueles praticados em estado de exceção que violam as leis e costumes aplicáveis em conflitos armados no âmbito do direito internacional, bem como as violações às Convenções de Genebra de 1949, cometidos contra as pessoas que participavam ativamente ou não das hostilidades. Crimes estes que ofendem a dignidade da pessoa por meio de tratamentos cruéis e degradantes, utilização de tóxicos contra a população civil em geral ou privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, entre outros enumerados no art. 8º do Estatuto de Roma. A posição do Brasil em relação aos crimes de guerra segundo Elio Cardoso (2012, p.50):
Foi favorável a que fossem contemplados crimes perpetrados em conflitos armados tanto internacionais como internos, somando-se à corrente majoritária que advogou pela importância de o Estatuto de Roma refletir as mudanças que houve nos aspectos principais dos conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial, sobretudo em função do número crescente e significativo de conflitos ocorridos dentro das fronteiras nacionais.
Embora sua previsão no Estatuto de Roma tenha sido amplamente apoiada, o crime de agressão, foi alvo de grandes controvérsias devido a divergência acerca de sua definição, o desacordo entre a responsabilidade penal individual e a responsabilização do Estado (guerra de agressão) além da previsão da agressão no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas como competência do Conselho de Segurança. Entretanto, segundo Cardoso (2012, p.50) “para muitos países, a simples exclusão do crime de agressão, cinco décadas após ter figurado na Carta de Nuremberg sob a rubrica de ‘crimes contra a paz’, representaria retrocesso inadmissível” e por esta razão, o supracitado Estatuto em vistas a solucionar o impasse, incluiu o crime de agressão em seu artigo 5º com a salvaguarda de que seja aprovado um dispositivo com a definição do crime, bem como, as condições para que o Tribunal exerça jurisdição sobre o mesmo.
Com a resolução RC/6 Aprovada por consenso na 13ª seção plenária em 11 de junho de 2010 , definiu-se que comete crime de agressão aquele que em posição de controlar ou dirigir efetivamente uma ação política ou militar, planeja, prepara, inicia o realiza um ato de agressão que por suas características, gravidade e escala constitua uma violação manifesta a Carta das Nações Unidas, bem como o uso da força armada de um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado.
6. A Recepção do Estatuto de Roma pelo Brasil e a Tradição Brasileira de Comprometimento com os Direitos Humanos
No Brasil a assinatura do tratado internacional referente ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, deu-se em 7 de fevereiro de 2000, tendo sido ratificado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 112, em 06 de junho de 2002, que foi promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. O Brasil participou do processo negociador, mesmo que não de forma protagônica e, a princípio mostrava preocupação acerca das vantagens da iniciativa, assumindo uma postura nem absolutamente contra, nem totalmente a favor do Estatuto.
A partir da avaliação das salvaguardas contidas no Estatuto, tais como a excepcionalidade e a complementariedade da jurisdição do órgão, o Brasil pode adotar uma postura mais favorável à criação do Tribunal Penal Internacional e então, na conferência das Nações Unidas em Roma, “o país passa a atuar de forma a contribuir para o seu êxito e se soma à corrente majoritária favorável à criação de um órgão penal internacional permanente, independente e de vocação universal” (CARDOSO, 2012, p.125). Muitos países interessados em ratificar o Estatuto realizaram uma avaliação semelhante dos riscos envolvidos, pois uma vez se tornado Estado-membro, estes deverão consentir com a entrega de seus nacionais à jurisdição internacional.
No Brasil, embora não se descartasse qualquer cenário, seria pouco provável o cometimento dos crimes que estão sob a jurisdição do Tribunal, haja visto que ostenta uma postura pacífica desde 1870 vivendo “uma era de paz ininterrupta com seus dez vizinhos – um dos elementos mais importantes que compõe o patrimônio diplomático do país” (CARDOSO, 2012, p.127), e ainda, o caráter complementar do órgão garante a primazia brasileira para processar e julgar, desde que capacitado para o fazer, os crimes elencados no Estatuto de Roma.
Nos anos de 1960/1970 o Brasil atravessou um período de graves perseguições políticas e violações aos direitos humanos que perdurou até 1985. Com a redemocratização o país que antes mantinha uma postura autoritária e ‘soberanista’ passou a promover a proteção dos direitos humanos aderindo aos principais instrumentos internacionais acerca desta temática. O abismamento da população mundial perante as tragédias que culminaram a criação de tribunais ad hoc (antiga Iugoslávia e Ruanda) constituíram um “movimento de direitos humanos” e impulsionaram a criação do Tribunal Penal Internacional. A força motriz por detrás da decisão brasileira de ratificar o Estatuto de Roma, então, estaria relacionada com os compromissos assumidos pelo país em matéria de direitos humanos.
7. A Reafirmação dos Direitos Humanos Através da Justiça Penal Internacional
Os Direitos Humanos de primeira geração resultam, principalmente, da Declaração Francesa dos direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração de direitos de Virgínia nos EUA, que surgiram a partir da insatisfação daqueles com a realidade política, econômica e social de sua época. Os de segunda geração, por sua vez, reclamavam direitos políticos e sociais e exigiam uma intervenção direta do Estado. Na terceira geração dos Direitos Humanos consagrou-se os direitos da solidariedade ou fraternidade, caracterizados por sua titularidade coletiva ou difusa, tendo coincidido o período de seu reconhecimento ou positivação com o processo de internacionalização dos direitos humanos.
O atual mundo globalizado trouxe consigo novas modalidades de violações aos direitos humanos, tais como: tráfico internacional de pessoas, tráfico de órgãos e novas formas de escravidão. O mercado no mundo globalizado age como regulador da vida social, e tem como fim último o aumento da produtividade e da eficiência, mesmo através da violação da dignidade humana. Para a proteção dos direitos humanos a comunidade internacional deve mobilizar-se para promover um desenvolvimento global, que garanta que as mazelas vividas por milhares de pessoas em países subdesenvolvidos e emergentes seja extinta.
O Tribunal Penal Internacional per si não resolve o problema da violação dos Direitos Humanos porém promove a justiça internacional através da fixação de regras em escala planetária para sancionar as práticas de atos que lesam a dignidade humana. Além disso, pretende acabar com a impunidade em termos repressivos (condenando os culpados) e em termos preventivos (inibindo o cometimento de novos atos criminosos). O TPI visa sanar as lacunas de outros tribunais já criados através da promoção da reconciliação nacional e internacional, do reestabelecimento da ordem jurídica internacional, da inibição de tribunais de exceção e cria instrumentos jurídico-processuais capazes de responsabilizar individualmente as pessoas que cometam crimes de maior ofensa a humanidade.
8. Conclusão
Nos anos 90 foi possível a materialização de um antigo anseio da sociedade internacional por meio da criação de um órgão de jurisdição internacional que oferece resposta aos crimes de transcendência internacional: os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.
O caráter permanente do Tribunal Penal Internacional contrasta com os tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança da ONU. A permanência do Tribunal garante a segurança internacional frente aos eventuais conflitos que possam ocorrer e é uma característica que solucionou o problema de se constituir uma instância judicial post factum. Os crimes de competência do Tribunal face a sua peculiar gravidade, não prescrevem, e a independência do órgão atua na manutenção do sistema como um todo.
Em defesa à soberania dos Estados-membros, a complementariedade é outra característica essencial do Tribunal Penal Internacional. Só com esta salvaguarda é que a ratificação ao Estatuto de Roma foi realizada por tantos países. A criação da Corte Penal Internacional surgiu com uma aspiração universal e mesmo que os caminhos para a integração total ao Estatuto ainda não tenham sido descobertos, este princípio garante a integração de boa parte da comunidade internacional.
A cooperação internacional é o que efetiva a atuação do Tribunal Penal Internacional. O temor a perda de soberania não se justifica perante a proteção dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, conquistados a duras penas após tristes episódios de violência. O Brasil, mantendo sua postura em favor a proteção desses direitos, não somente se comprometeu a cooperar inteiramente com a instituição, como também se submeteu inteiramente à jurisdição do TPI.
O Tribunal Penal Internacional então pode ser entendido como um instrumento de suma importância para a efetivação dos Direitos Humanos, pois sua jurisdição sobre os crimes mais graves que assolam a comunidade internacional reforça a centralidade do indivíduo (não importando sua nacionalidade, etnia, crença ou classe social) no bojo dos interesses coletivos universais.
Destarte, o Tribunal Penal Internacional se concebe como um instituto internacional que tutela os mais altos ideais humanos e é de suma importância para a inibição do cometimento dos crimes que ferem à dignidade da pessoa humana, se dedicando a erradicar a impunidade dos autores de tais crimes para que se resguarde os interesses das gerações presentes e vindouras. Nas palavras de Enrique Ricardo Lewandowski: “a maior contribuição que a nova Corte poderá dar para consolidar a paz, a segurança e o respeito aos direitos humanos no mundo será fazer com que ele transite de uma cultura de impunidade para uma cultura de responsabilidade”.