RESUMO
O objetivo do presente estudo é analisar o instituto da recuperação judicial, especificamente a problemática da trava bancária, sob à ótica dos princípios da isonomia e da preservação da empresa. Na pesquisa serão analisadas doutrinas, jurisprudências, teses e artigos, buscando as origens da Lei nº 11.101/2005, passando pelos principais institutos da recuperação judicial e debatendo os efeitos das travas bancárias no caso concreto, bem como os argumentos que a ensejam. As principais conclusões desta pesquisa se referem à inviabilização do processo recuperacional pelas blindagens patrimoniais realizadas pelas instituições financeiras, a afronta ao princípio da isonomia quando verificada a tamanha distinção de tratamento entre os credores, bem como a alteração legislativa tendente à criação de uma classe de credores fiduciários aparentar ser uma das soluções adequadas à questão e que a interpretação conforme a Constituição Federal deve ser realizada pelo magistrado no caso concreto, no sentido de levantar a trava bancária quando esta puder, fatalmente, comprometer a recuperação judicial.
Palavras-chave: recuperação judicial, proprietário fiduciário, trava bancária, preservação da empresa, princípios.
ABSTRACT
This study aims to analyze the judicial reorganization's institute, specifically the bank's padlock, seeing it in the isonomy and company's preservation principles' point of view. The research will span doctrine, jurisprudence, thesis and articles, turning to it's original Law 7.661/1945, going through the reorganizational plan and debating the bank's padlock's effects in case law, as well as the arguments that support it. The main conclusions in this study refer to how the patrimonial locks makes the reorganizational process impossible, and goes against isonomy's principle when verified how distinct the treatment is among the creditors, as well as the law alterations that tends to create a new trustee's class, as the most likely solution to succeed. Also, the Constitution must be realized by the judge in every case law, lifting the bank's padlock when it jeopardizes the entire judicial reorganization
Keywords: judicial reorganization, trustees, bank's padlock, company's preservation principles.
1 INTRODUÇÃO
O instituto da recuperação judicial foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 11.101/2005, revogando o antigo Decreto-Lei nº 7.661 de 21 de junho de 1945 (Lei das Concordatas), a qual visava possibilitar a regularização da situação econômica do devedor, evitando, por meio da concordata preventiva ou suspendendo, por meio da concordata suspensiva, a falência.
Diante dessa perspectiva, o presente artigo foi desenvolvido com o intuito de verificar os efeitos da exceção disposta no § 3º, do art. 49, da Lei nº 11.101/2005, especificamente no que concerne ao proprietário fiduciário, bem como seus desdobramentos no caso concreto, os quais podem comprometer todo o processo recuperacional.
Para tanto, em um primeiro momento, é necessário entender o conceito de recuperação judicial, bem como os princípios e objetivos que a ensejam e que se encontram positivados no art. 47 da Lei nº 11.101/2005.
Superada a colocação inicial, a presente pesquisa buscará, então, avaliar os motivos e necessidades que levaram à superação da Lei das Concordatas pela Lei de Falências e Recuperação Judicial, ressaltando a evolução do direito empresarial, especialmente no que diz respeito à função social da empresa.
Após, buscar-se-á compreender os elementos basilares da recuperação judicial, partindo-se dos requisitos para sua concessão e seguindo para o plano de recuperação judicial, a lista de credores e, por fim, para as exceções trazidas pelo art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, mais especificamente no que concerne ao proprietário fiduciário.
O estudo partirá, depois da exposição de conceitos básicos da recuperação judicial, à análise crítica da não sujeição dos contratos com garantia fiduciária ao processo recuperacional, com ênfase na questão isonômica em relação aos demais credores e sua função condutora à satisfação dos mesmos.
Tecidas as críticas e visualizadas as problemáticas incitadas, o estudo passará a identificar na doutrina recente e na jurisprudência, indícios da viabilidade da criação de uma classe de credores fiduciários que se sujeitariam aos efeitos da recuperação judicial, bem como as vantagens dessa medida que, a longo prazo, influenciaria no equilíbrio social e econômico (âmbito externo), assim como à saúde da recuperação judicial (âmbito interno).
Posteriormente, a pesquisa voltar-se-á ao princípio condutor e fomentador de toda a Lei nº 11.101/2005: o princípio da preservação da empresa. Será questionada a atuação do judiciário, que, ao aplicar a literalidade da lei, acaba, muitas vezes, ignorando princípios constitucionais que deveriam ser observados no caso concreto.
Tal é a relevância do princípio da preservação da empresa, que o mesmo se encontra positivado no art. 47, da Lei nº 11.101/2005 .
Por fim, abordar-se-á os obstáculos a serem superados para que a Lei nº 11.101/2005 atenda de maneira positiva todos os envolvidos e que atinja, afinal, o objetivo para o qual foi criada, qual seja, o soerguimento da empresa em dificuldade, para que esta cumpra sua função social e atue como ente indispensável à manutenção econômica do país.
2 RECUPERAÇÃO JUDICIAL: PANORAMA GERAL
A Recuperação Judicial entrou em vigor no sistema jurídico brasileiro com a Lei nº 11.101/2005[1] e tem como finalidade, de acordo com o art. 47, auxiliar a empresa em dificuldade a se reerguer, de forma a evitar sua convolação em falência, e, consequentemente, manter a fonte produtora, preservar os empregos dos trabalhadores e os interesses dos credores, protegendo e motivando os princípios da preservação da empresa, da função social e do estímulo à atividade econômica.
Neste sentido, ensina Manoel Justino Bezerra Filho, que a tentativa de recuperação se prende ao valor social da empresa em funcionamento, que deve ser preservado não só pelo incremento na produção, como principalmente, pela manutenção do emprego, elemento de paz social (BEZERRA FILHO, 2013, p. 140).
Assim, ao tentar conceituar a recuperação judicial, é impossível desvinculá-la de suas características mais acentuadas que são, ao mesmo tempo, seus objetivos e concluir que se trata de um instituto de convergência de interesses advindos de diversas fontes e que buscam, através da recuperação da empresa em crise, a sua satisfação[2].
Ainda, explica Fran Martins que o processo recuperacional tanto judicial como extrajudicial — e seu procedimento —, têm como objetivo o exaurimento dos meios instrumentais para que seja evitada a falência da empresa em crise, de forma a manter os empregos, a arrecadação ao Estado e, adiciona em relação à lição de Almeida, seu conceito perante o mercado (MARTINS, 2016, p. 387).
A Lei nº 11.101/2005 trouxe avanços significativos, principalmente, no que diz respeito às formas de recuperação judicial e extrajudicial de empresas, bem como aprimorou as determinações que regem o processo de falência e exclui o instituto das concordatas.[3]
Ocorre, todavia, que a Lei aqui pautada, apesar de configurar-se como profundamente inovadora na legislação pátria e abranger inúmeras qualidades, também traz consigo problemáticas que não podem mais ser ignoradas.
Uma delas, a qual será questionada e analisada ao longo do presente estudo, se encontra no art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, onde se encontra o credor fiduciário. Nos contratos com garantia fiduciária é transmitida a propriedade de um bem ao credor, como garantia de adimplemento à obrigação por parte do devedor, que fica como fiel depositário, até o efetivo cumprimento da referida obrigação[4].
Cumpre-se informar que este modo de realizar negócios jurídicos é utilizado em enorme escala pelas instituições financeiras e pode, fatalmente, comprometer o sucesso de uma recuperação judicial.
Da decisão recentemente proferida pelo Magistrado José Henrique Neiva de Carvalho e Silva, da Vara de Falências, Recuperações, Insolvências e Cartas Precatórias do Município de Campo Grande, Estado do Mato Grosso do Sul, é possível extrair a transcrição a seguir, que expõe o momento de reflexão atual:
No entanto, a Lei n.º 11.101 de 2005, lei de Falências e Recuperação de Empresas, agride, viola, descumpre de forma clara, cristalina, várias normas e princípios constitucionais, privilegiando o interesse de uma minoria, instituições financeiras, em detrimento da população em geral, ou seja, desrespeitando o interesse público. A lei de falências e recuperações de empresas diz o seguinte: todos os credores, como por exemplo, empregados, fornecedores, prestadores de serviços, etc., se submetem à recuperação judicial (semelhante a antiga concordata), mas as instituições financeiras não. É uma notória aberração. Um erro claro.[5]
O processo de recuperação judicial se inicia pela iniciativa do próprio empresário que, ao verificar a crise de sua empresa, pleiteia em juízo seu deferimento e processamento (PACHECO, 2013, p. 12). Para que haja a concessão, é necessário, primeiramente, verificar a viabilidade de real soerguimento da empresa, cumulada com o atendimento aos requisitos expostos no art. 48, da Lei nº 11.101/2005. Ainda, faz-se necessário que a exordial seja acompanhada de todos os documentos dispostos no art. 51.
Se atendidos os requisitos legais o Magistrado, então, irá deferir o processamento da recuperação judicial nos termos do art. 52 da Lei 11.101/2005. Ao comentar a Lei de Falências e Recuperação Judicial, Fábio Ulhoa Coelho pontifica a existência de três fases distintas do processo, sendo a primeira postulatória, na qual o empresário individual ou a sociedade empresária em crise apresenta em juízo o pleito do benefício. Ela se inicia com a petição inicial de recuperação judicial e se encerra com o despacho judicial mandando processar o pedido (art. 52) (COELHO, 2010, p. 382); em seguida a deliberativa e, por fim, a executiva.
Dado o deferimento do processamento da recuperação judicial, tem início, no dia subsequente, o prazo improrrogável de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial, conforme a disposição do art. 53. O plano constitui peça fundamental no trâmite e na organização do processo, servindo de instrumento orientador e disciplinador dos interesses da empresa Recuperanda, bem como dos credores (TOMAZETTE, 2016, p. 190).
Segundo Scilio Faver, o plano de recuperação judicial (PRJ), poderá levantar várias alternativas com o fim de convencer legitimamente os credores das chances concretas de recuperação da empresa, superando o estado de abalo econômico em que se encontra (FAVER, 2014, p. 147).
Nas palavras de José Francelino de Araújo, extrai-se:
O plano de recuperação judicial é a peça transcendental do pedido. É nele que o devedor pleiteante deve apresentar e provar contabilmente que a empresa preenche as condições para receber o favor legal. Se o plano de recuperação apresentado não atender as exigências dos arts. 50 (meios de recuperação) e 51 (petição inicial instruída com todos os documentos exigidos nos itens I a IX do art. 51), o pedido será transformado em falência, jogando por terra todo o trabalho do devedor, seus objetivos e despesas para elaboração do plano, tudo na forma do § 4o do art. 56. (ARAÚJO, 2009, p. 132).
Havendo, discordâncias em relação ao plano de recuperação judicial ora apresentado pela empresa peticionária, as quais são materializadas nas objeções, é necessário que o Juiz realize a convocação da Assembleia Geral de Credores, conforme dispõe o art. 56, onde os próprios avaliam e votam pela consolidação do plano.
Caso ocorra a aprovação do plano de recuperação judicial na votação ocorrida em sede de Assembleia Geral de Credores é então concedido o deferimento da recuperação judicial da empresa. Se rejeitado o plano, a empresa sofrerá a convolação em falência (ARAÚJO, 2009, p. 132).
Ademais, cumpre-se fazer algumas considerações acerca da classificação dos credores no processo recuperacional. Conforme disposição do art. 41 da Lei de Falências e Recuperação Judicial em: i) titulares de créditos advindos da legislação trabalhista ou de acidentes de trabalho, ii) titulares de créditos com garantia real, iii) titulares de créditos quirografários e iv) titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte.
Em relação aos credores trabalhistas, por exemplo, se verifica a tentativa de fornecer um tratamento diferenciado pela Lei, vez que se trata de verba com natureza alimentar e que afeta diretamente a esfera da dignidade humana. Assim, o autor Daniel Meirelles Ferreira ensina sobre o assunto:
Relativamente aos credores trabalhistas, o plano não poderá prever prazo superior a um ano e, tratando-se de verba estritamente salarial vencida nos últimos três meses ao pedido de recuperação, deverá ser adimplida no prazo máximo de 30 dias. Logo, o devedor possui algumas limitações impostas pela lei quanto ao prazo e forma de pagamento de alguns credores mais sensíveis. (FERREIRA, 2013, p. 80).
Direcionando o presente estudo, então, a sua real problemática, se faz necessário adentrar em um ponto polêmico e controverso, qual seja, os créditos que não se sujeitam à recuperação judicial dispostos no art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, mais especificamente no que concerne à garantia fiduciária.
O art. 49 da Lei nº 11.101/2005 dispõe, em seu caput, que são sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação ainda que não vencidos. Do parágrafo 3º deste artigo também é possível extrair os créditos que não se submetem ao processo de recuperação judicial, constando nesta exclusão o proprietário fiduciário.
As exceções trazidas pelo § 3º causam controvérsias quanto ao real motivo de habitarem este campo de exclusão da sujeição aos efeitos da recuperação, principalmente pela grande concentração de poder arbitrário nas mãos dos credores que não se submetem a ela, o qual pode ser maior, até mesmo, do que aquele atribuído aos credores que efetivamente se sujeitam à recuperação judicial.[6]
Exposto o panorama geral da recuperação judicial e de seu processo, este artigo aprofundará nos capítulos seguintes as problemáticas pertinentes à exclusão do proprietário fiduciário dos efeitos da recuperação judicial.
3. O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E OS CREDORES FIDUCIÁRIOS
Antes de adentrar no âmbito ainda inovador e discutível da isonomia entre credores na esfera concursal da recuperação judicial, é necessário esclarecer alguns pontos concernentes ao proprietário fiduciário citado no § 3º, do art. 49, da Lei nº 11.101/2005. Em princípio, é importante apontar que o negócio jurídico fiduciário é formado pelo fiduciante (devedor) e pelo fiduciário (credor), sendo o primeiro é obrigado a realizar a transmissão da propriedade de determinada coisa ou de determinado direito ao fiduciário. Destarte, cabe ao fiduciário indicar uma destinação a este bem ou direito recebido e, ao final, com o adimplemento do contrato, restituí-lo ao fiduciante ou, em caso de não adimplemento, resguardá-lo para si[7].
Em debates primários acerca da Lei 11.101/2005, questionou-se sobre o alcance do termo proprietário fiduciário: seriam eles somente aqueles que alienarem bens móveis e imóveis (como se refere o texto da Lei), ou também aqueles que cedem créditos com esta mesma forma de garantia? Neste sentido, escreveu Jean Carlos Fernandes:
É de se observar que o Código Civil se refere às espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária, que compõem, por sua vez, a propriedade fiduciária em sentido lato. A primeira – propriedade fiduciária em sentido estrito – incidente sobre coisa (bem móvel ou imóvel); e a segunda – titularidade fiduciária – incidente sobre direitos/créditos. Não resta dúvida, portanto, de que alienação fiduciária e cessão fiduciária mesmo sendo institutos distintos, em ambas as modalidades o credor passa à condição de proprietário fiduciário, pois a transmissão fiduciária importa a transferência do domínio ou da titularidade sobre uma ou mais coisas e/ou direitos.[8]
O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, procurou explicitar o entendimento da egrégia Corte Superior:
Em 2013, ambas as Turmas da Segunda Seção do STJ convergiram seus entendimentos e assentaram que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, razão pela qual não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial.[9]
Assim, pode-se afirmar que a diferenciação entre a cessão fiduciária e a alienação fiduciária reside no objeto do contrato firmado entre as partes. Caso este objeto consista em bem móvel ou imóvel o termo correto é alienação, caso o objeto se consubstancie em título de crédito, a nomenclatura correta é cessão. Do ponto de vista conceitual, pode-se afirmar que restam esclarecidas as controvérsias trazidas em relação à abrangência da propriedade fiduciária na recuperação judicial, sendo muito mais relevante seu questionamento material.
Quando o empresário percebe os sintomas da crise dentro da empresa, a qual pode ser ocasionada por diversos motivos, busca, muito comumente, instituições financeiras com intuito de angariar empréstimos[10]. Por sua vez, os bancos cedem o valor, o direito de crédito, ora requerido pelo empresário com uma cláusula de garantia fiduciária sobre ele, a qual é conceituada por Fábio Ulhoa Coelho como um negócio jurídico, no qual uma das partes, chamada de cedente fiduciante, cede à outra parte, chamada de cessionária fiduciária, seus direitos de receber créditos perante terceiros, os quais chamados de recebíveis, em garantia ao cumprimento de obrigações pactuadas (COELHO, 2012, p. 14).
De forma mais pragmática, este tipo de contrato de empréstimo é caracterizado pela concessão de uma garantia por parte da empresa à instituição financeira, sendo esta garantia correspondente ao faturamento que a empresa vier a obter, podendo a referida instituição financeira retê-lo diretamente como forma de adimplemento do contrato ora firmado (TOMAZETTE, 2016, p. 72).
O autor André Luiz Santa Cruz Ramos ensina que:
Como dito, os credores titulares da posição de proprietários fiduciários de bens móveis ou imóveis não se sujeitam à recuperação judicial. Muitas vezes, é um banco que ocupa essa posição, e geralmente os bens dados em garantia fiduciária são recebíveis da empresa devedora. Funciona assim: essa empresa faz um financiamento bancário e, para garantir esse financiamento, entrega ao banco, em garantia fiduciária, créditos que ela tem para receber no futuro (recebíveis). Como esses créditos são considerados, para os efeitos legais, bens móveis, o banco se torna um credor titular da posição de proprietário fiduciário, não ficando sujeito ao plano de recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 4.º, da Lei n.º 11.101/2005.Na prática, isso significa que essa empresa não vai receber diretamente esses créditos futuros, os quais serão pagos ao banco e ficarão numa conta específica, como garantia, para eventual satisfação do financiamento da empresa devedora, caso ela não honre sua obrigação nos termos pactuados. (RAMOS, 2016, p. 318).
Importante explanar sobre o fundamento que enseja a realização destes contratos invasivos ao patrimônio da empresa: basicamente, quando o banco realiza o empréstimo, tem-se, na devolução deste, a incidência de juros. Assim, com a modalidade de garantia fiduciária sobre o título de crédito ora fornecido, há, teoricamente, por parte do banco, uma diminuição no valor de juros que favoreceriam o empresário na constituição de seu patrimônio.[11] Em outras palavras, deveria haver uma redução no chamado spread bancário, o qual consiste na diferença entre os juros que a instituição financeira paga ao captar recursos e os juros que ela cobra ao emprestar.[12]
A jurisprudência pátria majoritária, desde a implementação da Lei nº 11.101/2005, tem entendido como plenamente legítima tal prática, tendo em vista a disposição legal. O Tribunal de Justiça de São Paulo e do Paraná, por exemplo, tem entendimentos semelhantes:
EMENTA: Agravo de instrumento. Não sujeição do crédito com garantia fiduciária e do arrendamento mercantil aos efeitos da recuperação judicial. Artigo 49, §3º da Lei n. 11.101/05. Decisão recorrida que reconheceu inexistir registro do contrato com garantia fiduciária. Equivoco evidenciado. Aditivo contratual que prevê as garantias foi devidamente registrado antes do pedido de recuperação judicial. Arrendamento mercantil que não exige registro prévio. Inteligência da súmula 60 do TJSP. Precedentes. Decisão Reformada. Recurso provido. Acontece, entretanto, que os aditamentos 2º e 3º (fs. 148/157), relativo ao instrumento de cessão fiduciária n. 1999150100007100, dão conta que as cédulas de crédito bancário tiveram a garantia de cessão fiduciária de títulos e direitos creditórios registradas em 8 de setembro de 2015 (fs. 154), data anterior ao pedido de recuperação judicial, qual seja 26 de janeiro de 2016. A garantia fiduciária relativa à cédula de n. 199915030006800 foi registrada em agosto do mesmo ano (fs. 158/162), também em data anterior ao pleito recuperacional. Assim, obedecido o requisito legal, inviável a sujeição dos créditos aos efeitos da recuperação e, por consequência, a liberação das travas bancárias, que devem ser mantidas nos termos ajustados.[13] (grifo nosso)
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO.RECUPERAÇÃO JUDICIAL.HOMOLOGAÇÃO. DÍVIDAS COMPREENDIDAS NO PLANO. NOVAÇÃO. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. PROTESTOS. BAIXA SOB CONDIÇÃO RESOLUTIVA. POSSIBILIDADE. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DERECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA". CRÉDITOS RECEBÍVEIS.VEDAÇÃO DE RETENÇÃO PELO CREDOR. VIOLAÇÃO FRONTAL À NORMA JURÍDICA (ART. 49, § 3º, DA LEI N. 11.101/2005. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Como se sabe, por meio da cessão fiduciária de direitos creditórios (em que se transfere, concomitantemente, a propriedade resolúvel da coisa móvel fungível - título de crédito), o devedor, no caso, a empresa recuperanda, cede seus 'recebíveis' a uma instituição financeira, como garantia ao mútuo bancário, a qual recebe o pagamento diretamente do terceiro (devedor da empresa em recuperação judicial).[14] (grifo nosso)
Apesar do surgimento, nos últimos anos, de decisões minoritárias esparsas no sentido de negar a permissão para a realização das travas bancárias, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, até o momento, segue a mesma linha dos Tribunais Estaduais:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. TRAVA BANCÁRIA. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005.2. Recurso especial não provido.[15]
Ora, analisando puramente a letra da Lei e sob o óbice das relações contratuais privadas, nada, de fato, levanta preocupações: a trava bancária é dotada de absoluta legalidade e isso não se questiona[16].
O Professor Bruno Salama, inclusive, ao defender a legalidade da trava bancária, expõe outros dois argumentos: (i) que a trava se configura como um instrumento de incentivo ao crédito e à atividade econômica, ainda que, do ponto de vista político, seu levantamento se mostre legítimo, no campo jurídico o caminho é justamente inverso e que (ii) a relativização da trava no caso concreto, pelo Magistrado, em nada agrega à normalização do mercado e prejudica a segurança jurídica (SALAMA, 2013, p. 59).
Entretanto, apesar de reconhecer-se os argumentos do autor, os quais são ratificados por vários outros, há que se avaliar a possibilidade de se pensar diferente: ao longo deste trabalho, em vários momentos se buscará explicitar que o contexto do incentivo ao crédito não se efetiva, que a atuação jurisdicional se mostra uma solução, a curto prazo, eficaz à concretização da recuperação judicial, e que a segurança jurídica tem sido relativizada para privilegiar, ainda mais, os credores detentores da posição de proprietários fiduciários.
Assim, a trava bancária não é apenas um empecilho dentro do processo recuperacional de uma empresa específica, é, verdadeiramente, um empecilho potencial a frustrar o instituto da recuperação judicial em si. Veja-se: a diminuição dos juros por parte da instituição financeira é, de fato, equivalente sobre o poder que esta passa a exercer sobre a empresa? É plausível comprometer inteiramente a função social que a empresa exerce na comunidade em detrimento de um interesse restrito a apenas um credor, que sequer se submete ao plano?[17]
O processo de recuperação judicial acaba ficando adstrito à vontade dos bancos, uma vez que as maiores dívidas das empresas em dificuldade se referem aos contratos bancários[18], os quais, em grande parte, somam um valor maior que aquele concernente aos débitos devidos às quatro classes creditícias somadas.
Daí, decorre a grande dificuldade das empresas em efetivarem seus planos de recuperação e sua aprovação. De nada vale o esforço e sacrifício de trabalhadores, fornecedores e da própria empresa em prol de um bem comum, se o credor “chave” apenas se preocupa com seu benefício, sem analisar o tamanho contexto social que está inserido. Por isso, mais uma vez cabível a afirmação de que a recuperação judicial é muito mais que um jogo de interesses privados (RAMOS, 2016, p. 184).
A trava bancária exercida pelas instituições financeiras é uma afronta a preservação da empresa e um claro desrespeito à isonomia em relação aos demais credores. Tal é a gravidade, que a própria viabilidade de efetiva aplicação do instituto de recuperação judicial vem sendo questionada.[19]
Os autores Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli discorrem sobre a disparidade de interesses da recuperação judicial e da instituição financeira credora, bem como a banalização deste tipo de contrato e a postura inflexível dos bancos, perante à dificuldade da empresa:
Com efeito, a não sujeição pura e simples do crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis constitui forte incentivo para os agentes econômicos optarem por essa forma de garantia, em detrimento de outras formas, que sujeitam o crédito à recuperação judicial. É fato notório que a constituição de penhor sobre títulos de crédito cedeu lugar à cessão fiduciária como forma de garantia das operações de mútuo bancário. A jurisprudência acerca da matéria consolidou-se no sentido de que operações garantidas por cessão fiduciária de recebíveis não se submetem à recuperação judicial, contanto que a cessão fiduciária tenha sido aperfeiçoada em consonância com as formalidades exigidas. Conquanto possa haver disputa acerca de qual deve ser de lege ferenda solução dos conflitos envolvendo trava bancária, não se pode ignorar que a alienação fiduciária de recebíveis não cederá pelo simples fato de a empresa devedora estar em crise.(AYOUB, CAVALLI, 2016, p. 237).
Igualmente pontuais, mas com maior viés crítico o apontamento de Paulo F.C. Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão:
Não se descarta, também, na hipótese, a possibilidade de cessão de crédito, a fim de que não ocorra a famigerada trava bancária, engressando os credores na relação do plano de recuperação, permitindo, assim, a reorganização societária. É deveras dificultosa para a empresa em crise aprumar uma recuperação judicial sedimentada, exclusivamente, na cláusula pertinente aos credores quirografários, na medida em que se subordina aos demais, os quais podem requerer providências constritivas em detrimento da recuperação. De nada adianta, portanto, isoladamente, redesenhar a recuperação da pequena e média empresas, se, essencialmente, outros credores fustigam seu patrimônio, imobilizam seus ativos e reclamam o recebimento de seus créditos, dando de costas para o problema da crise (TOLEDO, ABRÃO, 2012, p. 189).
Dessa forma, é possível verificar que, apesar de amplamente sedimentado na jurisprudência e doutrinas majoritárias, tal prática de travar os recebíveis da empresa em recuperação judicial não é saudável — a não ser — unicamente, para o credor beneficiário - carecendo de profundos questionamentos a respeito e revisões em tempo de conceder maior firmeza ao instituto recuperacional.
A Constituição Federal de 1988 trouxe como preocupações fundamentais a efetivação de alguns princípios por ela resguardados, tais como a cidadania, a diminuição das desigualdades, o incentivo à livre inciativa em conluio com os valores sociais do trabalho e, o que serve como maestro para todas as normas jurídicas, chamado de princípio da dignidade da pessoa humana; todos de acordo com seu art. 1º.
A partir dela foi desenvolvido um novo método hermenêutico, fundado na ideia de interpretação conforme a Constituição[20]. Segundo ele, significa excluir quaisquer outras possibilidades de interpretação restritas apenas à letra da Lei e que se contraponham aos princípios constitucionais.[21]
Sobre a interpretação conforme, escreveu o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que a oportunidade para interpretação conforme a Constituição existe sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição (MENDES, 2012).
No que concerne ao princípio da isonomia, é necessário, em um primeiro momento, esclarecer a diferenciação já debatida na jurisprudência e na doutrina, entre seu aspecto material e seu aspecto formal. Sucintamente, é possível dizer que a igualdade ou isonomia, se aplicada meramente em seu sentido formal, é falha[22]; uma vez que, essa significação se refere, basicamente, à parte inicial do caput do art. 5º da Constituição Federal, cuja disposição é de que todos são iguais perante à Lei.
Tendo em vista que a referida disposição não é suficiente para, efetivamente, concretizar a igualdade, houve a evolução da interpretação deste princípio para abarcar também sua conjectura material. Segundo ela, a isonomia/igualdade deve ser verificada no boço da realidade fática de cada indivíduo, ou seja, não basta a disposição de que todos são iguais perante à Lei, enquanto este “todos” não for composto por cidadãos com o mesmo nivelamento. [23]
De tal modo, a igualdade material e a formal devem se complementar, devendo a segunda ser mantida e efetivada pela Lei e através dela, como já verificado por Canotilho, que a obtenção da igualdade substancial deve pressupor um generalizado reordenamento das oportunidade, impondo-se políticas profundas, de forma que o Estado não seja um simples garantidor da ordem assente nos direitos individuais e no título da propriedade, mas sim um ente de bens coletivos e fornecedor de prestações (CANOTILHO, 1995, p. 306).
A partir disso, parece admissível se pressupor que o referido princípio está sendo efetivado na relação dos credores sujeitos ao plano de recuperação judicial, em detrimento dos já exaustivamente comentados contratos de cessão de títulos de crédito com garantia fiduciária, realizados em grande escala pelas instituições financeiras?
Para tanto, basta analisar a discrepância que mais salta aos olhos: a sujeição dos credores trabalhistas ao plano de recuperação judicial, em relação às instituições financeiras, que, por meio dos contratos fiduciários, possivelmente nunca ocuparão a esfera concursal.
Não é aceitável considerar que um trabalhador, por exemplo, que participa há anos do quadro de empregados da empresa, contribuindo diretamente com seu esforço para a continuidade da mesma, vê, ao ser aprovado o plano de recuperação, seu crédito sendo reduzido, muitas vezes, pela metade, a depender do deságio incidente — crédito este de natureza alimentar, que serve para prover a subsistência de sua família[24] — enquanto que os bancos detêm plenos poderes de reivindicar ou reter o que lhe é devido, sem qualquer desconto ou negociação plausível.
Existe uma inversão de valores constitucionais neste parágrafo 3º: trata-se como vulnerável quem, definitivamente, não o é. A suposta diminuição dos juros, como já dito, não coloca as instituições financeiras como partes frágeis nessa relação recuperacional.[25]
Se mantido o § 3º, do art. 49, da Lei nº 11.101/2005, no que se refere à não sujeição da propriedade fiduciária ao âmbito concursal, como já dito, é causa para inviabilização da recuperação judicial[26], é iniciar um processo custoso a todos os envolvidos em prol de um bem comum, fadado ao insucesso. O instituto da recuperação judicial precisa, necessariamente, dar fôlego à empresa, ajudá-la a “não fechar as portas”, preservar os empregos dos trabalhadores, garantindo o bem-estar de suas famílias e, é claro, fazer valer o disposto no art. 170 da Constituição Federal[27], ou seja, de fato impulsionar a economia do país e não unicamente a dos bancos.
Felizmente, algumas decisões judiciais esparsas e mais apropriadas à realidade da empresa Recuperanda, vêm trazendo esperanças de mudanças nesse campo problemático e ideológico. Uma delas, bastante inspiradora e crítica, foi proferida pelo Magistrado José Henrique Neiva de Carvalho e Silva, da Vara de Falências, Recuperações, Insolvências e Cartas Precatórias Cíveis, na qual realiza o controle de constitucionalidade difuso do § 3º, do art. 49, da Lei nº 11.101/2005, cujos trechos serão transcritos a seguir:
Os direitos fundamentais devem ser aplicados, senão serão apenas esclarecimentos políticos e morais, sem eficácia, sendo a Constituição que os abriga tornada letra morta, inserindo-se num plano irreal, utópico. A exclusão da submissão dos créditos bancários à recuperação judicial, praticamente inviabiliza a possibilidade de retirar a empresa desse período de difícil situação econômica. Em praticamente todos os processos de recuperação empresarial, a maioria dos credores são as instituições financeiras, bem como seus créditos são os de maior valor. Deve-se tratar, por conseguinte, todos os credores de forma igual, com isonomia. Incluindo-se os créditos bancários no rol dos credores sujeitos a recuperação, gera a possibilidade clara de se conceder o fôlego necessário para a empresa se recuperar, mantendo-se os empregos dos trabalhadores, dando continuidade ao recolhimento dos impostos e gerando benefícios a população em geral. A recuperação da empresa então passou a ser analisada não para buscar a efetividade dos interesses dos sócios, mas sim com o objetivo de se fazer prevalecer o interesse público, exposto no art. 170 da Constituição Federal. Deve prevalecer, por conseguinte, a função social da empresa. Os créditos das instituições financeiras são sempre os de maior valor. É necessário, portanto, que se submetam também, à lei de recuperação de empresas, como determina o “caput” do art. 49 da lei 11.101/2005, igualmente, como todos os demais credores, obedecendo-se o princípio constitucional da isonomia. Caso contrário, como se tem visto habitualmente no dia a dia forense, na Varas de Falências e de Recuperação Judicial, uma empresa que poderia continuar suas atividades têm que fechar as portas. Assim, extinguem-se os empregos; as famílias dos demitidos passam por situação de penúria; outras empresas que prestam serviços para a recuperanda também vão à falência. [28]
Inclusive, a decisão acima mencionada foi agravada de instrumento por uma instituição financeira, sob o argumento de que, em síntese, a exclusão tem por finalidade privilegiar a segurança no exercício do direito à propriedade e que é necessária a ponderação de princípios sob pena de inadimplência geral. Todavia, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, no voto do Desembargador Relator Amaury da Silva Kuklinski, decidiu manter a decisão agravada em sua integralidade, fundamentando que:
Assim, tenho que de fato se faz necessário tratar o credor de forma igual, com isonomia, e principalmente, interpretando-se dessa forma estaremos prestigiando o interesse público, que deve se sobrepor aos interesses de grandes grupos econômicos (instituições financeiras), pois, estaremos dando possibilidades claras de recuperação às empresas em dificuldades financeiras, mantendo-se assim, os empregos, o recolhimento dos impostos e gerando benefícios aos cidadãos de uma forma geral.[29]
Igualmente acertado foi o voto da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, que traduziu o corpo ideológico de proteção ao escopo bancário, no julgamento do Recurso Especial nº 1.202.918:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA". 1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005. 2. Recurso especial não provido. Evidente, pois, não ter sido essa a vontade do legislador. Até porque o ideal de superação da crise econômico-financeira das empresas que norteia a Lei n° 11.101/05 depende da existência de instrumentos para tanto, entre eles a liberação das chamadas travas bancárias, sujeitando os créditos garantidos por cessão fiduciária ao regime de recuperação judicial. Afinal, o que se busca é a recuperação da empresa – em prol da fonte produtora, do emprego e dos credores – e não apenas a recuperação do crédito bancário, que viria em benefício exclusivo das instituições financeiras.[30]
De artigo elaborado pelo Magistrado Luiz Roberto Ayoub, é possível extrair que a Lei de Falências e Recuperação Judicial é jovem e necessita ser debatida e amadurecida para alcançar o ponto em que seja possível realizar uma correta interpretação e aplicação ao caso concreto. [31] Inclusive, prossegue o autor afirmando que, partindo da ideia isonômica é fácil concluir que todos, até mesmo o fisco, deverão se submeter de alguma forma aos efeitos da recuperação judicial, vez que há uma espécie de solidarização de prejuízos voltados para a busca de um bem maior e que interessa à coletividade envolvida.
O tema traz controvérsias, vez que, ao ser balizado pelo princípio constitucional da isonomia, verifica-se a tamanha fragilidade do trabalhador no processo recuperacional[32], pois este poderá ter desconto significativo em sua verba de natureza alimentar, enquanto que os bancos, por meio de táticas de blindagem patrimonial, se mostram, aparentemente, imunes a prejuízos.
Desse modo, partindo do exposto, resta buscar soluções à divergência dos interesses privados e da prevalência dos contratos com garantia fiduciária, em contrapartida à relação do princípio da isonomia entre os credores na esfera concursal da recuperação judicial, sendo uma delas, a viabilidade da criação de uma classe de credores fiduciários.
Como já exposto acima, as travas bancárias podem, por diversas vezes, comprometerem a saúde da empresa que já passa por um custoso processo de recuperação judicial e, ao ter seus recebíveis travados, sem poder utilizá-los para suas finalidades empresariais, passa a não vislumbrar saída que não seja o insucesso deste procedimento e sua consequente convolação em falência. Qual seria, então, uma saída adequada para satisfazer este específico ponto que envolve, prioritariamente, instituições financeiras e empresas em recuperação?
O Deputado Carlos Bezerra, em 2009, elaborou o Projeto de Lei nº 4.586/2009[33] — o qual segue apensado ao Projeto de Lei nº 7.604/2006 — cuja intenção é estabelecer que os créditos garantidos por cessão fiduciária de títulos de crédito fiquem sujeitos à recuperação judicial. Atualmente, o projeto se encontra em fase de sujeição à apreciação do Plenário e tramita em regime de prioridade.
O Parlamentar fundamentou a propositura do Projeto de Lei na opção legislativa de restringir ao proprietário fiduciário de bens móveis e imóveis (alienação fiduciária) à exclusão dos efeitos da recuperação, não incluindo a cessão de títulos de crédito com garantia fiduciária neste campo de exclusão, assim como no privilégio excessivo às instituições financeiras que a referida exclusão permite. Parte da referida fundamentação, foi extraída de artigo publicado no jornal Valor Econômico, de autoria do advogado Lincoln Fernando Pelizzon Estevam:
Mas certamente essa não foi a intenção do legislador em relação aos créditos garantidos por cessão fiduciária de títulos. O ideal de superação da crise econômico-financeira das empresas, cuja oportunidade é dada com o processo de recuperação judicial, depende da disponibilização dos meios necessários: para cumprir tal missão, a lei deve ser aplicada para reconhecer que a sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária ao regime da recuperação e, por conseqüência, a liberação das travas bancárias em benefício das empresas em crise, são medidas de fundamental importância para tornar possível essa superação. E viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa é permitir, essa ordem de prioridades, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Pensar o contrário é ver o que não está escrito na lei. Ou pior, é entregar o destino da nova lei a interesses egoístas das instituições financeiras, que querem apenas a recuperação do crédito bancário e não da empresa, voltando os olhos para a sombra do obsoleto e revogado decreto falimentar de 1945.[34]
Dessa forma, se verifica na permissão da realização das travas bancárias, uma clara violação à preservação da empresa e à isonomia, bem como evidente irracionalidade. Como soerguer a empresa impedindo a utilização de recebíveis para seus fins produtivos e empresariais? Como, sequer, falar sobre a aplicação plena, in concreto, da Lei nº 11.101/2005, ao permitir tais práticas?
Das palavras do perito em direito empresarial, Bruno Salama, é possível extrair o entendimento de que: a Lei de Recuperação Judicial e Falências permite uma possibilidade, qual seja, a trava bancária, que obsta os objetivos da própria Lei. Seria, assim, a Lei nº 11.101/2005 considerada, de forma metafórica, “um pombo sem asas” (SALAMA, 2013).
Neste mesmo raciocínio, ensina Manoel Justino Bezerra Filho de forma bastante crítica que, se o art. 49 da atual Lei de Falências e Recuperação de Empresas realmente encontrasse correspondência em seu próprio corpo de normas, talvez pudesse permitir, de fato, a recuperação judicial. No entanto, o que se observa é a contrariedade do art. 49 com o art.47 — o qual exprime com clareza os objetivos da Lei — e tantos outros; de tal modo que os créditos mais importantes e determinantes para o sucesso recuperacional, ficam a ele alheios (BEZERRA FILHO, 2013, p. 223). Ainda, vai além o autor ao ponderar que:
Como resultado, o que se vê é que a lei foi aprovada com todas as benesses que o capital financeiro queria para si e, como era de se esperar, não houve qualquer baixa nos juros que, no momento atual, em termos mundiais, perde apenas para os juros cobrados na Turquia, como informa o noticiário econômico de todos os jornais.[35]
Deste modo, por que não analisar de maneira concreta a real viabilidade de a cessão de títulos de crédito com garantia fiduciária se submeter à recuperação judicial? Qual o intuito de manter esse óbice a qualquer custo? Onde se aloja o princípio constitucional da isonomia na tamanha diferenciação entre os credores?
Se há classes e prioridades de pagamento para todos os demais, não assiste razão para que o mais importante e crucial credor se mantenha alheio ao plano recuperacional, de forma a não participar ativamente, principalmente no que se refere à socialização de prejuízos, e, ao contrário, na verdade, caminhar em sentido contrário ao espírito da Lei e, consequentemente, à própria empresa. Carece de qualquer sentido.
Há, ainda, segundo Manoel Justino Bezerra Filho, a possibilidade de que os credores fiduciários, por opção, se sujeitem ao plano de recuperação judicial. Ao anuírem, seu crédito fica vinculado ao plano de recuperação judicial e lhes confere poder de votar na Assembleia Geral de Credores (BEZERRA FILHO, 2005, p. 137).
A sujeição voluntária das instituições financeiras ao plano de recuperação demonstraria um grande passo em direção à efetiva preservação da empresa e ao interesse social, bem como uma solução, a curto prazo, até o debate legislativo — e eventual concretização —acerca da criação da classe de credores fiduciários.
Todavia, a referida sujeição voluntária dos contratos bancários com garantia fiduciária se mostra quase utópica e, enquanto não se vislumbra o empenho em adequar o texto legislativo à realidade, as inviabilizações dos processos recuperacionais continuam, de modo que será necessária postura atuante do judiciário no sentido de preservar a empresa viável e efetivar normas constitucionais.
4 A RELAÇÃO ENTRE A EFETIVIDADE DO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL, O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
Diante do exposto até o momento, resta palpável a visualização da impossibilidade de se dissociar a recuperação judicial da preservação da atividade empresarial, — ainda mais no atual cenário econômico — sendo que seu vínculo se encontra expresso no art. 47 da Lei nº 11.101/2005. De forma sintética e suficiente, Edilson Enedino das Chagas, exprime o significado de preservação da empresa: Preservar a empresa significa resguardar os mercados de fatores de produção e de consumo do local, da região, do estado e do país em que ela se encontra (CHAGAS, 2016, p. 55).
Destarte, a recuperação judicial se insurge com o objetivo de estender a continuidade da empresa viável e todas as benesses que dela decorre, devendo sua extinção ser vista como ultima ratio (CHAGAS 2008, p. 56).
Nesta seara, a instabilidade política e institucional, agravou em muito a crise econômica que perdura no país, trazendo à tona um grande número de pedidos de recuperação judicial. Veja-se:
Em 2016, foram registrados 1.863 pedidos de recuperação judicial, um aumento de 44,8% ante 2015 e um recorde desde 2006, primeiro ano completo desde que a nova lei que rege o tema entrou em vigor. Apesar de ter pouco mais de 10 anos, alguns pontos na legislação não atendem mais à realidade das companhias que enfrentam dificuldades financeiras.[36]
Todavia, apesar de constitucionalmente previsto e expressamente disposto na Lei nº 11.101.2005 como objetivo principal da recuperação judicial, o princípio da preservação da empresa nem sempre é tratado como deveria, inclusive pelo poder judiciário.
O autor Alberto Camiña Moreira afirma que, a despeito dos objetivos que restam declarados no art. 47 da LRF, a impressão é de que a Lei não pode contar com o juiz para eles sejam alcançados (MOREIRA, 2005, p. 250).
Sob o aspecto formal, as travas bancárias têm sido reiteradamente mantidas pois, à letra da Lei, não se sujeitam à recuperação judicial. Entretanto, passados mais de dez anos desde que a Lei entrou em vigor, são raros os debates preocupados com o tema e, enquanto isso, as recuperações continuam caminhando ao insucesso.
Em um primeiro momento, cumpre-se colocar que Lei de Recuperações Judiciais e Falência trouxe novas abordagens, inclusive no que concerne a um afastamento do juiz no processo, de modo que atue prioritariamente como fiscalizador, dando abertura para que o deslinde do processo ocorra por meio das negociações e dos diálogos (MOREIRA, 2005, p. 250) entre os credores e a empresa devedora.
Tal abordagem, em teoria, se mostra bastante adequada. No entanto, na prática, muitas vezes apegado à literalidade da Lei, no que concerne aos contratos bancários com garantia fiduciária, os quais caracterizam a trava bancária, o judiciário tem deixado a desejar: a trava bancária é mantida, o spread não diminui, os princípios são ignorados, a incerteza e o descrédito do empresário aumentam, a empresa não consegue se reerguer, sua função social é comprometida e o prejuízo é distribuído à toda sociedade. A instituição financeira, contudo, permanece com um risco mínimo ou quase isenta dele.
Nesta seara, o que se percebe é que a Lei nº 11.101/2005 se assemelha a uma colcha de retalhos: utiliza-se de um artigo (art. 47) para expressamente determinar seus objetivos e, ao mesmo tempo, permite que, por interesses puramente privados, determinados recebíveis deixem de entrar na empresa, comprometendo seu funcionamento e sua real recuperação. Uma clara antinomia e uma afronta constitucional.
Assim, distante de rumar em sentido contrário a segurança jurídica — o que será melhor abordado à frente — o juiz deverá analisar com concretude, com visão ampla, impulsionado pelo vértice constitucional, pelos princípios, pela recuperação efetiva da empresa, a possibilidade do levantamento da trava bancária no caso concreto.
No mais, em excelente análise, Gerson Luiz Carlos Branco ensina:
Ora, se o legislador dispôs sobre a recuperação da empresa em dificuldades, instituindo princípios cuja realização tem importância econômica e social ímpar, cabe ao juiz usar o princípio da maior eficácia, segundo o qual havendo contradições que impeçam a eficácia principiológica da lei é possível a atuação mediante a intelrpretação a fim de garantir a operabilidade da própria lei (BRANCO, 2013, p. 43).
Ao sopesar, portanto, o texto legislativo, com o caso concreto, o juiz deverá realizar uma análise ética do processo, verificando se as partes não se utilizam dele para alcançar determinados objetivos ilegais e o conduzem dentro dos limites da função social do direito.[37]
Desse modo, impedir ou levantar a trava bancária, em determinados casos concretos, onde o sucesso da recuperação judicial dependa majoritariamente ou, até mesmo, exclusivamente da liberação dos recebíveis, parece ser a solução mais adequada.
Em contraponto, pode-se arguir o princípio da segurança jurídica como possível obstáculo à interpretação judicial tendente a relativizar a trava bancária. Todavia, tal argumento não se mostra razoável.
O princípio da segurança jurídica tem como objetivo proteger e preservar as justas expectativas das pessoas (DANTAS, 2013). A viabilidade do levantamento da trava bancária no processo de recuperação judicial não é algo que possa se deixar resolver automaticamente, pela mera aplicação da letra da Lei, mas sim, após uma grande reflexão da situação da empresa em crise, principalmente no que se refere ao princípio da preservação da empresa, razão de existir do novo instituto da recuperação judicial.
Distante de ser uma questão facilmente resolvível, os contratos com garantia fiduciária configuram um problema relevante à empresa e atingem, ainda que indiretamente, a sociedade em geral.
Há, entre os credores, uma disparidade de tratamento que coloca em pauta a própria constitucionalidade do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2205, quando observado à luz dos princípios da isonomia e da preservação da empresa.
Nesta senda, resta impossível a não formulação de questionamentos acerca do caráter ideológico por trás da imposição legislativa, que protegem desmedidamente o setor econômico, através de “lobby dos banqueiros” junto ao Congresso Nacional[38], bem como possíveis formas de alterar este quadro.
Em relação ao debate acerca da abrangência do “proprietário fiduciário” discriminado no § 3º, do art. 49, da Lei nº 11.101/2005 — conforme já trazido em momento anterior desta pesquisa — tem-se, pela doutrina majoritária e pela jurisprudência, que a cessão fiduciária de créditos se encontra englobada no termo propriedade, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial.
Assim, o alcance do termo proprietário fiduciário, apesar de se mostrar, a princípio, um bom argumento para sujeição dos créditos cedidos fiduciariamente à recuperação judicial, já foi superado após longas análises doutrinárias e evolução jurisprudencial, não configurando, portanto, um obstáculo a ser superado, neste ponto específico.
Contudo, mesmo que a presente pesquisa vá de encontro à posição acima mencionada, considerando que as instituições financeiras que realizam contratos de cédula de crédito bancário com garantia fiduciária, são, de fato, encaixadas como proprietárias fiduciárias, é inegável a existência de um obstáculo mais gravoso a ser superado: a própria exclusão destes créditos dos efeitos do processo recuperacional.
Não se olvida do risco de inadimplência inerente aos contratos de crédito, visto que os bancos os celebram com a mais variada gama de setores produtivos (MENDES, 2010, p. 496). Todavia, a total exclusão deste tipo de contrato à recuperação judicial, configura um desacordo entre os objetivos da Lei de recuperação e como ela, efetivamente, funciona, ao permitir privilégios como este.
Assim, o aspecto material da exclusão contida no art. 49, § 3º, se estende para além do campo restrito da garantia escolhida, do contrato firmado e, consequentemente das exigências que disso decorrem.
O cerne do processo recuperacional é o plano de recuperação judicial, o qual deverá ser ávido, pertinaz à concretização do objetivo, da melhor e mais rápida forma possível, buscando, logicamente, os melhores resultados (PACHECO, 2013, p. 280). Dessa forma, o plano, aliado às intenções da Lei, são voltados para um mesmo objetivo: o soerguimento da empresa em crise, para que possa operar saudavelmente, exercendo sua função social.
Portanto, sendo as instituições financeiras as principais credoras da empresa em recuperação (MENDES, 2010, p. 528), parece extremo que elas, sequer, se submetam de qualquer forma ao plano. São os contratos bancários que, em inúmeros casos, podem determinar o futuro da recuperação judicial.
Neste sentido, nas palavras de Luiz Fernando Valente de Paiva, há importante colocação sobre o tema:
É inegável que a inexistência de mecanismo que permita a superação da vontade de credores isolados, que, ao exercerem regularmente seu direito (uma vez que a lei atual lhes dá essa possibilidade) podem levar a empresa devedora à falência, compromete a governança e o sucesso do processo de recuperação. Em suma, a alteração da lei para sujeitar todos os seus credores aos seus efeitos, a par das garantias que podem ser atribuídas a certos créditos, é medida essencial para tornar os processos de recuperação eficientes (PAIVA, 2012, p. 426).
No que concerne à isonomia, verifica-se flagrante deturpação — conforme já mencionado em doutrina colacionada acima —, quando se utiliza o parâmetro, talvez, mais evidente da distinção: os créditos trabalhistas versus os créditos garantidos fiduciariamente. Claramente, em relação aos outros credores, como quirografários, por exemplo, o desnivelamento também se configura evidente; no entanto, ainda é nos créditos trabalhistas que o caráter ilógico da exclusão dos efeitos da recuperação judicial da grande maioria dos contratos bancários se sobressai.
Verifica-se, dessa forma, que os créditos trabalhistas sofrem limitações, deságios, um prazo para pagamento, ou seja, se sujeitam à recuperação judicial, por mais que sejam eles, os salários, responsáveis pela subsistência do trabalhador e de sua família e, consequentemente, fomentadores da dignidade humana.
Diante do exposto até o momento, é possível observar que o obstáculo legislativo, qual seja, a exclusão do crédito garantido fiduciariamente da recuperação judicial, deve ser superado através da alteração do texto da Lei.
Ainda que se considerasse que, de alguma forma, este crédito bancário com garantia fiduciária devesse permanecer privilegiado, tendo em vista a suposta diminuição do spread, o privilégio não pode ser de tal forma que frustre a recuperação judicial e, consequentemente, a preservação da empresa, bem como que a diferenciação em relação aos demais credores seja tamanha, que afronte a isonomia.
Os objetivos da Lei são desviados, para, ao final, satisfazerem credores isolados, que não contribuem para o processo recuperacional. Portanto, a alteração legislativa tendente a criar uma classe de credores fiduciários sujeita ao plano de recuperação judicial e seus efeitos, parece se mostrar mais adequada constitucionalmente.
Todavia, até que haja, de fato, a alteração legislativa sugerida, os processos de recuperação judicial continuarão existindo e caminhando próximos ao insucesso. Desse modo, a atuação do juiz deverá ser baseada de acordo com os objetivos da Lei, ou seja, que na análise no caso concreto, ele possa sopesar o texto legislativo, que versa sobre a exclusão dos créditos com garantia fiduciária, em contrapartida aos próprios objetivos do mesmo.
Algumas decisões proferidas por juízos singulares têm se mostrado animadoras neste sentido de, não ignorando, mais sim, ponderando a mantença da trava bancária e os objetivos da Lei nº 11.101/2005, conseguirem uma visualização amplificada das consequências oriundas dessa.
Em processo de recuperação judicial ajuizado em 26 de setembro de 2012, perante a 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, por exemplo, as autoras/recuperandas alegaram que o maior óbice para seu soerguimento era a trava bancária realizada por determinada instituição financeira, a qual ocasionava a retenção de 85% de seu faturamento para pagamento de juros e amortizações.[39]
O Magistrado Mauro Pereira Martins, ao analisar o pedido de levantamento da trava bancária — o que, de fato, o fez — fundamentou sua decisão na observação do princípio da preservação da empresa:
Afigura-se inequívoco que, para se propiciar reais e efetivas condições de superação da crise econômico-financeira experimentada pelas requerentes, deve ser vedada a prática da trava bancária. O princípio jurídico a ser observado, na presente circunstância, é o da preservação da empresa, restando patente que a manutenção do mecanismo citado tornará esvaziado de interesse o prosseguimento do presente processo de recuperação judicial.[40]
Assim, longe de uma afronta à segurança jurídica, o que se espera é que a análise do caso concreto seja conduzida através de uma interpretação conforme a Constituição Federal, valorizando os princípios e possibilitando uma visão ampla das consequências que uma decisão que levanta ou não a trava bancária, poderá trazer.
Este posicionamento vai de encontro à lição dada pelo Professor Fredie Didier Jr., ao tratar sobre a atuação judiciária sob à ótica constitucional:
Em outras palavras, o princípio da supremacia da lei, amplamente influenciado pelos valores do Estado liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado, atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de que o magistrado, necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto uma interpretação conforme a Constituição, sobre ela exercendo o controle de constitucionalidade se for necessário, bem como viabilizando a melhor forma de tutelar os direitos fundamentais. [41]
Logo, partindo do pressuposto de que o direito é mutável e que deve ser efetivo quando aplicado, verifica-se que, um segundo obstáculo é a inobservância pelo judiciário, em grande parte dos pedidos de levantamento de trava bancária, dos princípios que regem a recuperação judicial, bem como a ausência de crítica concernente a este episódio tão decisivo no processo recuperacional.
Deste modo, acredita-se que, na verdade, o magistrado deverá, ao invés de meramente aplicar a Lei, balizar sua aplicação buscando sempre a preservação da empresa e sua função social, fazendo com que esta seja benéfica e justa a todos, por meio de embasamentos constitucionais.
Destarte, a mudança legislativa para submeter os créditos cedidos fiduciariamente à recuperação judicial, se coaduna com os princípios constitucionais da preservação da empresa e da isonomia, sendo, portanto, a solução mais adequada.
Até que a alteração, de fato, aconteça, o que se espera são julgamentos profundos e constitucionalmente embasados dos pedidos de levantamento da trava bancária, buscando sempre uma visão ampliada e isonômica de todos os envolvidos, bem como dar significado à própria criação da Lei nº 11.101/2005, qual seja, o soerguimento da empresa em dificuldade, para que exerça sua função social.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo, ao apresentar um panorama geral do processo de recuperação judicial, buscou-se evidenciar sua evolução a partir da Lei das Concordatas (antiga Lei de Falências) até a entrada em vigor da Nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais, em 2005.
Em seguida, pode-se verificar a importância do plano de recuperação judicial, como peça central do processo recuperacional e adentrar na problemática classificação dos credores, em específico aqueles que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, excluídos legislativamente pelo disposto no art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005.
Essa exclusão privilegia de maneira exacerbada um credor específico, qual seja, a instituição financeira que, por meio dos contratos de cessão de direitos creditórios com garantia fiduciária, possibilita as travas bancárias.
As travas bancárias, por sua vez, caracterizam um grande, senão o maior obstáculo à superação da crise da empresa em dificuldade, bem como a exclusão destes créditos uma afronta à isonomia em relação aos demais credores, tendo em vista que podem ser cobrados sem nenhum óbice.
Assim, resta evidente que, se até os créditos trabalhistas se sujeitam à recuperação judicial, sendo o trabalhador o credor mais frágil dentre todos, não assiste razão para que seja permitida tamanha diferenciação de tratamento em relação aos créditos bancários, afrontando o princípio constitucional da isonomia. Ainda, o argumento de que a diminuição do spread justificaria o privilégio, não se mostra contundente, vez que esta diminuição, na verdade, não se efetiva.
Além disso, os créditos bancários se apresentam como os mais vitais ao soerguimento da empresa em dificuldade, podendo muitas vezes, individualmente, decidirem seu futuro.
Deste modo, não permitir a utilização dos recebíveis pela empresa, por meio da trava bancária, é caminhar em sentido contrário aos objetivos da Lei, dispostos no art. 47 e, até mesmo, ocasionar a inviabilização do instituto da recuperação judicial.
Logo, a alteração legislativa para sujeitar estes créditos à recuperação judicial, a partir da criação de uma classe de credores fiduciários, se mostra uma alternativa coerente para, ao mesmo tempo, satisfazer o credor e permitir que a empresa se recupere e volte a operar normalmente.
No que se refere à atuação do judiciário, em relação aos pedidos de levantamento da trava bancária, este deverá adotar uma postura que vá além da literalidade Lei, sopesando os interesses envolvidos, as consequências oriundas de se manter o bloqueio dos recebíveis e como isso afetará a função social da empresa, sua preservação e as consequências para os demais credores envolvidos.
Esta análise no caso concreto, deverá ser norteada pela interpretação conforme a Constituição e os princípios e garantias que ela resguarda.
Destarte, a Lei de Recuperação Judicial e Falências deverá ser observada e manuseada para atender a sociedade em geral, vez que, uma empresa saudável gera emprego, recolhimento de tributos, movimenta a economia e realiza todos os fatores atinentes à sua função social.
Uma solução equilibrada aos obstáculos contribui para o benefício de todos direta ou indiretamente e ratifica a razão de existir do próprio processo de recuperação judicial.