Maria Berenice Dias[1], quando discorre acerca do ciclo da violência em sua obra que trata sobre a efetividade da Lei Maria da Penha, ressalta o tipo de sociedade em que estamos inseridos. A comunidade em geral, infelizmente, ainda transfere parte da culpa pelas diversas agressões suportadas pelas mulheres, para as próprias vítimas. A sociedade ocidental nos impõe uma configuração familiar típica – que está sendo transformada aos poucos, mas ainda é a predominante – onde sua base se encontra na organização da família romana, caracterizada por ser patriarcal, monogâmica, e hierárquica colocando a figura masculina em lugar privilegiado na tomada de decisões.
A análise dos casos de violência doméstica nos traz um dado importante, esse problema também é uma questão de violência de gênero.[2] Os avanços da vida profissional das mulheres e a transformação do comportamento feminino desencadearam um grande problema social. A semântica da palavra violência nos remete a uma ideia de coação, uso de força física, porém esta não se revela só nos aspectos físicos do corpo humano, existem inúmeros tipos de violência que são suportados pelo gênero feminino dentro do âmbito familiar e os artigos 5º e 7º da lei estudada prescreve in verbis:
Art. 5º para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. [...]
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Nesse sentido, a definição conceitual daquilo que é considerado violência doméstica é de suma importância para conceber uma maior proteção ao individuo tutelado pela lei, abrangendo diversas modalidades que passarão a serem estudadas.
1. VIOLÊNCIA FÍSICA
Essa tipificação está prevista no artigo 7º[3], inciso I da Lei, legislando que sua configuração se dá quando houver prática de qualquer conduta que resulte em ofensa a integridade ou saúde corporal da agredida. Vislumbra-se que essa modalidade de agressão é a mais simples de reconhecimento, o uso da força através de socos, chutes, arranhões, tapas, queimaduras ou qualquer outro meio cruel e doloroso costuma deixar marcas, porém se ressalta que mesmo que a agressão não deixe marcas a vítima tem o aval de sua presunção de veracidade, ou seja, sua palavra tem grande peso e importância.
O Instituto DataSenado que realiza constantes pesquisas – através do Observatório da Mulher contra a Violência – realizou estudo no ano de 2015 sobre a Violência doméstica e familiar contra a mulher[4], demonstrando que, apesar de cem por centro das brasileiras terem conhecimento da lei que as protege contra tal tipo de conduta, grande é a parcela que se sente desrespeitada e uma em cada cinco afirma que já sofreu com agressões.[5]
Um dado que chama atenção nesse cenário é que dentro do percentual das mulheres que afirmam já ter suportado algum tipo de violência, sete em cada dez entrevistadas declararam ter sofrido agressão física. As informações colhidas pelo estudo dão conta que as agressões corporais são as mais praticadas e os agressores mais frequentes, cerca de 74% do casos, são homens que mantêm ou mantiveram relações afetivas com a vítima, são eles: o atual ou o ex marido, atual ou ex companheiro, o atual namorado ou ex namorado.[6]
Assinala-se que com o advento da Lei Maria da Penha, houve a alteração do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal Brasileiro, mantendo a redação do supracitado dispositivo, porém reduzido a pena mínima cominada para 3 meses e aumentando a pena máxima para três anos de detenção.[7]
2. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Prevista no inciso II do artigo 7º[8] da lei ora estudada, a violência psicológica é aquela entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
O assunto que engloba a violência dentro de relações afetivas entre homens e mulheres começou a ganhar destaque na década de 70 no século XX, o aumento dos movimentos feministas despertou atenção pelos quatro cantos do mundo. MarieFrance Hirigoyen[9], médica e especialista em psiquiatria, psicanálise e psicoterapia familiar, divide em nove categorias a forma como a violência psicológica se expressa, são elas: (1) controle; (2) isolamento; (3) ciúme patológico; (4) assédio; (5) aviltamento; (6) humilhação; (7) intimidação; (8) indiferença às demandas afetivas (9) ameaças.
O texto da norma legal orienta para a proteção da autoestima e da saúde psicológica do gênero afetado, uma vez que essa modalidade de agressão consiste no abalo emocional. Essa previsão foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, a chamada Convenção de Belém do Pará. Salienta-se também que o Código Penal Brasileiro prevê um aumento de pena para qualquer tipo de crime que se perpetue com a ajuda da violência psicológica, termos em que prescreve o artigo 61, inciso II, alínea ‘‘f’’.[10]