Inquérito Policial deflagrado por autoridade judicial


17/06/2022 às 09h25
Por Ortega, Oliveira e Gomes Sociedade de Advogados

(in) constitucionalidade do artigo 5º, inciso II do Código de Processo Penal

 

Ao que parece, modernamente o ordenamento jurídico penal tem como viga mestra o sistema acusatório. Não se sustenta, pois, em um regime democrático, que o juiz possa exercer funções de acusador, instaurando inquérito e produzindo provas de ofício, já que o órgão acusador, por previsão constitucional, é o Ministério Público.

Parece-me teratológica um magistrado requisitar a Autoridade Policial que dê início ao Inquérito Policial!

É preciso que lembremos do artigo 5º, inciso II, do Código de Processo Penal que vai nos dizer o seguinte, "mediante requisição da autoridade judiciária o inquérito policial será iniciado".

Contudo, o ilustre doutrinador Aury Lopes Jr [1]. (2019) expõe que o art. 5º, I, ao tratar da instauração do inquérito de ofício, está se referindo à autoridade policial da jurisdição territorial onde ocorreu o delito, a qual tem o dever de agir de ofício, instaurando o inquérito. Tal ato é denominando de inquisiti ex officio.

Quanto ao inciso II do art. 5º, temos que o Ministério Público, titular da ação penal, ao tomar conhecimento de fato possivelmente revestido de materialidade criminosa, poderá requisitar da autoridade policial a instauração de inquérito. Renato Brasileiro de Lima [2](2020) afirma que por se tratar de uma requisição, a autoridade policial está obrigada a instaurar o inquérito policial.

Ainda no inciso II do art. 5º, encontra-se uma celeuma sobre a qual se debruça toda a doutrina especializada do direito processual penal, qual seja, a legitimidade da requisição de instauração de inquérito por parte da autoridade judiciária.

É nítido que o Pacote Anticrime (lei 13.964/19) sedimentou em nossa ordem jurídico-penal o sistema acusatório no âmbito processual penal.

Sobre tal situação, irretocavelmente dispõe Aury Lopes Jr. (2019, p. 151):

Em que pese o disposto no art. 5º, II, do CPP, entendemos que não cabe ao juiz requisitar abertura de inquérito policial, não só porque a ação penal de iniciativa pública é de titularidade exclusiva do Parquet, mas também porque é um imperativo do sistema acusatório. Inclusive, quando a representação é feita ao juiz – art. 39, § 4º –, entendemos que ele não deverá remeter à autoridade policial, mas sim ao Promotor de Justiça. Não só porque é o titular da ação penal, mas porque o próprio § 5º do art. 39 permite que o Ministério Público dispense o Inquérito Policial quando a representação vier suficientemente instruída e quem deve decidir sobre isso é o promotor, e não o juiz. Em definitivo, não cabe ao juiz requisitar a instauração do Inquérito Policial em nenhum caso. Mesmo quando o delito for, aparentemente, de ação penal privada ou condicionada, deverá o juiz remeter ao dono da ação penal, para que este solicite o arquivamento ou providencie a representação necessária para o exercício da ação penal.

Como bem discorre Aury Lopes Jr., em homenagem ao sistema processual penal acusatório, é vedada a requisição de instauração de inquérito por parte da autoridade judiciária: se lhe é vedada a mera requisição, é inconcebível a instauração de ofício, seja qual for o contexto, sob pena de resgatarmos o sistema processual penal inquisitório, típico de regimes ditatoriais.

A título de exemplo, há, no Regimento Interno do STF, dispositivo não recepcionado pela Constituição por flagrante inconstitucionalidade, uma vez que prestigia expressamente o sistema inquisitório, violando o art. 129, I da Constituição Federal, vejamos:

“Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro” (BRASIL, 2020). [3]

Sobre o tema, dispõe brilhantemente Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 201):

[...] é fato que o dispositivo em questão não foi recepcionado pela Constituição Federal. Com efeito, essa concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, in casu, no Ministro inquisidor, além de violar a imparcialidade e o devido processo legal, revela-se absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, assemelhando-se à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas; O corolário do sistema acusatório é a distinção das funções de acusar e julgar, sendo das partes a iniciativa probatória. Não se sustenta, em um regime democrático, que o juiz possa exercer funções de acusador, instaurando inquérito e produzindo provas de ofício, já que o órgão acusador por garantia constitucional é o Ministério Público, que é destinatário final do inquérito policial, a quem compete decidir sobre o oferecimento ou não da denúncia, uma vez que figura como o detentor exclusivo da ação penal.

A propósito, vejamos a lição de Marcelo Novelino [4](2016, p. 744):

A Constituição atribui ao Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei ( CF, art. 129, I). Trata-se de uma norma de eficácia contida, com aplicabilidade direta e imediata, cabendo à lei, tão somente, a definição do procedimento a ser seguido. Para obter elementos para esta promoção, cabe-lhe requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais ( CF, art. 129, VIII). Cabe ao Ministério Público não só promover com exclusividade, mas também dar a última palavra sobre a deflagração ou não da ação penal.

Permito-me dizer que se nossa Suprema Corte de Justiça entendeu que o artigo 43 de seu Regimento Interno que prestigiava o sistema inquisitivo não foi recepcionado a luz de nossa Constituição Federal de 1988, com mais razão o inciso II do artigo 5º do Código de Processo Penal também não pode ser aceito como recepcionado considerando o atual sistema acusatório no âmbito processual penal vigente.

O sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui, há uma separação das funções de acusar, defender e julgar. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. Com o objetivo de preservar sua imparcialidade, o magistrado deve deixar a atividade probatória para as partes. [5]

Apesar de o Código de Processo Penal fazer menção à possibilidade de a autoridade judiciária requisitar a instauração de inquérito policial, pensamos que tal possibilidade não se coaduna com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal. Num sistema acusatório, onde há nítida separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o juiz requisite a instauração de inquérito policial, sob pena de evidente prejuízo a sua imparcialidade. Portanto, deparando-se com informações acerca da prática de ilícito penal, deve o magistrado encaminhá-las ao órgão do Ministério Público. [6]

Dentre as funções institucionais constitucionalmente previstas ao Ministério Público, encontra-se a de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais, nos termos do inciso VIII do art. 129 da Constituição Federal.

Note-se que as providências investigatórias têm como destinatário o Ministério Público, e não o magistrado, porquanto é aquele o titular exclusivo da ação penal pública, nos termos do inciso I do art. 129 antes mencionado: São funções do Ministério Público, (...) promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

De sorte que a requisição de instauração de inquérito policial, pela autoridade judiciária, conforme previsto no inciso II do art. 5º do CPP, há que ser tida como não recepcionada pela nova ordem constitucional, seja em face da titularidade exclusiva da ação penal pelo Ministério Público, a quem, então, são dirigidas as peças investigatórias, seja por força da característica da imparcialidade da jurisdição!

Tanto é assim que, mesmo em casos nos quais o Ministério Público requer o arquivamento das peças de inquérito, divergindo o magistrado, não poderá indeferi-lo de plano, devendo encaminhar a questão à decisão do Procurador Geral de Justiça, nos termos do art. 28.

Ou seja, ainda que o magistrado divirja do pleito de arquivamento, cabe à instituição do Ministério Público dar a última palavra a respeito.

Durante a fase investigativa, não há atuação jurisdicional, a não ser excepcionalmente, em casos que digam com medidas subordinadas à cláusula de reserva de jurisdição, como interceptações telefônicas, quebra de sigilo, busca e apreensão, constrição da liberdade do indivíduo, dentre outras.

O Estado Democrático de Direito Brasileiro privilegiou o sistema acusatório, no qual estão perfeitamente delineadas e individualizadas as funções de acusar, defender e julgar.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se posicionou neste sentido, trancando inquérito policial instaurado em razão de requisição do juízo impetrado. A ordem foi concedida para o fim de anular o inquérito instaurado, por falta de legitimidade do requisitante, em face da nova sistemática constitucional que exige a adequação do disposto nos artigos 5º, II, e seu § 3º e artigo 40, todos do Código de Processo Penal, em termos de iniciativa do Judiciário na matéria. Incidência dos artigos 5º, LV e LVII; 127, VII e VIII, 144 §§ 1º, 4º e 5º, da Constituição Federal (HC 0174-RJ, DJE 31.12.91).

A incursão do titular da jurisdição na seara alheia da persecução penal, sobre não ser recomendável em face da proibição legislativa, afeta o princípio da imparcialidade do juiz, que o legislador procurou reservar, como garantia para uma melhor distribuição da justiça.

A requisição, como noticia criminis oficial, só está legitimado a promovê-la quem esteja investido de titularidade da Ação Penal, visto que a finalidade de abertura de inquérito policial deve residir no ministrar elementos probatórios, aptos a influírem na formação da opinio delicti do acusador, ao contrário da instrução criminal, que é atividade processual impulsionada no escopo de ensejar a base probatória do judicium causar a ser proferido pelo magistrado. Tanto é correta e coerente tal assertiva que o pedido de devolução de inquérito policial à policia judiciária deve ser submetido ao parecer do Ministério Público, posto que o titular da ação penal pública poderia prescindir das novas diligencias aventadas.

A respeito do tema, já se manifestou o E. Supremo Tribunal Federal, como segue:

Resolução nº 23.396/2013, do Tribunal Superior Eleitoral. Instituição de controle jurisdicional genérico e prévio à instauração de inquéritos policiais. Sistema acusatório e papel institucional do Ministério Público. 1. Inexistência de inconstitucionalidade formal em Resolução do TSE que sistematiza as normas aplicáveis ao processo eleitoral. Competência normativa fundada no art. 23, IX, do Código Eleitoral, e no art. 105, da Lei nº 9.504/97. 2. A Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal. Precedentes. 3. Parâmetro de avaliação jurisdicional dos atos normativos editados pelo TSE: ainda que o legislador disponha de alguma margem de conformação do conteúdo concreto do princípio acusatório e, nessa atuação, possa instituir temperamentos pontuais à versão pura do sistema, sobretudo em contextos específicos como o processo eleitoral essa mesma prerrogativa não é atribuída ao TSE, no exercício de sua competência normativa atípica. 4. Forte plausibilidade na alegação de inconstitucionalidade do art. 8º, da Resolução nº 23.396/2013. Ao condicionar a instauração de inquérito policial eleitoral a uma autorização do Poder Judiciário, a Resolução questionada institui modalidade de controle judicial prévio sobre a condução das investigações, em aparente violação ao núcleo essencial do princípio acusatório. 5. Medida cautelar parcialmente deferida para determinar a suspensão da eficácia do referido art. 8º, até o julgamento definitivo da ação direta de inconstitucionalidade. Indeferimento quanto aos demais dispositivos questionados, tendo em vista o fato de reproduzirem: (i) disposições legais, de modo que inexistiria fumus boni juris; ou (ii) previsões que já constaram de Resoluções anteriores do próprio TSE, aplicadas sem maior questionamento. Essa circunstância afastaria, quanto a esses pontos, a caracterização de periculum in mora. ( ADI 5104 MC, Relator (a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014)

Em situações em que o magistrado requer o início do Inquérito Policial, é, ao segundo o que entendo, flagrante a inconstitucionalidade e ilegalidade da medida tomada pelo juízo de primeiro grau, é imperioso, nesses casos, o trancamento do inquérito policial deflagrado como medida de justiça em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana.

 

  • DIREITO PENAL
  • PROCESSO PENAL
  • CONSTITUCIONAL

Referências

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.

[3] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf. Acesso em 02.mar.2022.

[4] Novelino, Marcelo. Curso de direito constitucional. - 11. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2ª edição. Juspodivm. Salvador, 2017, página 18.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2ª edição. Juspodivm. Salvador, 2017, páginas 70-71.



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