1 INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil é um assunto amplamente estudado em diversas áreas do direito, pois quando o particular é sofredor de algum dano, deve-se indenizá-lo civilmente pelo dano suportado, seja por qualquer das vertentes de responsabilização, a responsabilidade civil objetiva ou pela subjetiva, sendo esta a mais benéfica e aquela a regra.
A teoria clássica da responsabilidade civil (subjetiva) adota a culpa como pressuposto para caracterização. Não havendo culpa, não há responsabilidade de indenizar, o que exige provar-se o nexo do dano e a culpa do agente público. Já a teoria da responsabilidade civil mais moderna (objetiva), não se faz necessário provar a culpa para ocorrer à indenização, apenas o nexo causal.
No presente trabalho será abordada a aplicação da responsabilidade civil do Estado quanto à má prestação do serviço público de saúde, assunto de grande relevância para todos e que sempre está em pauta nos debates e discussões, já que o Estado tem o dever constitucional de prestar serviço público de qualidade, seja ele em qualquer área de prestação de serviço.
A saúde no Brasil hoje é um caso de grande repercussão, devida à prestação inadequada dos serviços e grande orçamento envolvido para este fim. A mídia, em geral, seja ela televisiva ou social, sempre mostram notícias, em sua maioria ruins, sobre a falta de médicos, hospitais ou utilização inadequada dos recursos destinados à saúde, o que culmina numa prestação ineficiente do serviço e situações totalmente constrangedoras e humilhantes para a população. Mesmo sendo direito constitucional garantido, a realidade mostra que a ineficiência persiste e o cidadão sofre cada vez que precisa utilizar algum serviço público de saúde.
O governo, seja ele em esfera municipal, estadual ou federal, tem a obrigação de implantar políticas públicas de saúde para oferecer aos cidadãos serviços de qualidade. Uma das grandes políticas públicas hoje oferecidas no Brasil é o Sistema Único de Saúde – SUS, o qual tem o papel de serviço universal, integral e gratuito.
Com isso, pretende-se demonstrar para a sociedade que se deve preservar o direito constitucional pela prestação de um serviço público de qualidade, pois caso não seja feito, deve-se pleitear indenização para que se repare o dano sofrido pela má prestação do serviço público ou por sua omissão.
O grande problema hoje é a divergência jurisprudencial e doutrinária quanto à aplicação da responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, sendo a primeira mais benéfica para o cidadão, pois não necessita da demonstração de dolo ou culpa para responsabilização do Estado. O objetivo do presente trabalho é demonstrar que o Estado deve aplicar a responsabilidade civil objetiva, ao invés da subjetiva.
2 RESPONSABILIDADE DO ESTADO: Uma compreensão inicial
Sobre a responsabilidade civil do Estado, já na doutrina encontram-se interpretações diversas:
Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 1000/1001), traz que a responsabilidade civil do Estado caracteriza-se pelo dever deste de indenizar os danos patrimoniais causados a terceiros por atos da administração pública, seja por atos omissivos ou comissivos. A responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado é caracterizada pela reparação econômica pelos danos sofridos por comportamentos unilaterais, lícitos ou não, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.
Ainda, no mesmo contexto, Carvalho Filho (2011, p. 499): “A noção de responsabilidade implica a ideia de resposta, termo que, por sua vez, deriva do vocábulo verbal latino respondere, como sentido de responder, replicar.”.
Paulo Nader, quando trata da responsabilidade civil do Estado, em sua obra, diz que: “Na amplitude de suas atribuições, o Estado, ao atuar nas esferas legislativa, executiva e judiciária, é suscetível de causar danos a terceiros, por intermédio dos agentes públicos, hipótese em que se impõe a indenização por força de disposição constitucional.” (NADER, 2010, p. 317).
Este dever constitucional está elencado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, §6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” (BRASIL, 1988).
A responsabilidade civil do Estado foi produto de um processo evolutivo que passou por quatro fases: A Teoria da Irresponsabilidade do Estado, A Teoria da Responsabilidade Civil (subjetiva), A Teoria da Culpa Administrativa ou Culpa Anônima, também conhecida como Teoria da Culpa do Serviço e, por último, a Teoria do Risco Administrativo. Para o conhecimento da evolução história é necessário estudar cada uma dessas fases de evolução da Responsabilidade Civil do Estado (CAMPOS, 2006, p. 615).
Em síntese, é possível perceber que, por mais que o Estado detenha a parcela maior de força, em comparação ao particular, aquele, ao causar dano patrimonial a este, tem o dever de indenizá-lo, seja pela responsabilidade civil objetiva ou subjetiva.
Há duas formas de responsabilidade civil do Estado elencadas na doutrina, a objetiva e a subjetiva. A teoria clássica da responsabilidade civil (subjetiva) adota a culpa como pressuposto para caracterização. Não havendo culpa, não há responsabilidade de indenizar, o que exige provar-se o nexo do dano e a culpa do agente estatal. Já a teoria da responsabilidade civil mais moderna (objetiva), não se faz necessário provar a culpa para ocorrer à indenização.
2.1 A Irresponsabilidade do Estado
Por meados do século XIX, a principal ideia, a qual prevalecia, era que o Estado não tinha o dever de indenizar os danos causados por seus agentes públicos. Na época, a solução era bastante rigorosa para com os particulares em geral, pois obedeciam as condições políticas que eram submetidas naquela ocasião de tempo. O Estado liberal tinha sua atuação bastante limitada, pois quase sempre não intervia nas relações dos particulares (CARVALHO, 2014, p. 554).
Gasparini (2011, p. 1111), traz que a fase da irresponsabilidade civil do Estado vigorou a princípio em praticamente todo o Estado, com ênfase principalmente nos absolutistas. Nestes, era imperioso dizer que a administração pública não tinha a obrigação de indenizar os danos causados por seus agentes, pois, nesta qualidade, não eram capazes de causarem danos aos seus administrados. O fundamento predominante para não responsabilização era o princípio vetor do Estado Absoluto ou Estado de Polícia, segundo tais princípios o Estado não era capaz de causar qualquer dano a quem quer que fosse. A fórmula era exatamente expressa pelas expressões “Le roi ne peut mal faire” e “The King can do no worong”, ou, como se diz no português “O Rei não pode fazer mal” ou “O Rei não erra”.
No entanto, dessas duas máximas, as quais traziam a irresponsabilidade absoluta do Estado, por outro lado podia se dizer que não significava o total desamparo dos administrados. Havia exceções, as quais foram criadas leis para casos específicos, como por exemplo, a lei francesa, que determina a indenização quando os danos eram oriundos de obras públicas e atos resultantes de gestão do domínio privado do Estado.
Neste toar, deve-se considerar o que trata Mello (2010, p. 1009), o qual se posiciona que, de acordo com as frases já conhecidas “Lafemère”: “O próprio da soberania é impor-se a todos sem compensação”; bem como as fórmulas que caracterizaram a irresponsabilidade “Le roi ne peut mal faire” e “The king can do not worong”, que equivale a expressão francesa e inglesa, respectivamente. No entanto, apesar do Estado Absoluto de irresponsabilidade, havia exceções, tais como leis bem específicas, as quais eram previstas explicitamente, na França, por exemplo, havia lei de dano oriundo de obras públicas, disposta pela Lei 28 pluvioso do ano VIII; bem como, a contrário senso, havia também a responsabilização por danos resultantes da gestão do domínio privado do Estado, assim como os danos causados pela coletividade pública local.
A teoria da Irresponsabilidade do Estado foi adotada por quase todos os países do mundo ocidental até meados do século XIX, fundada no conceito, a priori, de Estado Absolutista. Essa teoria, a qual predominava na época, também ficou conhecida como regalista, regaliana ou feudal, na qual não era possível responsabilizar o Estado por atos praticados por seus agentes públicos a terceiros. As condições políticas da época eram propícias para esse tipo de teoria, pois o Estado era claramente soberano, não sendo possível sua responsabilidade, já que o Estado nunca erra (CAMPOS, 2006, p. 616).
2.2 Teoria da Responsabilidade com Culpa
Com o fim da teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado, a qual foi utilizada por muito tempo, passou-se a utilizar a Teoria da Responsabilidade com Culpa. No caso, caso o agente do governo causasse danos aos particulares, o Estado, comprovando a culpa real do agente, deveria indenizar o cidadão, desse modo, passou-se a adotar a doutrina civilista da culpa. Entretanto, era necessário distinguir dois tipos de atitude estatal: os atos de império e os atos de gestão. Caso o Estado viesse a produzir um ato de gestão, ato este produzido por ele mesmo, poderia, caso comprovado, ser civilmente responsabilizado, mas caso fosse hipótese de império, não caberia tal responsabilização. A questão era provar se o ato era de império ou de gestão, na qual se restava muito difícil ainda a responsabilidade civil do Estado pelos atos lesivos praticados por seus agentes (CARVALHO, 2014, p. 555).
Ainda, no mesmo sentido, Gasparini (2011, p. 1112), alega que, ao passo da responsabilidade civil com culpa do Estado, também conhecida como responsabilidade subjetiva do Estado, tomou-se partido quando da influência do liberalismo, que de certa forma tentava igualar o Estado ao particular para fins de indenização. Nesta linha, então, começa o Estado a ser responsabilizado pelos danos causados aos particulares, desde que seja comprovado a culpa ou o dolo dos agentes estatais. No entanto, caso não fosse demonstrado o dolo ou a culpa, o Estado não teria a obrigação de indenizar o particular. Importante ver que de acordo com esta teoria o Estado começa a ser tratado como o particular para fins de indenização.
A teoria da irresponsabilidade do Estado, que vigorou por bastante tempo, deixou de existir sob influência da Revolução Francesa, na qual surgiu a possibilidade de responsabilizar o Estado pelos atos prejudiciais aos direitos dos cidadãos. Apesar de ter sido uma evolução, ainda era uma responsabilização muito frágil. Nesta época, surgiram então na França as chamadas Teorias Civilistas, na qual era possível responsabilizar o Estado sob a égide do direito civil. Aconteceu certa divisão estatal: atos do império e atos de gestão, para que assim houvesse responsabilização do Estado. Aqueles não poderiam ser responsabilizados, mas estes, sim, caso restasse comprovada culpa da lesão por um agente estatal (CAMPOS, 2006, p. 616).
2.3 Teoria da Culpa Administrativa
Com o passar do tempo, a teoria estatal derivada de culpa evoluiu para a teoria da culpa administrativa, também conhecida como teoria da culpa do serviço. O que chama atenção nessa teoria é que, diferente da teoria anterior, que deveria haver a distinção dos atos do império e os atos de gestão, caso o Estado viesse a causar um dano, mesmo sem identificar o agente causador, este deveria ser responsabilizado civilmente, devendo indenizar o particular pela lesão causada. Esta teoria também ficou conhecida como “faute du servisse” – culpa do serviço. Esta teoria surge a partir do serviço público que não funciona, funciona mal, ou funciona atrasado. Basta apenas o particular provar que ocorreu a lesão, e houve culpa do Estado, que este deverá indenizá-lo (CAMPOS, 2006, p. 618).
Também, neste mesmo sentido, diz Carvalho Filho (2014, p. 555/556) que houve uma evolução da responsabilidade do Estado, já que não era mais necessária a comprovação dos atos, se eram do império ou de gestão, eis que manifestas de muitas incertezas. Com tal teoria, que se consagrou com a doutrina clássica de Paul Duez, o qual alegava que quem era o suportador do dano não precisaria mais identificar o agente causador do dano. O pré-requisito era apenas comprovar o mau funcionamento do serviço, mesmo que não fosse possível apontar qual agente era o verdadeiro causador do dano, que ainda assim o Estado incubido de indenizar o particular. A referida teoria ficou consagrada como a culpa anônima ou falta do serviço.
A teoria da falta do serviço poderia ser consumada de três maneiras: a inexistência do serviço, o mau funcionamento do serviço ou retardamento do serviço. Caso fosse comprovado qualquer um destes requisitos acarretaria a existência de culpa por parte do Estado.
A culpa do serviço, portanto, é a obrigação de o Estado indenizar o dano causado se: o serviço não funcionava, ou não existia; o serviço funcionava mal; o serviço funcionasse atrasado. O êxito da indenização ficaria condicionado à demonstração, por parte da vítima, de que houve culpa na má prestação do serviço estatal (GASPARINI, 2011, p. 1113).
2.4 Teoria do risco administrativo
O resultado de toda evolução histórica das teorias da responsabilidade civil do Estado, foi o surgimento da teoria do risco administrativo, atualmente é a teoria adotada no direito moderno. O Estado, por ser o detentor do poder, deve suportar os danos causados aos particulares, por todos os seus serviços prestados, já que no caso o particular é o polo mais fraco da relação. Quando o particular é vítima da ação estatal, não seria justo que a essa pessoa fosse imposto o ônus de provar a existência do dolo ou da culpa do serviço público para então obter eventual reparação dos danos sofridos. Com esta teoria, então, deixou de ter que provar a culpa do Estado para caracterização da indenização (CAMPOS, 2006, p. 619).
É de grande valia ressaltar os ensinamentos de Carvalho Filho (2013, p. 556), o qual alega que, após a evolução da teoria da culpa no serviço, no qual seria necessário comprovar o dolo ou culpa para requerer a indenização do Estado, consagrou-se a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Essa teoria dispensa a comprovação de dolo ou culpa por parte do particular para que se possa recorrer à indenização, basta demonstrar a relação de causa entre o fato e o dano, o nexo causal.
Com essa teoria, a qual é considerada moderna, não há dúvidas de que a responsabilidade civil passou por um grande processo evolutivo, pois garante maior benefício ao particular ou ao lesado.
Vale ressaltar: “Responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-la, basta, pois, a mera relação causal entre o comportamento e o dano.” (MELLO, 2010, p. 1014).
Após perceber a evolução histórica da responsabilidade civil no Brasil é necessário destacar que a teoria do risco administrativo, teoria moderna e de grande relevância, a qual se aplica a responsabilidade civil objetiva do Estado, é mais benéfica para os particulares, pois não faz necessário provar o dolo ou culpa pra que o Estado sofra o ônus de indenizar o particular pela má prestação do serviço público de saúde.
A teoria do risco administrativo, por ser mais benéfica para o particular, deve ser utilizada como parâmetro quando este sofrer dano causado pelo o Estado, pois, como já demonstrado, a referida teoria é mais promissora ao cidadão brasileiro.
3 DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: uma percepção inicial
Na constituição Federal de 1988, no capítulo em que trata dos direitos sociais, em seu artigo 6º, traz a saúde como um direito social de grande relevância. Assim como em seu artigo 196, a saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado que deve garanti-la, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (BRASIL, 1988).
Não apenas nossa Carta Maior, como também a Constituição da Organização Mundial de Saúde, de 1946, na qual diz em seu preâmbulo que a saúde não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade, mas sim em um estado de completo bem estar-físico, mental e social. É direito fundamental de todo o ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição econômica ou social. Sendo que, os governos tem responsabilidade pela saúde de seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1946).
De acordo com Hélio Pereira Dias (2002, p. 17), o direito à saúde, por ser um direito inerente à própria vida do ser humano, tem como base os princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e aos serviços que a promovem, protegem e recuperam.
3.1 Do Sistema Único de Saúde - SUS
O Sistema Único de Saúde – SUS, integra a gama das políticas públicas necessárias à garantia da saúde. Não lhe cabe responder por tudo o que interfere ou condiciona a saúde de uma coletividade, nem é o único sistema, mas um dos principais, o qual é necessário para garantir e assegurar a saúde pública (SANTOS, p. 25/26).
O artigo 200, da Constituição Federal de 1988, descreve as competências do SUS, as quais se podem elencar, em suma: controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (BRASIL, 1988).
Além de embasamento constitucional o SUS também está inserido na Lei nº 8.080/90, o qual apresenta, além da síntese dos artigos constitucionais, as atribuições e objetivos do Sistema único de Saúde, o qual consiste em dizer que tal sistema é integral, gratuito e universal.
3.2 Mínimo Existencial e Aplicação na Saúde Pública
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelece que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Lenir Santos (2010, p. 18/24), diz que, para que uma pessoa possa ter dignidade, deve o estado garantir-lhe pelo menos o mínimo para sua subsistência. É direito constitucional e obrigação do Estado. Não há como se falar em dignidade sem que o Estado proporcione pelo menos o mínimo para que isso possa acontecer.
O Estado deve garantir mínimos existenciais no tocante aos direitos sociais, no qual se encaixa o direito à saúde, com a finalidade de garantir as básicas condições socioeconômicas que influenciam a saúde humana.
Os mínimos existenciais são necessários para a garantia da dignidade. Contudo, por ser o direito à saúde diretamente ligado e vinculado ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, não pode ser tratado como apenas uma “cesta básica” em serviços, pois, caso o ser humano não tenha boa saúde, poderá perder o bem mais precioso, a vida
3.3 Reserva do Possível e Saúde
É de grande valia as colocações de Lenir Santos (2010, p. 127/137), o qual diz que a obrigação do poder público de garantir prestações universais de saúde suscita importante análise sobre sua capacidade econômica e financeira de suportar os respectivos ônus.
A cláusula da reserva do possível, que neste caso desobriga o poder público de atender pretensões que superem suas possibilidades, estaria eximindo o Estado de prestar serviços básicos, como saúde, por impossibilidade de recursos. No entanto, o direito à saúde é fundamental, não devendo ser restringido pela cláusula da reserva do possível. Pois, já não temos qualidade nos serviços de saúde no Brasil, se pudesse ser limitado o serviço iria parar.
O Estado, o qual detém a parcela maior de poder, deve promover sempre o bem-estar de todos e assegurar a dignidade da pessoa humana, o que está diretamente ligado ao mínimo existencial, para que se pessoa garantir possibilidade de subsistência dos seres humanos.
O Estado deve dar prioridade e garantir primeiramente o cesso às condições materiais mínimas de existência no tocante as áreas de saúde, educação, etc. Assim, após se envolver com as prioridades orçamentárias, poderá utilizar o resto dos recursos em outras áreas. Por isso que, no tocante à cláusula da reserva do possível, o direito à saúde deve ser tratado como prioridade.
Apesar da possiblidade de utilização da cláusula da reserva do possível, o Estado estaria frustrando um direito Constitucional de todos, à saúde (SANTOS, 127/137).
Vale ainda ressaltar o Recurso Especial nº 1.185.474 - SC, cujo relator é o Ministro Humberto Martins, vejamos:
[...] A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da “limitação de recursos orçamentários” frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes.
6. "A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2010).
No julgamento do Recurso Especial supracitado, o Ministro Humberto Martins, alega que, a cláusula da reserva do possível não pode ser utilizada como alforria para o administrador, não podendo passar por cima da dignidade da pessoa humana, pois nada justifica e legitima a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar.
Não é justificável então que se utilize a cláusula da reserva do possível para justificar uma não prestação ou uma prestação de má qualidade do serviço público de saúde, pois é dever e obrigação do Estado prestar serviço público de excelência.
4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO QUANTO À MÁ PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE
Como já demonstrado em capítulos anteriores, a responsabilidade civil do Estado é dividida em objetiva e subjetiva, sendo aquela mais benéfica, pois não há necessidade da comprovação do dolo ou culpa para responsabilização, e esta menos, pois necessita exatamente da comprovação do dolo ou culpa para responsabilização do Estado.
Como já é sabido, o Estado tem maior poder e recursos do que o particular, sendo mais que justo aplicar a responsabilidade civil objetiva do Estado quando se tratar de dano sofrido pelo particular.
Há entendimentos diversos quanto à aplicação da responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva, seja por ação ou omissão. A celeuma se destaca quando se trata da responsabilização do Estado quanto à omissão, quando não há a prestação do serviço ou esse serviço é prestado com qualidade inferior àquela que deveria ser oferecida, no caso quando ocorre a má prestação do serviço público de saúde.
O entendimento tanto dos tribunais de segunda instância, quanto dos tribunais superiores, em destaque o Superior Tribunal de Justiça - STJ, há entendimentos diversos, pois se aplica tanto a responsabilidade civil objetiva do Estado quanto à responsabilidade civil subjetiva do Estado em casos semelhantes, vejamos:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ATRASO NO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A PACIENTE ACOMETIDO DE DOENÇA GRAVE. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO ESTADO. INOCORRÊNCIA DO DANO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA. FALTA DE SIMILITUDE FÁTICA.
[...] IV - No caso de ato omissivo praticado pelo Estado, por serviço que não funcionou ou funcionou de forma tardia ou ineficaz, deve-se enquadrar a responsabilidade estatal como subjetiva, mormente não ter sido o autor do dano, sendo necessário, para tanto, a comprovação do comportamento ilícito praticado pela Administração Pública. [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2006).
No julgamento do recurso especial nº 684.906 – SC, o Ministro Francisco Falcão, ao analisar o caso concreto, alegou que em se tratando de omissão do Estado ou mau funcionamento da prestação do serviço público, deve-se aplicar a responsabilidade civil subjetiva do Estado, a qual deve-se demonstrar a culpa ou dolo do Estado para sua responsabilização.
Em outro caso semelhante, no qual o Superior Tribunal de Justiça se posicionou com o mesmo entendimento na aplicação da responsabilidade subjetiva do Estado, vejamos:
ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – ATO OMISSIVO – MORTE DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA MENTAL INTERNADO EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DO ESTADO.
1. A responsabilidade civil que se imputa ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-lhe o dever de indenizar se se verificar dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto.
2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior ou decorrer de culpa da vítima.
3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade objetiva e aqueles que adotam a responsabilidade subjetiva, prevalece na jurisprudência a teoria subjetiva do ato omissivo, de modo a só ser possível indenização quando houver culpa do preposto. [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2005).
A Ministra Eliana Calmon, no julgamento do Recurso Especial nº 602.102 – RS, quando proferiu o seu voto, trouxe à baila a divergência jurisprudencial sobre a aplicação da responsabilidade civil objetiva e subjetiva. Alegou que tal entendimento diverge tanto na doutrina quanto nos julgamentos dos tribunais, ainda mais em se tratando em omissão do Estado quanto à prestação do serviço público de saúde.
Apesar da Ministra ter tratado de ambas as responsabilidades, se posicionou no recurso especial supracitado com a aplicação da corrente da responsabilidade civil subjetiva do Estado, a qual deveria se demonstrar o dolo ou culpa do Estado para indenizar o particular.
No entanto, há posições divergentes das já mencionadas acima, as quais se aplicam a responsabilidade civil objetiva do Estado, vejamos:
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO ORDINÁRIA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA REJEITADA. MORTE DE PACIENTE EM SESSÃO DE HEMODIÁLISE. HOSPITAL ESTADUAL. DANOS MORAIS. INCIDÊNCIA. MANUTENÇÃO DO VALOR. REMESSA NECESSÁRIA PROVIDA PARCIALMENTE. APELO PREJUDICADO. DECISÃO UNÂNIME.
[...] 2 - O cerne do presente apelo se concentra na pertinência da indenização por dano moral e concedida à apelada pelo juízo a quo que entendeu pela responsabilidade objetiva do Estado de Pernambuco na morte do seu filho, ocorrida quando se submetia à sessão de hemodiálise, no Hospital dos Servidores do Estado.
3 - In casu, o Estado através de seus prepostos deixou de propiciar as condições mínimas necessárias ao tratamento do paciente, levando-o, por isso, a óbito. Os documentos colacionados aos autos, às fls. 24⁄28, informam o falecimento do enfermo por choque durante a hemodiálise. Note-se, também, às fls. 29 e 29v, o jornais de grande circulação noticiando o fato ocorrido, equivalente à narração dos autos, acerca da morte dos dois pacientes que encontravam-se ligados à mesma máquina de tratamento renal, apontando problemas no seu funcionamento. Configurou-se, assim, o nexo causal a ensejar o dano moral, conforme o correto convencimento do juízo de piso. Pois bem, a hipótese submete-se ao comando do § 6°, do art. 37, da CF⁄88, que contempla a teoria do risco administrativo, pela qual o Poder Público tem o dever de indenizar os danos que as suas atividades e serviços causarem aos particulares. [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2015).
A Ministra Assusete Magalhães, em decisão de agravo regimental no agravo em recurso especial, a qual manteve decisão do tribunal que aplicou a responsabilidade civil objetiva do Estado em se tratando de má prestação do serviço público de saúde. O tribunal de origem, o qual teve sua decisão mantida em sede de recurso especial, alegou que o Estado, através de seus prepostos, deixou de propiciar as condições mínimas necessárias ao tratamento do paciente – que veio a óbito. Por tal motivo o Estado tem o dever de indenizar, seguindo a teoria do risco administrativo, ou como conhecido, a responsabilidade objetiva do Estado, por suas atividades causarem danos ao particular.
No mesmo sentido, vale ressaltar outro acordão, vejamos:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO SANITÁRIO. INDENIZAÇÃO. CONTAMINAÇÃO POR HEPATITE C EM UNIDADE DE SAÚDE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INTERPOSIÇÃO PELA ALÍNEA 'C'. ART. 255 DO RISTJ. TRANSCRIÇÃO DE EMENTAS. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO. NÃO CONHECIMENTO. RESPONSABILIZAÇÃO DA UNIÃO. ART. 4º DA LEI 4.701⁄65 E ART. 4º, § 1º, DA LEI 8.080⁄90. PROVIMENTO. HONORÁRIOS. AUMENTO. PROVIMENTO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. NÃO CONHECIMENTO. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICA E PROBATÓRIA. SÚMULA 07⁄STJ. PRECEDENTES.
[...] 5. Considerando o provimento do recurso especial no que toca à inclusão da União no polo de responsabilização, localizo proporção de que este pessoa jurídica de direito público também arque com sucumbência em patamar idêntico ao suportado pela HEMOPE. [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2014).
O Ministro Humberto Martins, no julgamento do recurso especial supracitado, além de manter a decisão do tribunal de origem, o qual condenou o Estado do Pernambuco ao pagamento de indenização ao particular pela má prestação do serviço público de saúde, aplicando a responsabilidade civil objetiva do Estado, ainda acrescentou a União no polo passivo da lide para arcar também com os custos da má prestação do serviço público de saúde.
É de grande valia ressaltar que, em ambos os julgados demonstrados acima, os quais foram aplicados à responsabilidade civil objetiva do Estado, os julgadores se preocuparam com o particular, os quais não precisaram demonstrar dolo ou culpa para caracterização do dano.
Ainda, no segundo julgado, o Ministro Humberto Martins, acrescentou a União no polo passivo da lide, pois achou por melhor não deixar que o Estado do Pernambuco arcasse sozinho com o ônus da indenização, o que demonstra claramente que, caso fosse aplicada a teoria da reserva do possível, pelo motivo de o estado do Pernambuco não ter como arcar com os custos, a União poderia arcar, já que detém maior poder aquisitivo.
5 CONCLUSÃO
O Estado brasileiro passou por diversas evoluções jurídicas, uma delas foi o processo de responsabilização deste. O qual partiu com a teoria da irresponsabilidade do Estado, passou pela responsabilidade com culpa, teoria da culpa administrativa e teoria do risco administrativo, sendo este último o mais benéfico para a sociedade, pois sequer precisa provar ter havido dolo ou culpa para caracterização da indenização.
O Brasil, como ficou destacado, passa por crise em diversos setores, em destaque o setor da saúde pública, pois o Estado não tem oferecido tal serviço com qualidade, ou sequer tem prestado, pois muitas vezes se omite na prestação.
Apesar de ser direito constitucional de todos os brasileiros, pois está expresso na Constituição como direito social, e haver políticas públicas de saúde para que seja prestado serviço de qualidade, muitas vezes o particular sofre dados causados pelo o Estado, seja pela má prestação do serviço público, seja pela omissão na prestação.
Quando o Estado causa dano ao particular, neste caso na omissão ou má prestação do serviço público de saúde, este deve ser indenizado. A questão é que os tribunais de segunda instância e os tribunais superiores se divergem quanto à aplicação da responsabilidade, não há um padrão, pois alguns entendem pela aplicação da responsabilidade civil subjetiva, que há necessidade de comprovação do dolo ou culpa para que o Estado possa indenizar, e a responsabilidade civil objetiva, que não há tal necessidade.
O particular, por ser a parte mais fraca na relação, pois em comparação ao Estado possui poder aquisitivo muito inferior, deve ser indenizado de maneira mais consolidada, no caso pela responsabilidade civil objetiva do Estado.
O presente trabalho teve como objetivo demonstrar o porquê deve-se aplicar a teoria do risco administrativo (responsabilidade objetiva), ao invés da teoria da culpa administrativa (responsabilidade subjetiva).
O Estado deve sim ser responsabilizado objetivamente pela má prestação do serviço público de saúde ou por sua omissão. É necessário que os tribunais se posicionem de maneira mais favorável ao cidadão, pois, se o Estado é causador de dano ao particular, que aquele seja responsabilizado de maneira objetiva.