INTRODUÇÃO
A facilidade de viajar de um país para o outro gera um crescente número de relacionamentos entre pessoas de diferentes nacionalidades. Por sua vez, esses relacionamentos acarretam o nascimento de crianças com dupla cidadania o que traz à tona um novo tipo de conflito envolvendo a posse e guarda destas crianças, ocasionando muitas vezes o sequestro internacional destes menores. Diversamente do termo sequestro conceituado no Código Penal Brasileiro, essa subtração ilegal ocorre quando um dos pais leva o próprio filho contra a vontade do outro genitor para o país de sua origem. Há algum tempo atrás, essa situação não apresentava solução satisfatória e a grande parte dos países tendia a reter seu nacional, ainda que a criança tivesse chegado ao país de forma ilícita. Desta forma, a Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças se propôs a elaborar uma convenção específica sobre a retirada ilegal de crianças do seu país de residência habitual, tendo sido concluída em 25 de outubro de 1980, na cidade de Haia, na Holanda. Denominada de Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças, foi promulgada no Brasil através do Decreto n° 3.413 de 2000, e concentra-se, inicialmente, na cooperação entre os Estados.
Muitas vezes as mães se veem em situações de humilhação e violência doméstica nos países em que fixaram residência, porém tem medo de deixar o Estado em que vivem e retornar para o seu território de origem, pois não podem trazer consigo seus filhos, ou quando recebem autorização para viajar com os menores tem prazo determinado para retornar. Se optarem por permanecer “ilegalmente” com os menores no Brasil podem sofrer o processo de Busca, Apreensão e Restituição de Menores, tendo em vista o previsto da Convenção de Haia em seu artigo 1ª, A, que impõe que as crianças levadas ilegalmente de seus países devem a ele retornar imediatamente. Assim, o presente trabalho tem justificativa social na medida em que as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça a respeito deste tema levam em consideração apenas o previsto na Convenção de Haia e na Convenção Interamericana sobre Restituição de Menores, sem levar em conta a vida pregressa do menor e os direitos inerentes a ele, muitas vezes deixando de considerar o princípio do melhor interesse da criança, e a vontade do menor, que deveria sempre ser fator primordial nas decisões.
O problema a ser tratado no presente trabalho diz respeito a como funciona o instituto do sequestro internacional de menores na legislação brasileira, quais as normativas internacionais e nacionais sobre o tema, a forma como são tutelados os interesses do menor, e quais os institutos jurídicos foram aplicados ao caso em análise, envolvendo o menor Sean Goldman. Em 2009, ganhou ampla repercussão o caso de sequestro internacional envolvendo o menor Sean Goldman, filho de mãe brasileira e pai norte americano. A mãe trouxe o menor em uma viagem a passeio ao Brasil e decidiu não mais retornar aos Estados Unidos. Assim, o pai ajuizou ação de busca e apreensão do menino movida contra a genitora de Sean, porém o caso foi julgado com base nas exceções previstas na Convenção de Haia e o menino pode permanecer no Brasil em companhia da mãe. No entanto, mais tarde, a genitora veio a falecer em decorrência de complicações no parto de sua segunda filha, Chiara. A partir deste fato desenrolou-se uma verdadeira batalha judicial pela guarda do menor envolvendo o padrasto, familiares maternos e o pai biológico do menino. Por fim, o menino foi sentenciado a retornar aos Estados Unidos, mesmo depois de decorridos quase seis anos de sua residência no Brasil, já estando habituado a escola e amigos, tendo estabelecido sua rotina junto aos familiares maternos. Desta forma, me deparei com a indagação de o que é justo, ou até mesmo correto em relação à aplicação severa da Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Menores nestes casos.
A EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO DE HAIA (1980) NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: INSTRUMENTOS PARA O RETORNO IMEDIATO DA CRIANÇA COMO FORMA DE ATENDIMENTO AO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR
O crescente número de relacionamentos entre pessoas de diferentes nacionalidades é uma realidade atual, tendo em vista a facilidade de deslocamento entre os mais diversos países. Tais relacionamentos acarretam no aumento do nascimento de crianças de dupla nacionalidade, o que traz a tona um novo conflito pela guarda destes menores, o que muitas vezes ocasiona o sequestro internacional de crianças, diferentemente do termo sequestro conceituado no Código Penal, este ocorre quando um dos pais leva o próprio filho contra a vontade do outro genitor para o país de sua nacionalidade. [1] Há poucos anos essa situação não apresentava solução satisfatória e a grande parte dos países tendia a reter seu nacional, ainda que a criança tivesse chegado ao país de forma ilícita. Além disso, uma das grandes dificuldades era obter a localização da criança, visto que os Estados não dispunham de mecanismos de cooperação internacional que abrangessem tal matéria. [2]
A Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças iniciou o seu estudo nos anos 1970 e se propôs a elaborar uma convenção específica sobre a retirada ilegal de crianças do seu país de residência habitual, tendo sido concluída em 25 de outubro de 1980, na cidade de Haia na Holanda, denominada de Convenção de Haia sobre Sequestro Aspectos Civis do Internacional de Crianças, a qual foi promulgada no Brasil através do Decreto 3.413 de 2000, e concentrava-se, inicialmente, na cooperação entre os Estados. [3]
A Convenção foge do modelo tradicional preocupado somente com as leis aplicáveis, e traz um novo sistema de cooperação, com dispositivos de caráter legislativo, judicial e administrativo. Reúne ferramentas para o retorno imediato da criança e busca garantir os direitos de guarda e visitação. Prevê a fórmula do retorno ao status quo ante sem nenhuma dependência de uma decisão sobre o mérito da guarda. Concebe um procedimento específico para o retorno do menor ao país de sua residência habitual, com o intuito de facilitar o retorno imediato da criança, de forma rápida e menos traumática possível, referindo que a questão da guarda seja posteriormente definida na jurisdição da residência habitual do menor. [4] Nas palavras de Geraldine Van Bueren, trazido por Jacob Dolinger:
A Convenção de Haia, assim como a Convenção Europeia, não visam tirar as crianças permanentemente dos pais sequestradores e muito menos puni-los. A penalização do ato de deslocamento de uma criança de seu habitat normal para outro país levaria o sequestrador e, consequentemente, a criança sequestrada, a se refugiar, dificultando mais ainda sua localização. A ideia é tudo fazer para que a criança possa, no futuro mais próximo possível, manter contato com ambos os pais, mesmo se estes estiverem vivendo em países diferentes. Daí a procura de uma solução para o sequestro estritamente no plano civil. [5]
Para utilização da Convenção de Haia é estabelecido um procedimento especial, pois envolve inúmeras questões de prova de cada uma das possibilidades previstas, tanto para o retorno quanto para a proibição deste. O principio do melhor interesse da criança é condicionador para a interpretação das normas jurídicas, e, desta forma, ao aplicar a Convenção o magistrado precisa ter em mente a aplicação de tal principio de forma ampla, garantindo os direitos individuais do menor. A Convenção estipula em seu artigo 1º o retorno imediato do menor, porém o juiz precisa apreciar toda a prova para determinar se a saída deste menor foi ilegal como aduz o artigo 3º e se não estão presentes as exceções que impedem o regresso da criança. [6]
A instrumentalização da Convenção de Haia se dá através das autoridades centrais. No Brasil esta autoridade pertence à Secretaria de Direito Humanos da Presidência da República (SEDH), conforme Decreto Lei nº 3.951 de 2001.[7] Entretanto, para representação em juízo é necessária a atuação da Advocacia Geral da União, pois a Secretaria de Direitos Humanos é órgão despersonalizado e não possui capacidade postulatória. As Autoridades Centrais possuem a principal função de tomar as providências cabíveis para concretizar os objetivos da Convenção, o artigo 7º [8] elenca algumas destas prerrogativas. Além das funções próprias de atuação judicial existem outras de cunho administrativo que possibilitam a solução de várias controvérsias sem que o judiciário precise ser acionado, por exemplo, nos acordos de informação sobre o paradeiro da criança. [9]
A Convenção alicerça em seu artigo 8º que qualquer pessoa, instituição ou organismo pode comunicar a Autoridade Central de seu país caso julgue que algum menor tenha sido removido ilicitamente de sua residência habitual, e estabelece os requisitos para o pedido de restituição da criança, com o objetivo de que este pedido tenha êxito, sendo eles: os dados pessoais do solicitante, do menor, se possível, sua data de nascimento, e do cidadão a quem se atribui a subtração da criança. Deve apresentar ainda os motivos que o levaram a requerer o retorno da criança e todos os dados disponíveis quanto sua à localização. O pedido pode ser complementado com documentos que o requerente julgar necessários. Em seu artigo 9º [10], visando à economia de tempo, a Convenção estabelece que a Autoridade Central ao receber o pedido de restituição deverá repassá-lo imediatamente a Autoridade Central do Estado em que se encontre a criança. [11]
A Convenção moderniza a perspectiva de cooperação jurídica internacional, deixando de lado o modelo tradicional das Cartas Rogatórias [12] ou Ação de Homologação de Sentença Estrangeira [13] e traz a possibilidade de cooperação processual entre órgãos do poder governamental, as chamadas Autoridades Centrais, estas, por sua vez, estabelecem um rito mais ágil e menos oneroso às partes nos casos que envolvam o sequestro de menores.[14] O tratado sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças adota um sistema misto de cooperação, no qual as Autoridades Centrais exercem o papel de organizar e implementar a cooperação entre os Estados Partes, que devem respeitar a divisão interna de cada país. Cabe à Autoridade Central, quando solicitada à cooperação dar inicio aos procedimentos necessários para o fiel cumprimento às normas da convenção, visando ao retorno imediato da criança ilicitamente removida. [15]
Consequentemente, a Convenção consolida em seu artigo 10º que a Autoridade Central do país em que o menor esteja deve tomar as medidas para proporcionar a entrega espontânea da criança, tendo em vista que a resolução do litígio de forma voluntária protege os interesses da criança envolvida no conflito, interesses estes que tem primazia em detrimento de outros. Estabelece no artigo 11º o prazo de seis semanas, contados da data em que o pedido foi apresentado, para adoção de medidas urgentes com o objetivo de retornar a criança, buscando a redução das consequências da transferência ilícita, como por exemplo, a perda do convívio familiar e sua retirada da escola onde estava habituado. Já no artigo 12º decreta que transcorrido menos de um ano da retirada ilegal da criança a autoridade central respectiva deverá ordenar o seu retorno imediata, exceto quando ficar evidente que a criança se encontra integrada no novo ambiente.[16] O tempo limite estabelecido pelo artigo 12 deverá ser analisado pela Autoridade Central, ou pelo juiz, preliminarmente a qualquer juízo de valor sobre o cabimento do pedido de retorno, uma vez constatado que o pedido se deu antes ou depois do prazo de um ano, visto que as consequências serão diversas. Para o juiz federal Guilherme Bacelar Patrício de Assis “a distinção de tratamento conferido pela Convenção às hipóteses do artigo 12, tem um escopo evidente e inequívoco, qual seja, a impossibilidade de perquirir acerca da eventual adaptação da criança ao novo meio [...].” A primeira parte do artigo 12 traz uma presunção de que o menor ainda não se adaptou ao novo meio social, desta forma deve ser imediatamente devolvido.[17]
O Brasil promulgou a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças por meio do Decreto 3.413/2000, deste modo está obrigado a assumir todas as medidas necessárias para promover a restituição ao país de residência habitual os menores ilicitamente trazidos ou retidos no território nacional, devendo ficar claro que a obrigação de restituir os menores indevidamente retidos no território nacional é do Brasil e não do genitor sequestrador. O procedimento para devolução das crianças inicia com a chegada da solicitação elaborada pelo Estado de residência habitual do menor. No Brasil, cabe a Autoridade Central Administrativa Federal receber e enviar pedidos de cooperação jurídica internacional. Após o recebimento do pedido estando preenchidos os requisitos, a Autoridade Central brasileira – Secretaria de Direitos Humanos - procura resolver o conflito de forma amistosa, para isso, envia uma notificação administrativa a pessoa que detém o menor no Brasil. Não havendo conciliação entre as partes, a Autoridade Central do Brasil encaminha o fato à Advocacia Geral da União para interpretação jurídica e eventual execução da ação judicial cabível. [18]
A Advocacia Geral da União, através de seu departamento internacional analisa os requisitos de admissibilidade do caso e, na falta destes requisitos rejeita o caso comunicando a Autoridade Central Brasileira. Estando completamente preenchidos os requisitos a Advocacia Geral da União se posiciona pela viabilidade do caso. Existindo incerteza quanto ao pedido a Advocacia Geral da União solicita informações complementares à Autoridade Central e pode se posicionar em rejeitar a ação ou pela viabilidade do caso. Resolvendo pela viabilidade da ação é ajuizada uma ação de busca, apreensão e restituição de menor, interagindo a União como sujeito da ação, substituindo a parte interessada, a ação vai tramitar como ação ordinária, com instrução processual, a critério do juiz, com audiência de conciliação e instrução, podendo haver provas testemunhal e pericial. Após o processamento regular do feito ocorre a sentença. [19]
Advindo decisão procedente ao pedido de restituição a Advocacia Geral da União, a Secretaria de Direitos Humanos em conjunto com a Interpol remetem diligencias junto à justiça para que se adotem as devidas precauções para garantir a saúde física e psicológica da criança e uma transferência segura e tranquila ao país de sua residência habitual. [20] No caso de crianças levadas irregularmente do Brasil para outros países signatários da Convenção, cabe a Autoridade Central Administrativa Federal encaminhar o pedido de retorno da criança ou pedido de visitas à Autoridade Central do país no qual a criança encontra-se retida. [21]
É prática comum nos casos de sequestro internacional que o genitor que detenha a criança ajuíze ação de guarda no foro onde fixou residência. Porém, mesmo que a ação de guarda seja julgada procedente esta não afasta a aplicação da Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças, e, se comprovado o transado ilegal do menor para o Brasil, as decisões do judiciário brasileiro a princípio não prevalecerão, tendo em vista o estabelecido na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, Lei nº 4.657/42, artigo 7º [22], bem como o artigo 16º [23] da Convenção, onde fica determinado que sendo informadas as autoridades da retenção ilícita da criança o Estado no qual ela se encontre não poderá deliberar sobre o mérito da guarda.[24] Nas palavras de Jacob Dolinger:
A convenção deixa bem claro que o Estado para onde a criança foi levada, ou onde tiver sido mantida ilegalmente, não tem competência para decidir o mérito do direito de guarda, a não ser quando suas autoridades tiverem decidido não devolver a criança ao país de sua residência habitual, ou se não tiver sido apresentado, em tempo hábil, por qualquer interessado, um pedido de devolução. Uma condição essencial para a devolução da criança é a segurança de que o país da sua origem, ao qual ela está sendo devolvida, aceitará examinar e julgar sobre as conseqüências deste regresso, ou seja, com quem a criança irá ficar na hipótese em que ela não esteja regressando para a casa do genitor sob cuja guarda se encontrava antes do sequestro. [25]
O principio do melhor interesse da criança é reconhecido pela Convenção e pela legislação interna sendo considerado como fundamental para o pedido de restituição do menor nos casos de seu deslocamento ou de sua retenção indevida [26]. Porém, o regresso de um menor não pode ser decretado de forma mecânica nos casos de aplicação da Convenção de Haia. A definição do que atende ao princípio do melhor interesse da criança decorre da análise de vários fatores, incluindo o desenvolvimento do menor, sua idade, maturidade, o ambiente familiar, dentre outros aspectos. Desta forma, as condições para fundamentar o seu melhor interesse devem ser avaliadas em cada caso individualmente. [27]
Na ocorrência do sequestro dos próprios filhos o foco deve ser determinar a primazia do benefício da criança ou o cumprimento rigoroso do que foi fixado judicialmente. O propósito da Convenção de Haia, delimitado em seu artigo 1º [28], é garantir o regresso imediato da criança ilegalmente removida de sua residência habitual, por outro lado, no preâmbulo da Convenção de Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças pode-se observar dois focos centrais, segue transcrito:
Os Estados signatários da presente Convenção, firmemente convictos de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua guarda; desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita; [...][29]
De acordo com a doutrina existe uma aparente contradição entre o preâmbulo e o artigo 1º da Convenção, visto que, enquanto o preâmbulo ressalta o interesse da criança, que pode resultar no não retorno do menor ao seu país de origem, o artigo 1º dá destaque ao dever da imediata devolução da criança ilegalmente retida. Desta forma, cabe ao juiz de cada caso determinar a devolução do menor, ou, em hipótese de a devolução ser prejudicial à criança decidir em contrariedade à devolução. Desta forma, a restituição do menor não deve ser encarada como princípio pleno, pois o melhor interesse da criança é primordial e pode ser fonte de exceção, como observado no preâmbulo da Convenção, baseado em defender os interesses das crianças dos efeitos negativos de sua retenção ao deslocamento ilegal, o que possibilita que um deslocamento ou retenção seja tratado diversamente. [30]
A Convenção prevê em seus artigos 13 [31] e 20 [32], situações que permitem à autoridade competente que não determinem o regresso da criança, levando em consideração aspectos que podem determinar ou aconselhar a manutenção do menor raptado no local e na condição que ela se encontre atualmente. [33] O artigo 13º estabelece que a autoridade do país solicitado não será obrigada a determinar o retorno imediato da criança, quando ficar comprovado que seu tutor no país solicitante não estava efetivamente exercendo a guarda quando da remoção do menor, ou se houver risco de danos físicos ou psicológicos ou de alguma maneira expor a criança a situação inaceitável, ou ainda, quando a criança se negar a voltar tendo esta idade e maturidade suficientes para que sua vontade seja respeitada.[34] Por sua vez, o artigo 20 traz a exceção de direitos humanos, ao estabelecer a possibilidade de recusa do retorno do menor à sua residência habitual quando for evidente que os princípios fundamentais do Estado relativos a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais forem divergentes da ordem pública interna, observando-se a diversidade cultural e filosófica existentes entre os Estados envolvidos.[35]
Ao ratificar a Convenção de Haia sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Menores, assumiu obrigações e deveres no âmbito internacional, que devem ser cumpridos, sob pena de sofrer sanções políticas e econômicas.[36] A cooperação jurídica internacional é fundamental tendo em vista as recentes mudanças tecnológicas e políticas e a facilidade de locomoção de pessoas e bens entre fronteiras têm causado grande interesse por parte dos Estados no estabelecimento de regras e procedimentos específicos que possibilitem e facilitem o acesso à justiça para além das fronteiras. Os atos de cooperação, que poderiam ser vistos como uma violação da soberania de Estados, atualmente, pode ser visto como uma forma de manutenção de um novo conceito de soberania, estabelecido pelas atuais relações entre Estados. Desta forma, o direito e o dever de um Estado soberano na manutenção de sua Justiça permanecem resguardados. Portanto, a cooperação jurídica internacional garante o direito de o Estado e seus cidadãos processarem e julgarem litígios de sua competência, mesmo quando elementos indispensáveis à condução do processo se encontrem em jurisdição estrangeira [37]. A autora Nádia de Araújo afirma o seguinte:
No plano internacional, a cooperação jurídica internacional frequentemente foi objeto de negociações visando o estabelecimento de regras uniformes para a matéria. Essas regras, de origem internacional, são convenientes porque garantem maior rapidez e eficácia ao cumprimento das medidas provenientes de outro país ou endereçadas ao estrangeiro. Destaca-se o trabalho realizado desde o início do século XX pela Conferência da Haia da Direito Internacional Privado, cujos instrumentos mais conhecidos são na área processual e no direito de família e infância. As iniciativas da Conferencia da Haia conferiram o devido peso à cooperação internacional e as convenções ratificadas em seu âmbito impulsionaram a matéria e têm contribuído de forma crescente para a uniformização de procedimentos judiciários e administrativos e para a constante troca de informações entre os estados-membros. [38]
Destarte, deve-se notar a relevância do trabalho desenvolvido pela Autoridade Central em todas as fases de cooperação internacional, abrangendo a chegada do pedido de cooperação até sua devolução ao país solicitante, visando certificar a satisfação e os interesses do Estado solicitante. O trabalho administrativo praticado pela Autoridade Central é bastante diverso, podendo atuar em pedidos que solicitem uma simples comunicação de atos processuais, até a obtenção de uma decisão judicial para atender aos interesses do outro Estado. Deste modo, deve-se compreender a Autoridade Central como órgão que busca a efetividade da cooperação, e não como um órgão que simplesmente envia e recebe documentos, porém a Autoridade Central não é o único ente estatal envolvido na cooperação jurídica internacional. O Ministério das Relações Exteriores, através da Secretaria de Estado das Relações Exteriores e de seus órgãos no exterior, exerce uma relevante função na formulação da política externa referente à cooperação jurídica e na tramitação dos pedidos de cooperação que seguem pelos canais diplomáticos. A Advocacia Geral da União e o Ministério Público, por sua vez, são imprescindíveis para o exercício da representação judicial quando é necessário obter uma decisão judicial em nosso território. O Poder Judiciário, no que lhe concerne, exerce a função de guardião das leis brasileiras e da Constituição Federal no tocante à cooperação internacional. Outros órgãos como Polícia Federal, Receita Federal e Controladoria-Geral da União atuam de modo eloquente, dentro das suas atribuições para que a cooperação jurídica seja executada com êxito.[39]
DESCRIÇÃO FÁTICA E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CASO SEAN GOLDMAN: REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOS.
O Caso Sean Goldman ficou conhecido e causou repercussão no ano de 2009 quando o pai, de nacionalidade americana, David Goldman, acionou o judiciário brasileiro na tentativa de reaver a guarda do filho, Sean Goldman. Conforme vastamente noticiado nas mídias brasileiras e americanas a situação fática em torno desta disputa pela guarda do menor se deu da seguinte forma. A mãe de Sean, Bruna Bianchi casou-se com o americano David Goldman no período em que ambos residiam nos Estados Unidos da América, fruto deste relacionamento, na data de 25 de maio do ano de 2000, nasce nos Estados Unidos a criança Sean Goldman. Posteriormente, em 2004 mãe e filho viajam para o Brasil para passar as férias junto da família materna de Sean, com autorização do pai. No entanto, passados alguns dias após a chegada ao território nacional, Bruna telefonou para David informando que não voltaria aos Estados Unidos e pedindo o divorcio.[1]
Após tomar conhecimento de que Bruna não pretendia mais voltar aos Estados Unidos da América David ajuizou ação na Suprema Corte de Nova Jersey, Divisão de Equidade, Vara de Família, Comarca de Monmouth, na qual, em agosto de 2004, com base na Convenção de Haia, se determinou que a mãe devolvesse imediatamente o menor Sean Goldman aos Estados Unidos”. No entanto, ajuizada Ação de Busca, Apreensão e Restituição de menor em face de Bruna Bianchi no Brasil a mesma restou indeferida uma vez que o magistrado entendeu pela aplicação da exceção contida no artigo 12 da Convenção[2] por acreditar ter ficado evidente que a criança já se encontrava habituada ao seu novo ambiente social. Desta decisão o pai interpôs recurso de apelação que restou indeferido.[3] Assim, interpôs recurso especial alegando ofensa aos artigos 12, 13, 16 e 17, da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.[4]
No tocante a violação do artigo 16 da Convenção menciona que “entre dois ambientes normais ao desenvolvimento do menor, o juiz, quando em jogo a guarda, deverá escolher aquele no qual a criança já se encontra. Quando em jogo o retorno sob a égide do tratado, no entanto, deverá escolher aquele do País de residência habitual”. Em relação ao contido no artigo 13 asseverou que o possível trauma causado pela separação do menor do sequestrador não poderia ser utilizado como base para a aplicação da exceção prevista, sob o argumento de abrir precedentes para novos casos de sequestro internacional de menores. O Ministério Público manifestou-se pelo não conhecimento do recurso especial. Em 26/3/2007, a ministra recebeu correspondência oficial, oriunda da Embaixada dos Estados Unidos da América, assinada pelo Consul Geral, Simon Henshaw, com o seguinte teor:
Apraz-me cumprimentar Vossa Excelência e aproveitar a oportunidade para expressar o interesse da Embaixada dos Estados Unidos da América no caso de retenção, no Brasil, do menor S. R. G., cidadão norte-americano nascido no Estado de Nova Jersey. A Embaixada assegura a esta Corte que não tem conhecimento a respeito de quaisquer impedimentos à entrada da cidadã brasileira B. B. G. nos Estados Unidos da América. Mais ainda, a Sra. B. B. G. dispõe de representação legal nos Estados Unidos da América e tem participado regularmente do procedimento que se desenvolve perante a Corte Superior de Nova Jersey relativo à guarda do menor S. R. G. A Embaixada assegura, ainda, que a Corte Superior de Nova Jérsei e todas as autoridades norte-americanas constituídas são perfeitamente capazes de zelar pelo melhor interesse do menor S. R. G. após seu retorno aos Estados Unidos da América, e que a legislação do Estado de Nova Jersey é toda ela pautada pela proteção ao melhor interesse da criança. Da mesma forma, a Embaixada assegura que, após o retorno do menor S. R. G. aos Estados Unidos da América, a cidadã brasileira B. B. G. terá direito ao devido processo legal no que diz respeito à disputa judicial pela guarda da criança, e que a legislação dos Estados Unidos lhe garante condições de litigar perante a Corte Superior de Nova Jersey em igualdade de condições com quaisquer cidadãos norte-americanos. A Embaixada gostaria também de manifestar sua preocupação com as decisões judiciais tomadas até aqui que negaram a aplicação da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças ao caso da retenção de S. R. G. com fundamento apenas no tempo em que o menor se encontra no Brasil desde a sua retenção. A se considerar que o tempo de tramitação do processo judicial, no Brasil, por si só inviabiliza o retorno do menor com base na Convenção de Haia, então será praticamente impossível que qualquer criança retirada dos Estados Unidos da América retorne. Um precedente dessa natureza autorizaria a negativa de retorno de qualquer menor, por mais ilegais que tenham sido as condições de sua retirada dos Estados Unidos da América, e estimularia justamente a conduta que a Convenção de Haia e seus países signatários pretendem coibir. Conforme a Convenção de Haia determina que a jurisdição seja dada para o local de residência da criança, esperamos que essa Corte decida sobre a questão de jurisdição, deixando a matéria da custódia para a corte apropriada. Finalmente, a Embaixada gostaria de informar que os Estados Unidos da América tem cumprido vigorosamente a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, inclusive no que diz respeito ao retorno de crianças brasileiras retiradas ilegalmente do Brasil. [5]
Ao julgar o recurso especial a ministra Nancy Andrighi apresentou seu voto e garantiu que a decisão exarada no processo em pauta não tinha relação com a questão da guarda do menor e sim quanto ao retorno, ou não da criança aos Estados Unidos. Entendeu a ministra por manter a criança junto com sua genitora no Brasil, uma vez preenchidos os requisitos da exceção contida no artigo 12 da Convenção de Haia. Consignou ainda que é dever dos genitores, na via judicial ou extrajudicial apropriadas, chegar a um acordo para “regularizar a guarda, visitas e todos os aspectos que possam envolver os interesses do menor, de forma a minimizar os efeitos nocivos causados pelo rompimento do casal”. Por maioria a Turma decidiu por não conhecer o recurso especial, desta forma o menor Sean Goldman permaneceu no Brasil até o falecimento de sua mãe, quando novamente ocorreu uma batalha judicial pela posse do menor como será demonstrado a seguir.[6]
Bruna casou-se novamente com o brasileiro João Paulo Lins e Silva, em 2005, e no ano de 2008 veio a falecer em decorrência de complicações no parto da segunda filha Chiara. Nesta época João Paulo ajuíza ação declaratória de paternidade sócio afetiva junto a 2ª Vara de Família do Rio de Janeiro (processo nº 0270466-52.2008.8.19.0001) a qual teve o pedido liminar julgado procedente. [7]
Neste mesmo período a Advocacia Geral da União, em nome da Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF) ingressa com ação de busca e apreensão do menor (processo nº 2009.51.01.018422-0) na 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Inicialmente é deferida a medida liminar que permite que o pai David Goldman visite e pernoite com o menor. Porém, desta decisão é interposto Agravo de Instrumento ao TRF2 o qual suspende em partes a liminar concedida decretando que a visitação inicie na manhã de sábado e termine ao anoitecer de domingo. Todavia, a visitação é frustrada uma vez que João Paulo deixa de comparecer ao local designado para entrega do menor alegando que havia presença ostensiva de repórteres na porta de seu prédio. Novamente interposto Agravo de Instrumento é determinada a realização de estudo psicológico prévio a visitação do menor ao pai, nesta época David Goldman se habilita no processo como assistente da União. Tendo em vista a recusa aparentemente imotivada de João Paulo em apresentar a criança na data da visita o juiz manda que o réu apresente os passaportes de Sean para ficarem retidos na secretaria da vara, da mesma forma que impõe que o menor não saia do município sem autorização judicial, requisita ainda que os oficiais de justiça responsáveis pelo cumprimento do mandado de busca e apreensão do menor certifiquem nos autos quanto às alegações de que havia presença em massa de membros da imprensa na porta da casa do réu no dia estipulado para a visitação. Desta decisão novamente é interposto Agravo de Instrumento por parte do réu, o qual restou indeferido. Os Oficiais de Justiça apresentaram certidão informando que não havia nenhum repórter na porta do prédio e que não visualizaram sequer um aparato de imprensa, ou seja, a rua encontrava-se deserta. Pela União foi requerida a condenação do réu a litigância de má-fé, desta forma o juiz proferiu a decisão que segue transcrita:
iv) condenação do réu, por litigância de má-fé, na forma do art. 17, inciso II, do CPC, por ter alterado flagrantemente a verdade dos fatos, no que tange aos acontecimentos da manhã de sábado, dia 18/10/2008;
v) condenação do Réu por ato atentatório ao exercício da jurisdição, com apoio no art. 14, inciso V e parágrafo único do CPC, face ao descumprimento de decisões judiciais proferidas nestes autos, referentes à visitação deferida ao assistente da União; e
VI) encaminhamento de peças ao Ministério Público Federal, nos termos do art. 40 do Código de Processo Penal, pela prática, em tese, do delito previsto no art. 330 do Código Penal, por parte do Réu. [8]
David formula pedido requerendo o encaminhamento dos autos do processo em trâmite na 2ª Vara de Família do Rio de Janeiro, uma vez que a competência para exame da existência, ou não, de interesse da União, é exclusiva da Justiça Federal, de acordo com jurisprudência sumulada do Egrégio Superior Tribunal de Justiça - Súmula nº 150 do STJ[9]. Destarte, é remetido ofício a 2ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro solicitando a remessa dos autos da ação de reconhecimento da paternidade sócio afetiva. Todavia o juízo estadual recusou-se a prestar esclarecimentos quanto ao caso. Nesta fase processual foi recebido Ofício nº 007041/2008-CD2S, oriundo da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça que buscava informações quanto ao Conflito de Competência nº 100.345/RL suscitado pelo assistente da União David Goldman, oportunidade em que o juízo federal propôs conflito positivo de competência em razão da negativa da vara estadual em remeter os autos da ação de reconhecimento de paternidade sócio afetiva.[10]
O Ministro Relator do Conflito de Competência Luis Felipe Salomão concedeu liminar para sobrestar o andamento de ambos os processos até o julgamento do conflito e designou a 16ª Vara Federal como competente para julgar medidas urgentes. Mais tarde, é noticiada nova decisão informando a designação de audiência de conciliação, bem como invertendo a competência para julgamento de medidas urgentes à 2ª Vara de Família do Rio de Janeiro. Na data de 06 de fevereiro de 2009 foi realizada audiência de conciliação no Superior Tribunal de Justiça em que as partes estabeleceram que o pai, David Goldman, poderia visitar o filho no final de semana próximo com a presença de uma psicóloga, de representantes do Consulado americano e da Autoridade Central Brasileira, e sendo vedada a presença de qualquer veículo de imprensa. Restou pactuado ainda, dentre outras considerações, que caso David queira visitar o filho durante a semana deveria comunicar o advogado de João Paulo com 72 horas de antecedência. Posteriormente, ao votar o Ministro Relator Luis Felipe Salomão ponderou a conexão entre os feitos, Busca e Apreensão e Reconhecimento de Paternidade, reconhecendo que as duas causas tinham o mesmo objeto, ou seja, a guarda do menor Sean Goldman. Considerou ainda a presença da União em ambos os processos, um como autor e no outro como assistente, na forma do artigo 109, III da Constituição Federal, e asseverou ser “imprescindível à reunião dos feitos perante a Justiça Federal”. Neste sentido, o Conflito de Competência foi julgado tornando-se competente a justiça federal para julgar ambos os feitos. [11]
Dando prosseguimento ao processo as partes foram intimadas para informar quais as provas que pretendiam produzir, e neste sentido o réu pugnou a produção de prova oral e documental. Exemplificadamente pediu a expedição de carta rogatória a fim de informar os rendimentos de David Goldman nos últimos cinco anos; requereu que a Receita Federal Americana informasse se o assistente e a empresa Shore Catch Cuide Service LCC estavam devidamente registrados para receber as doações que estavam sendo arrecadadas através do site www.bringseanhome.com; requereu que a autoridade norte-americana a expedisse atestado de bons antecedentes de David; e como prova oral pediu a oitiva de David Goldman bem como do menor Sean Goldman. [12]
Neste passo, foi juntado o laudo técnico pericial onde o menor ao ser questionado se queria ficar no Brasil ou ir morar com o pai nos Estados Unidos respondeu que “Tanto faz”. Destaca-se que na época em que o laudo foi confeccionado o menino Sean tinha recentemente ficado órfão de mãe e provavelmente encontrava-se em momento difícil e sob muita pressão, tanto da família brasileira quanto da família americana. O laudo restou impugnado pelo réu, alegando haver parcialidade das peritas e requereu nova oitiva do menor,[13] no entanto a União e o assistente concordam com o laudo. As peritas manifestaram-se prestando informações complementares e o pedido de nulidade restou indeferido. Opostos embargos de declaração, os mesmos foram desprovidos. Desta forma é interposto novo Agravo de Instrumento que também é negado. [14]
O processo segue com parecer do Ministério Púbico Federal favorável ao retorno do menor aos Estados Unidos. O feito então é concluso para sentença, nesta oportunidade o réu junta ao processo cópias de outro parecer do Ministério Público Federal ofertado nos autos de um agravo de instrumento de uma ação anteriormente ajuizada em face da mãe de Sean também com base na Convenção de Haia, onde o parquet manifesta-se no sentido de que a morte de Bruna não corresponde à extinção daquele feito, uma vez que o direito discutido não seria personalíssimo, concluindo que o processamento desta demanda implicaria em ofensa a coisa julgada anterior. O réu também leva a conhecimento o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4245), pelo Partido Democratas, oposta contra diversos dispositivos do Decreto nº 3.413/2000 que introduz a Convenção de Haia no Brasil. A ação de busca e apreensão é julgada procedente determinando a devolução do menino Sean Goldman ao pai biológico, dentre outras providencias.[15]
Dentre os fundamentos jurídicos que embasaram a decisão o magistrado ponderou que não é possível considerar que a residência habitual do menor seja o Brasil, como fortemente sustentado na contestação, uma vez que já havia ocorrido uma primeira retenção ilícita desta criança realizada por sua mãe e agora realizada por seu padrasto. Neste ponto o juiz Rafael de Souza Pereira Pinto acrescentou o seguinte:
Se a permanência de Sean no Brasil encontrava-se viciada na sua origem, evidentemente, a residência habitual do menor jamais poderia ter sido validamente fixada em nosso País. [...] Mesmo à luz da aplicação da legislação brasileira, verifica-se que o domicílio de Sean, após o óbito de sua mãe, passou a ser, de pleno direito, de seu pai, e não mais aquele em que vinha morando com sua mãe. [...] É nesse sentido a norma do art. 76 do Código Civil brasileiro, in verbis: “Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso. Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; [...] Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.” Pela conjugação das normas acima colacionadas, é forçoso concluir que, a partir do lamentável falecimento da mãe de Sean, o domicílio legal e necessário do menor em questão passou a ser, de pleno direito, o de seu genitor sobrevivente, isto é, o do seu pai. Sendo assim, com a negativa de entrega do menor legítimo detentor de sua guarda, configurou-se, ipso facto, a retenção ilícita do menor, nos exatos termos do disposto no art. 3º, alínea a, da Convenção de Haia. [16]
Sobre a exceção contida no artigo 12 da Convenção de Haia, o magistrado arguiu ser inaplicável ao caso em tela uma vez que a retenção ilícita do menor, objeto da ação em análise teria iniciado no momento do falecimento da genitora do menor, Bruna Bianchi, ocorrendo o ajuizamento da ação de busca e apreensão apenas um mês após a morte da mãe de Sean, o que para o juiz, afasta completamente a incidência do artigo 12 da Convenção de Haia. Asseverou ainda o grande interesse de David no retorno do filho para os Estados Unidos, uma vez que “não satisfeito em ter movimentado as vias oficiais, decidiu contratar advogado particular para representá-lo Brasil”. Aduziu ainda, ser inconcebível que um terceiro, desprovido de poder familiar sobre o menor negue-se a devolver a criança ao pai biológico, sob o argumento de que a criança estaria integrada em seu novo meio. Desta forma, o juiz entendeu pelo retorno imediato do menor, decretando uma série de exigências que deveriam ser cumpridas para a melhor adaptação da criança no território americano. [17] Insatisfeito o réu interpôs Recurso de Apelação que foi recebido apenas no efeito devolutivo, razão pela qual interpôs Agravo de Instrumento. O processo então é remetido ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, porém é indeferido o pedido de antecipação de tutela para suspender a devolução do menor. Tal decisão monocrática é atacada mediante Agravo Interno, o qual começou a ser julgado em 30 de junho de 2009 e teve seu andamento suspenso em virtude do pedido de vista do Desembargador Cruz Neto. [18]
A avó materna de Sean, Silvana Bianchi Carneiro Ribeiro, impetrou Habeas Corpus (nº 141.593 - RJ (2009/0134176-4)) em face de Acórdão da Quinta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que, nos autos do Habeas Corpus nº 2009.02.01.008630-3, denegou o Agravo Regimental interposto contra a decisão monocrática do Relator, que indeferiu liminarmente a petição inicial, mantendo a sentença do juízo federal na ação de busca, apreensão e restituição do menor. A impetrante pugnou pelo “direito do infante de expressar sua opinião acerca de assunto de seu interesse, apontando, dentre outros, os ditames do art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança[19], bem como o disposto no inciso II do art. 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente [20]”. Por fim os ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça negaram provimento ao Habeas Corpus, por unanimidade.[21]
No mesmo sentido, a avó impetrou Habeas Corpus (nº 99.945, Rio de Janeiro) para suspender a entrega do menor ao pai biológico. Aduz ser a decisão contrária à doutrina e jurisprudência, sustenta que o menor é brasileiro nato, tornando a sentença ilícita. Destaca que mesmo que o ato atacado não tenha viés penal, está presente a ameaça ao direito fundamental de locomoção da criança. O relator, Ministro Marco Aurélio asseverou ser adequada a impetração do Habeas, destacando que envolve direito a liberdade de ir e vir de um menor e fundamentou seu voto transcrevendo alguns julgados no mesmo sentido. Já o Ministro Gilmar Mendes julgou ser inadequado o uso do Habeas Corpus para resolver tal controvérsia, votando pela improcedência do Agravo Regimental. Ao fim, após muito debate o Tribunal, por maioria rejeitou o pedido de Habeas Corpus.[22] Da mesma sorte Silvana Bianchi impetrou o Habeas Corpus nº 102.871 – RJ, o qual teve o mesmo desfecho dos demais, restando indeferido.[23]
Mais tarde, em dezembro de 2009, o Ministro Marco Aurélio, ao julgar o Habeas Corpus nº 101.985 – RJ concedeu o pedido liminar suspendendo a decisão do TRF-2 e adiando a viagem do menino para os Estados Unidos. O Ministro entendeu que por se tratar de criança de nove anos, residente no Brasil há quase cinco anos e que revelou a vontade de permanecer com a família materna, há grande risco psicossocial nas idas e vindas do menor. Neste sentido manifestou-se:
Vale notar que o objetivo maior do entendimento entre os países não é outro senão preservar o interesse do menor presente a respectiva formação. Contando a discussão sobre a guarda com cinco anos e com pronunciamentos favoráveis, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, à permanência do menor no Brasil, não haverá prejuízo algum se prevalecer a manifestação da criança de continuar com a família brasileira, o que, aliás, autoriza, ante a própria Convenção de Haia, conclusão no sentido de afastar-se o retorno à origem – artigo 13, letra “b”, parte final - , tudo isso visando ao crivo da mais alta Corte do País no tocante ao alegado conflito entre o ato formalizado pelo Juízo e os ditames constitucionais. 3. Sem adentrar, por ora, o acerto ou o desacerto da longa e cuidadosa sentença proferida pelo Juízo – de 82 laudas – considerados preceitos fundamentais da Constituição Federal e até mesmo o enquadramento do caso nas exceções contempladas na Referida Convenção de Haia, defiro a liminar pleiteada. Suspendo, submetendo este ato ao Plenário, a eficácia da aludida sentença. [24]
Seguido a esta decisão a Advocacia Geral da União e David Goldman ajuízam Mandado de Segurança nº 28.524 – DF, requerendo a revogação da medida liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. O Ministro Cezar Peluzo considerou que “em hipóteses excepcionais é admitida a impetração de Mandado de Segurança contra atos jurisdicionais irrecorríveis e exarados monocraticamente por Ministros do STF.” conhecendo assim, a impetração do Mandado de Segurança. Salientou alguns fundamentos para deferir a medida liminar pleiteada, dentre eles:
Impetração que decidiu situação identidade à contida no HC n.º 99.945/RJ (STF) – pendente de recurso desde agosto de 2009 –, em que se negou seguimento ao habeas corpus por ser este incabível para rever fatos e provas e para servir como meio de reforma de decisões de mérito; (3) ausência de demonstração de ilegalidade ou de abuso de poder exigíveis para a concessão da medida liminar deferida no habeas corpus ora impugnado; (4) inadequação da via estreita do habeas corpus para o revolvimento de fatos e provas, conforme a jurisprudência desta Corte; (5) inadequação da via eleita como sucedâneo de recurso, conforme a jurisprudência desta Corte; (6) existência de sentença e acórdão, que definem no mérito a situação jurídica dos autos, com determinação de entrega imediata do menor S.R.G. ao pai biológico e o problemático tumulto processual evidenciado nos autos. [25]
O ministro rebateu ainda a alegação de que o menor teria manifestado de forma expressa o seu desejo de permanecer no Brasil juntamente com sua família materna, destacando que não é possível verificar qualquer ilicitude na prova pericial, realizada por perito judicial com base em cognição plena de mérito. Asseverou que o julgamento da apelação interposta pelo padrasto manteve a sentença de mérito em todos os seus termos, exceto na forma como seria concedida a tutela antecipada, dispensando a fixação de regime de transição. Destacou, ainda, que o “descumprimento do que foi decidido nas vias ordinárias está comprometendo o Brasil quanto ao regular cumprimento da Convenção de Haia, inclusive com a informação de existir petição junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em relação ao presente caso”. Desta forma, o ministro deferiu o pedido liminar para sustar os efeitos da decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio no HC nº 101.985/RJ, do Supremo Tribunal Federal, restaurando os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região na Apelação Cível nº 2008.51.01.018422-0.[26] Assim, em 24 de dezembro de 2009 o menino Sean Goldman é encaminhado ao consulado americano e embarca para os Estados Unidos com o pai David Goldman.[27]
CONCLUSÃO
O presente artigo apresentou brevemente a Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Menores, promulgada no Brasil pelo Decreto 3.413 de 2000. Inicialmente a Convenção concentrava-se apenas na cooperação jurídica entre Estados. No entanto, atualmente, foge do modelo tradicional das convenções que trazem apenas as leis que devem ser aplicadas aos casos, e apresenta um novo sistema de cooperação, com dispositivos de caráter legislativo, judicial e administrativo. Traz em seu cerne ferramentas para o retorno imediato da criança ilicitamente transferida à sua residência habitual, com um procedimento específico para o retorno do menor, e visa garantir os direitos de guarda e visitação, que devem ser discutidos no juízo de residência habitual do menor.
A operacionalização da Convenção de Haia se dá através das autoridades Centrais. No Brasil esta autoridade é a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. No entanto, para representação em juízo é necessária a atuação da Advocacia Geral da União que representa a União como integrante do polo ativo nas ações de busca, apreensão e restituição de menores. Averiguou-se ainda, a importância da cooperação jurídica internacional, que garante o direito de o Estado e seus cidadãos processar e julgar litígios de sua competência, mesmo quando elementos indispensáveis à condução do processo se encontrem em jurisdição estrangeira.
O segundo capítulo tratou de demonstrar, faticamente, o caso de sequestro internacional envolvendo o menor Sean Goldman. A mãe, Bruna Bianchi, viajou de férias com o filho para o Brasil e aqui estando resolveu que não voltaria aos Estados Unidos. Desta forma, o genitor ajuizou ação de busca e apreensão em desfavor de Bruna, com base na Convenção de Haia. No entanto, a ação restou improcedente, uma vez que os julgadores entenderam pela aplicação das exceções contidas na Convenção. Mais tarde, Bruna casou-se novamente e veio a falecer em decorrência de complicações no parto da segunda filha, Chiara. Neste período, David Goldman, pai do menor, ajuíza nova ação de busca e apreensão, desta vez em face do padrasto de Sean, João Paulo Lins e Silva. Após uma verdadeira batalha judicial o menor teve que retornar aos Estados Unidos para voltar a residir com o genitor.
A Convenção não regulamenta qual genitor deve ter a guarda da criança, mas sim qual o juízo competente para decidir sobre este direito e preconiza em seu preâmbulo a proteção do direito de visitas, deixando registrado em seu artigo 1º o objetivo de fazê-lo respeitar de forma efetiva. O direito de visitas pode ser objeto de pedido de cooperação jurídica internacional e está regulamentado no artigo 21 da Convenção. Desta forma, é preciso ter em mente que o direito de visitas é um direito da criança e que ela tem o direito de conviver com ambos os genitores, mesmo que estes genitores optem por não mais coabitar.
É atribuída à Autoridade Central a tarefa de adotar as medidas para tornar o exercício do direito de visitas viável. A remoção de uma criança de seu meio familiar viola seus direitos fundamentais e, conforme já mencionado, é direito da criança conviver com ambos os genitores, ter ciência sobre a sua origem e ter seus vínculos sociais e familiares respeitados. No caso em análise, Sean, brasileiro nato, uma vez que foi registrado perante o consulado brasileiro, goza de todos os direitos constitucionais, inclusive de proteção diplomática. Após ter permanecido por quase sete anos no Brasil, primeiramente na companhia da mãe e depois do falecimento desta na companhia da irmã, padrasto e avós maternos, teve seu direito violado ao ser mandado de volta aos Estados Unidos. Sean já se encontrava habituado ao Brasil, nem sequer falava inglês, estudava em uma escola conceituada no Rio de Janeiro, tinha amigos e uma rotina estabelecida, hipótese que se encaixa perfeitamente na exceção ao imediato retorno contida no artigo 12 da Convenção de Haia.
No entanto, no momento em que o Brasil ratificou a Convenção passou a ter a obrigação de retornar ao país de residência habitual os menores aqui ilicitamente retidos. Esta obrigação não pertence ao sequestrador, mas sim ao Estado Brasileiro que é contratante e responsável pelo cumprimento da Convenção de Haia. Além disso, o retorno do menor ao seu local de residência habitual não significa que ele vá permanecer para sempre naquele país, significa apenas que as questões relativas aos direitos inerentes à criança serão tomadas naquele juízo, o juízo natural, assim definido pela Convenção. E no caso Sean Goldman, a demora das autoridades brasileiras, em um primeiro momento, em devolver o menino a seu Estado de residência habitual, no caso os Estados Unidos, pode ser caracterizada como uma violação da Convenção.
O Brasil ainda é visto internacionalmente como descumpridor dos preceitos da Convenção. Vislumbra-se do histórico de julgamentos com aplicação da Convenção que a estigmatização do Brasil não decorre das decisões exaradas, mas sim da demora da justiça brasileira para processar e julgar as ações que versem sobre pedidos de restituição de menores. Em geral, essa demora se deve a três grandes fatores, o primeiro diz respeito ao conflito de competências entre a justiça estadual, competente para julgar ações relativas ao Direito de Família, e a justiça federal, a quem pertence à competência para julgar causas que envolvam a União e os tratados internacionais. O segundo problema diz respeito ao despreparo dos magistrados e demais operadores do direito sobre o conteúdo da Convenção. O terceiro é a ausência de previsão interna de um procedimento mais célere, especial para atender as ações envolvendo a Convenção de Haia, já que o rito processual utilizado atualmente é a busca e apreensão de menores.