Questão muito curiosa foi abordada recentemente no periódico Super Interessante (ed. 343, fev. de 2015). Em tempos de atrocidades cometidas por grupos radicais como Al-Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram, a revista elaborou uma reportagem de onze páginas com um bem produzido apanhado histórico sobre a vida de Muhammad ibn Abdallah (Maomé). Certamente não interessa a este artigo a parte histórica, mas a jurídica. Especificamente em relação à Justiça Fiscal.
Primeiramente, devemos entender por “Justiça Fiscal” todo ato estatal direcionado a uma arrecadação justa, num sistema onde os que ganham mais contribuem com mais e os que ganham menos contribuem com menos, segundo critérios legalmente estabelecidos. Ou seja, nada mais que dispensar tratamento diferenciado a pessoas que se encontram em situações econômico-financeiras distintas. E, a par dos princípios que se interrelacionam com a Justiça Fiscal, lhe conferindo sentido, adotaremos neste artigo a acepção geral descrita acima.
Estamos no século 6 d.c. Precisamente no ano 570, quando Maomé nasceu, em Meca, na Arábia Saudita. A cultura local era a de reverência a deuses em forma de estatuetas, em um santuário chamado Caaba (O Cubo). Era também um tempo aonde a Bíblia já era o texto mais conhecido do mundo, já que havia sido escrita mil anos antes pelos judeus. E em meio a essa miscigenação de crenças e cultos a deuses é que nasceu Maomé.
Quando adulto, com aproximadamente vinte e cinco anos de idade, Maomé se destacou perante a sociedade como um exímio comerciante, sendo reverenciado pela elite de seu tempo. Já nessa época, de acordo com os primeiros escritos islâmicos sobre a vida do Profeta, Maomé demonstrava aversão às ideias que propunham a escravização de pessoas que não conseguiam pagar suas dívidas.
Ou seja, era avesso à imposição proposital de juros abusivos em contratos para que devedores não conseguissem quitar seus débitos, o que acabava forçando a venda de membros da própria família, negócio à época muito mais lucrativo para os comerciantes mais abastados. Com mais escravos – mão de obra barata – a produção era maior e, consequentemente, os lucros. Enfim, deixando de lado detalhes históricos, o fato é que foi a partir de seus quarenta anos de idade que Maomé passou a fazer as Recitações, que mais tarde dariam origem ao chamado Alcorão.
Foi assim, por meio de recitações, que Maomé passou a propagar em seus discursos novas lições sobre juros, tributação e justiça, ainda que de modo implícito. Um destes benevolentes atos foi comprar escravos de colegas comerciantes a fim de libertá-los. Em termos fiscais, o Profeta foi mais longe ainda. Em 622 d.c, agora em Medina (Arábia Saudita), Maomé era um Xeique e todos os seus seguidores formavam o que se denominava Ummah (comunidade), grupo unido pelas ideologias pregadas pelo conhecido líder religioso.
Na cidade de Meca, onde o monopólio do comércio se encontrava nas mãos dos Quraysh, todos pagavam taxas a este grupo sempre que uma mercadoria era vendida. Em Medina, onde Maomé agora residia, o sistema também era semelhante. Ninguém podia vender nada sem que uma taxa fosse paga a uma tribo de origem judaica chamada Banu Qaynuca. Contudo, essa política fiscal não agradava Maomé, que teve uma ideia: criar uma feira concorrente, que não cobrava taxas sobre vendas.
Ou seja, com a concorrência em alta, as demais feiras – sujeitas à tributação pelo Banu Qaynuca -, diminuíram seus preços. Ninguém queria perder a clientela para a nova feira instituída por Maomé, onde inexistia tributação. Tudo, claro, com um propósito: o Estado não era desatento, mas queria distribuir renda de forma mais igualitária, sem deixar de disceminar ideias puramente capitalistas.
Outro exemplo foi a consolidação do zakat, sistema arrecadatório pelo qual todos os membros do Ummah deveriam pagar tributos de acordo com as suas posses. O dinheiro era revertido a um fundo e repassado aos menos abastados, que não tinham como pagá-los. Ou seja, extinguia-se a política de tributação exorbitante de forma indiscriminada – pessoas mais ou menos abastadas eram tributadas da mesma forma – e nascia uma forma de Justiça Fiscal.
Ao criar um mercado de livre concorrência à sua época, impedindo que comerciantes Quraysh – mais ricos – instituíssem taxas abusivas sobre as vendas de outros comerciantes, Maomé materializou o princípio do não-confisco (art. 150, IV, CF/88). Sim, pois com a medida as pessoas não mais se sujeitavam ao pagamento de tributos altíssimos, o que ensejava muitas vezes inadimplência e a obrigatoriedade de cessão de membros do clã familiar para o credor, em um verdadeiro sistema de escravidão.
Depois, ao instituir o zakat, o líder religioso permitiu a integração da sociedade em geral com os bens de consumo. Isso porque, se considerarmos que o tributo era cobrado sobre a posse lato sensu, poderíamos incluir nessa conta tanto a renda quanto os bens stricto sensu. Assim, o fundo gerado com o tributo era revertido aos menos favorecidos, que com mais chances de vendas passavam também a aquecer o mercado e a gerar riquezas. Àquele fenômeno chamaríamos de princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88), um dos critérios atuais de Justiça Fiscal.
Vemos, portanto, que há séculos que diversos líderes e pessoas comuns tentam criar mecanismos para a concretização da Justiça Fiscal. E o Estado, muitas vezes ineficiente em suas gestões fiscal e econômica, não consegue cumprir a contento os comandos constitucionais que, juntos, objetivam fazer Justiça Fiscal no país. O exemplo de Maomé serve apenas para saciar uma curiosidade, sem deixar de ser um ótimo precedente sobre o tema.
http://jus.com.br/artigos/36383/maome-e-a-justica-fiscal