O homem desde que deixou de viver só e passou a se relacionar com o próximo formando uma sociedade necessitou de instituir comandos para regular as várias formas de conduta social. Entretanto, com o avanço social, o Estado como ente regulador, passou a utilizar sua força a fim de fazer valer suas imposições, mesmo que afrontasse qualquer direito instituído a favor do cidadão.
Fez-se necessário ampliar os mecanismos de controle do próprio Estado, a fim de neutralizar seu poder e garantir os direitos inerentes à pessoa humana. Dentre estes mecanismos de controle estatal temos o Mandado de Segurança que passou a ter repercussão em 1215 com a Charta Magna “João sem Terra” (Law of the land), previsto em seu artigo 39, sendo posteriormente utilizada tal menção no Estatuto de Westminster sobre as liberdades de Londres sob a forma de due process of Law, atingindo ao longo do tempo o status de garantia elementar constitucional em favor de qualquer ser humano.
Desde então, as afrontas estatais sobre direitos líquidos e certo realizado pelo Estado passou a ter uma barreira de controle a fim de não permitir o cometimento de injustiças. Entretanto, o Estado sempre procurou de alguma forma mitigar o poderio do “writ” limitando sua viabilidade temporal, impondo-lhe prazo para seu manejo.
A Constituição Cidadã de 1988, ao consagrar os direitos fundamentais, garantiu ao cidadão inúmeros direitos que extrapolam a relação cidadão –estado, conforme bem observa Paulo Bonavides[1],“Com efeito, os direitos fundamentais, ao extrapolarem aquela relação cidadão-estado, adquirem, segundo Bockenforde, uma dimensão até então ignorada – a de norma objetiva, de validade universal, de conteúdo indeterminado e aberto, e que não pertence nem ao Direito Público, nem ao Direito Privado, mas compõe a abóbada de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula” Neste sentido, a fim de resguardar direitos líquidos e certos, não amparados por “habeas corpus” ou “habeas data”, o legislador constituinte originário elevou o Mandado de Segurança ao patamar de direito fundamental, incluindo-o no inciso LXIX, bem como atribuindo-lhe roupagem de cláusula pétrea, conforme artigo 60º, § 4º da CF, sendo, portanto, uma ação processual integralmente constitucional e não só isso, sendo, como os outros “writs” (ação das ações).
Por ser consagrado como direito fundamental, o Remédio Constitucional deve ter eficácia imediata e prática para proteção do cidadão, como bem observa Pinto Ferreira[2] “os direitos do homem nenhuma validade prática tem caso não se efetivem determinadas garantias para sua proteção. As declarações enunciam os principais direitos do homem, enquanto as garantias constitucionais são instrumentos práticas ou os expedientes que se asseguram os direitos enunciados”, ainda o ilustre professor José Afonso da Silva[3]discorre que, “são meios postos a disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando sanar, corrigir ilegalidade e abuso de poder em prejuízo de direitos e interesses individuais” sendo assim, o Mandado de Segurança por estar a disposição do cidadão para provocar o estado a fim de que corrija erro, abuso de poder ou ilegalidade, não pode ser fulminando com prazo decadencial de 120 dias, conforme previsto no artigo 18 da lei 1533/51, que com a promulgação da Carta Magna de 1988, não adentrou a órbita jurídica pela teoria da recepção, tornando ilegal. Entretanto, mesmo ao ser revogado pela lei 12016/2009, tal prazo permaneceu no bojo da nova lei, cuja previsão está no artigo 23, reiterando a inconstitucionalidade , afrontando literalmente a órbita constitucional e a proteção dos direitos do cidadão.
Quando analisamos o prazo previsto no artigo 23 da referida lei, adentramos o cerne da decadência e da prescrição e diante disso apontamos as saudosas lições do eminente Ministro Alfredo Buzaid, que discorre no seguinte sentido:
Sem entrar no mérito dos conceitos de prescrição e de decadência e dos elementos que a distinguem, admitamos, apenas para argumentar, a orientação da doutrina brasileira, segundo a qual a prescrição tem por objeto a ação, enquanto que a decadência extingue o direito ou acolhendo a fórmula de Câmara Leal, “a decadência extingue diretamente o direito e, com ele, a ação que o protege; ao passo que a prescrição extingue diretamente a ação e, com ela, o direito que protege.” Esta distinção, por mais respeitável que seja, dada a importância dos autores que a perfilharam, já não condiz com as tendências do direito moderno europeu e tampouco com o sistema processual vigente no Brasil, que colocou o problema em outros termos. Com efeito, diversamente do que estatui o Código Civil Brasileiro que fala sistematicamente em prescrição da ação (art. 177 usque 179), outros códigos civis (da Itália, Art. 2.934; da República Federativa da Alemanha, § 194; da Áustria, § 1.451; de Portugal, Art. 304) dizem quesão os direitos que prescreve. (in “DO PRAZO PARA IMPETRAR MANDADO DE SEGURANÇA, Revista de Processo, RT, v. 53, p. 101).
É sabido que nos dias atuais, e isso não se tem divergência, de que o Mandado de Segurança é uma ação, seja ela condenatória, declaratória ou constitutiva e que está atrelado aos efeitos da Sentença, entretanto, mesmo sendo uma ação, e uma ação muito mais superior do que as demais, posto ser uma ação eminentemente constitucional, protegido por cláusula pétrea em face da sua disposição no capítulo dos Direitos Fundamentais. Neste passo, se é um direito fundamental, não pode ser fulminado por um prazo, ainda mais exíguo como o previsto no artigo 23 da Lei 12016/2009.
Argumentar-se-ia que toda ação é constitucional, em razão do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto na Carta Magna. É verdade. No entanto, há de se distinguir o direito genérico de ação embutida nesse princípio e as ações que se poderiam denominar de típicas, nominadas ou especiais que a Lei Maior oferece. Dentre elas, são perfeitamente identificáveis o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas-corpus, o habeas-data, a ação popular e assim por diante.
Diante disso, tal prazo de decadência não coaduna com os princípios anexos e satélites constitucionais, uma vez que se estaria a contradizer todo o aspecto normativo maior atribuído pelo legislador constituinte originário no ato da promulgação da Carta Magna.
Outro ponto de analise da Lei 12016/2009, além da inconstitucionalidade perpetrada no artigo 23, a um conflito aparente de norma em seu cerne, ou seja, enquanto a norma que trata do prazo prevê que começa a contar a partir da ciência do ato impugnado, o artigo 3º, parágrafo único da mesma lei dispõe que tal prazo decairá a partir da notificação, demonstrando, claramente, uma incongruência entre as normas reguladoras em si, já que impugnar é totalmente diverso semanticamente de notificar.
Sobre a inconstitucionalidade desse prazo, escreveu o eminente Procurador da República do Rio Grande do Sul Amir José Finocciaro Sarti:
Para quem conhece a longa e penosa história da evolução do instituto, a regra do Art. 18, da Lei nº 1.533/51, desde logo parece constituir-se em verdadeira burla aos princípios e ideais que presidiram a estruturação do mandado de segurança como remédio jurídico constitucional”. Depois, acrescenta: “De que vale erigir-se um instrumento jurídico à magnitude de garantia constitucional se uma simples lei ordinária tem o poder de fulminá-lo literalmente, pelo decurso de um breve lapso de tempo? O remédio jurídico ótimo, constitucionalmente intangível, destinado à proteção sumária do cidadão contra os desmandos da autoridade, passados apenas alguns dias, simplesmente deixa de existir, inevitavelmente aniquilado! O interessado, então, vê-se novamente devolvido à mesma situação de impotência que afligia e angustiava o seu antepassado, naqueles tempos de antanho, atropelado pelos abusos do Poder, não dispunha o indivíduo de outros recursos senão os frágeis remédios ordinários, com os quais era obrigado a resignar-se para postular a tutela jurisdicional de seus direitos, nem sempre eficazmente, como se sabe". Em seguida, arremata: “Em suma: nada parece justificar o estranho preceito do Art. 18, da Lei nº 1.533, seja do ponto de vista lógico, histórico, doutrinário ou meramente pragmático. (grifei)
O eminente ministro CARLOS MÁRIO VELLOSO[4], do Supremo Tribunal Federal, em conferência intitulada “Conceito de Direito Líquido e Certo”, no Curso de Mandado de Segurança em comemoração ao cinquentenário do Instituto, promovido pela Associação dos Juízes Federais, em co-patrocínio com Instituto dos Advogados do Brasil e de São Paulo e Associação dos Advogados de São Paulo, em 1984, já se manifestava pela inconstitucionalidade desse prazo, nos seguintes termos:
Nós todos, advogados, professores, juízes, temos aplicado o prazo de decadência do direito à ação de segurança sem maiores considerações. Parece-me, entretanto, que chegou a hora de indagar: Por que esse prazo de decadência de 120 dias? Qual a sua justificativa? Ora, se o legislador ordinário poderia fixá-lo em 120 dias, poderia fazê-lo, evidentemente, em prazo menor. De outro lado, indaga-se: Se a Constituição institui o mandado de segurança, assentado em pressupostos, seria lícito ao legislador ordinário estabelecer um prazo para o exercício da ação? Parece-me que é hora de darmos resposta às indagações que ora venho a fazer. Parece-me que é hora de indagarmos, numa palavra, se não seria o Art. 18, da Lei 1.533/51, inconstitucional.
Neste sentido, Sergio Ferraz[5], no discurso da inconstitucionalidade do prazo previsto no artigo 18 da lei 1533/51, atual artigo 23 da Lei 12016/2009:
Nada há de estranhável em que o mandado de segurança não esteja sujeito a prazo de impetração: tal é o que sempre aconteceu com o habeas Corpus e, já agora, também com o habeas data, sem falar na ação direta de inconstitucionalidade.
Em suma, parece-nos insustentável o artigo 18 da Lei 1533/51, claramente infringente à matriz constitucional disciplinadora do mandado de segurança: enquanto existir o bem da vida cuja salvaguarda específica o writ objetiva resguardar, caberá o mandado de segurança.
A própria Ordem dos Advogados do Brasil defende a inconstitucionalidade do prazo decadencial na Lei do Mandado de Segurança, na ADI 4296-2009, ao dispor que o artigo 23 da lei 12016/2009, traz restrição intolerável em relação ao inciso LXIX do artigo 5º da Lei Suprema, posto que a outorga direta da prerrogativa de obter a concessão de mandado de segurança para “proteger direito líquido e certo, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”, não condiciona o exercício dessa prerrogativa à edição posterior de lei que imponha a satisfação de condições, inclusive de natureza temporal.
Conclusão
Doravante, concluímos que o prazo previsto no artigo 23 da Lei 12016/2009, é completamente inconstitucional, uma vez que o Mandado de Segurança, por tratar de questões que afronta direito líquido e certo e que imprecinde de provas, não pode ser fulminado por prazo atribuído por lei infraconstitucional, já que tal lei, na chamada hierarquia das normas está na escala inferior à Carta Magna e, portanto, não pode prevalecer, sendo certo que o mandamus por ser a (ação das ações) deve estar a disposição do cidadão para corrigir ato ilegal das pessoas previstas no artigo 1º § 1º da Nova Lei do Mandado de Segurança. E por fim, tal prazo deve ser extirpado da órbita jurídica face à afronta constitucional.