Um princípio significa o alicerce, a base, são eles que garantem a existência e a aplicabilidade de toda estrutura.
Os operadores do Direito e, os estudantes de graduação cometem um grave erro, ao tratar o estudo dos princípios de forma superficial, tendo em vista sua relevância no sistema normativo. O princípio é o único elemento capaz de influenciar todos os demais: “Nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas” [1].
A boa-fé é um princípio do Direito, utilizada como força integrativa dos contratos, para que estes sejam fielmente cumpridos, exercendo na prática, uma função ética, de conduta adequada, de valor jurídico.
No direito obrigacional, o princípio da boa-fé objetiva, veio para moldar uma nova teoria dos contratos, exigindo das partes, um dever de lealdade, cooperação e transparência absoluta.
O referido princípio é utilizado como força integrativa dos contratos, para que estes sejam fielmente cumpridos, exercendo na prática, sua função ética, de conduta adequada, de valor jurídico.
Embora seja legítimo instrumento para que as riquezas circulem entre os indivíduos, um contrato não pode mais ser analisado sob o ponto de vista individual, sempre se faz necessário, analisar a função social e econômica do mesmo.
Boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro
Desde o início do direito romano (onde grande parte do nosso ordenamento se baseia), havia um interesse em entender determinada conduta das partes, no que diz respeito às relações contratuais e negociais.
Mais tarde, o conjunto de princípios e normas baseados na natureza humana, anteriores à teoria jurídica, conhecido como jusnaturalismo, fez a boa-fé adquirir um novo ponto de vista, diretamente relacionado com a conduta das partes em um negócio; que foi então, chamada de boa-fé objetiva.
O princípio da boa-fé contratual foi expressamente previsto no código civil de 2002, em seu artigo 422, que dispõe:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.
Este artigo nos faz afirmar que, as partes tem o dever de agir preservando o equilíbrio entre seus desejos e as imposições legais, tanto na fase pré-contratual, quanto na contratual. Ou seja, a boa-fé se faz imperativa tanto nas tratativas, quanto na execução e conclusão do negócio.
A ordem de comando contida no artigo 422 impõe inclusive ao juiz, o dever de interpretar e, se necessário for, completar e até corrigir o instrumento, obedecendo à boa-fé objetiva, de acordo com o caso concreto.
Mas não é só, o artigo 113 do código civil coloca o princípio da boa-fé, como uma cláusula orientadora de todas as relações jurídicas, in verbis: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Este dispositivo nos mostra que a boa-fé deve ser observada inclusive na interpretação do negócio, pois do contrário, todo esforço da fase pré-contratual e contratual seria em vão.
A boa-fé objetiva é uma “conditio sine qua non”, uma exigência de lealdade entre os contratantes, totalmente incompatível com condutas abusivas. Isso gera na relação obrigacional, um clima ameno e, de confiança essencial entre as partes.
Outro código do nosso ordenamento, a citar a boa-fé e, utilizá-la como um pilar estrutural, antes mesmo do diploma civil, foi o Código de defesa do consumidor, em seu artigo 4°, inciso III, segundo o qual:
“Art. 4° (...)
III – Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (grifo nosso).
Outro artigo do CDC que traz previsão expressa ao princípio da boa-fé objetiva é o artigo 51, inciso IV, que estabelece como nula de pleno direito, qualquer cláusula contratual que estabeleça “obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou, sejam incompatíveis com a boa-fé ou a iniqüidade”.
O Conselho da Justiça Federal, do Superior Tribunal de Justiça, também aprovou em algumas de suas jornadas, Enunciados que tratam da matéria, como veremos na sequência.
Cumpre salientar, que estas Jornadas são compostas por especialistas do mundo jurídico, que buscam interpretar determinados dispositivos legais e, acabam por isso editar um “Enunciado”; que é um conjunto de argumentos, que visa comprovar a procedência de um direito.
Neste sentido, o Enunciado n° 168 e 169, aprovados na III Jornada de Direito Civil:
“O princípio da boa-fé objetiva importa no reconhecimento de um direito a cumprir em favor do titular passivo da obrigação. O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.
Enunciado n° 363, aprovado na IV Jornada de Direito Civil:
“Os princípios da probidade e confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação”.
Tem-se ainda, o Enunciado n° 27, que assegura:
“Na interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos”.
Deveres anexos e violação positiva do contrato
O princípio da boa-fé objetiva assume a criação de deveres jurídicos, denominados “deveres anexos, que são uma construção doutrinária, segundo a qual, esses deveres “se contrapõem a direitos a favor da outra parte” [2].
Colocar o princípio da boa-fé em prática enseja uma consequência óbvia, que é o respeito das partes aos referidos chamados deveres anexos ao contrato.
Para entender tais deveres, precisamos pensar no contrato, como um instrumento onde há cláusulas nucleares, que detém as principais obrigações das partes e, estão sempre presentes, como por exemplo, as cláusulas que prevêem prazo, condições de pagamento, entre outras.
A boa-fé atinge em cheio o contrato e faz surgir, cláusulas que como o próprio nome diz, devem ser consideradas anexas, marginais, que na maioria arrasadora de vezes, sequer é reduzida a termo.
“São obrigações decorrentes justamente daquela justa expectativa que existe em nossas relações sociais de sempre lidar com pessoas íntegras e probas. São deveres de proteção ao contratante. São deveres que concernem principalmente à segurança do contratante, ao sigilo que resguarda a intimidade e a vida privada do cidadão, à plena informação dos termos contratados, evitando subterfúgios ou penumbras de interpretação no contrato, ao zelo e à lealdade que os contratantes devem guardar um em relação ao outro” – Implicações práticas da boa-fé objetiva (Gustavo Rene Nicolau) {C}[3].
A referida tese dos deveres anexos é também chamada de tese dos deveres laterais, ou até mesmo, dos deveres secundários, posto que, o respeito à exigência de determinada conduta das partes, não exige previsão expressamente escrita.
Descumprir um dever anexo, não significa o inadimplemento central do contrato, ao contrário disso, quase sempre o negócio estipulado é cumprido. O que acaba ocorrendo, é uma transgressão direta à boa-fé objetiva, a um Princípio do Direito, que como vimos até agora, é muito mais importante do qualquer cláusula contratual.
Como já demonstrado ao longo deste trabalho, a boa-fé está vinculada ao plano de conduta do indivíduo, dessa forma, a quebra dos deveres laterais, gera uma nova modalidade de inadimplemento (que não se confunde com a já conhecida inadimplência absoluta, ou relativa) chamada violação positiva do contrato.
E esta violação, implica em responsabilidade objetiva, conforme outro Enunciado da CJF/STJ, sob n° 24, aprovado na I Jornada de Direito Civil:
“Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
A violação positiva pode ocorrer em qualquer fase do contrato (pré-contratual; durante sua execução; ou na pós-contratual). Portanto, durante todo o desenvolvimento de uma relação jurídica, os deveres anexos devem ser observados, tratando-se de um simples processo de colaboração entre as partes.
Boa-fé Objetiva como elemento essencial ao contrato securitário
O Código Civil de 1.916 foi durante anos, o único diploma legal a fazer menção ao instituto e importância da boa-fé, no direito brasileiro. Isso ocorria exatamente, na parte que dispunha sobre contrato de seguro.
O artigo 1.443 do revogado Código previa:
“O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato de seguro a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
Ou seja, embora o legislador da época não tenha inserido uma cláusula geral da boa-fé, que integrasse todos os contratos, no seguro, ela aparece como sendo fundamental ao seu acabamento.
Nesse mesmo sentido, o atual Código Civil, estipulou regra geral sobre boa-fé objetiva, prevista em seu artigo 422. [4]
Além disso, manteve vigente disposição semelhante ao artigo 1.443, apenas com algumas alterações:
“Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios da probidade e boa-fé, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
Fato é que, o seguro tornou-se insumo essencial às relações sociais, acessível à maioria dos cidadãos; ainda mais, por ter se tornado um contrato de adesão, o que facilita sua contratação.
Convém salientar, que o contrato de seguro se divide em duas importantes ocasiões: O momento da proposta e, o da aceitação.
Normalmente, o segurado é responsável pela iniciativa pelo negócio, através da apresentação de uma proposta, que será analisada pelo segurador, manifestando sua decisão posteriormente.
O ritual habitual é que, o segurado envie sua proposta escrita até um segurador, isso quase sempre acontece pelo intermédio de um corretor.
O segurador por sua vez, com base nos dados que lhe foram enviados, promoverá uma análise do risco envolvido, podendo aceitar aquele negócio total, ou parcialmente, ou ainda recusá-lo.
A flexibilidade no momento da contratação, que ocorre principalmente em função dos meios eletrônicos e, a massificação da atividade securitária como um todo, traz como consequência, a necessidade cabal, que as partes contratantes envolvidas na negociação, ajam de forma honesta, com probidade, pundonor e honradez; todas essas características devem revelar a mais estrita boa-fé.
As modernas técnicas e, toda estrutura comercial da atividade securitária impossibilitam a seguradora de verificar a veracidade de todas as informações a que tem notícia, por meio das propostas. Motivo pelo qual, torna-se fundamental que o segurado aja sob a mais estrita boa-fé.
Obviamente, que o mesmo se espera do segurador, uma vez que, nele é depositada toda confiança do negócio.
Muitos doutrinadores consideram a boa-fé como a ALMA contrato de seguro, tamanha é sua relevância!
“A boa-fé no contrato de seguro corresponde a um estado de espírito em harmonia com a manifestação de vontade que vinculou as partes contratantes. É a intenção pura, isenta de dolo, ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte ao engano, ou erro” [5].
Desta feita, pelo princípio da boa-fé as partes se obrigam a atuar com a mais ampla e absoluta retidão na interpretação dos termos contratuais e na concretização dos compromissos assumidos.
A utilidade da boa-fé objetiva surge exatamente da necessidade, de se manter a confiança recíproca dos contratantes, durante toda a vigência do contrato de seguro.