RESUMO
O presente trabalho abordará questões a respeito da efetividade na preservação do patrimônio cultural, dando enfoque a marcos históricos em relação à intervenção estatal, a atividade da União na realização de medidas legislativas em matéria cultural e a apresentação das diversas discussões que surgem a partir de debates no ambiente acadêmico, decisões jurisprudenciais e a partir de diálogos que surgem na sociedade, decorrente da diversidade de situações proporcionadas por tal bem jurídico. Tenta-se esclarecer algumas indagações sobre o tema, propondo mostrar quais os órgãos e institutos encarregados da salvaguarda, os meios e programas usados e as decisões acerca do mesmo.
PALAVRAS-CHAVES: Patrimônio Cultural; Preservação; Efetividade Legislativa.
INTRODUÇÃO
Levando em consideração a historicidade de cada país, pois, na individualidade dos mesmos, encontra-se agregado os costumes e culturas, foi visto que no Brasil ao decorrer do seu processo de desenvolvimento, ouve uma neutralização oriunda de sua colonização e por governos autoritários, onde, os patrimônios históricos e culturais foram considerados como ultrapassados, que não expressavam a importância merecida, que com o passar do tempo essas marcas históricas foram se apagando com a negligência do seu próprio povo e trazendo outras de acordo com a modernidade.[1]
No entanto, com o passar de épocas, a valoração do patrimônio cultural veio a se efetivar, dando autenticidade a essa questão e incluindo os bens matérias e imateriais em uma constituição, e no Brasil esse reconhecimento se deu, com a carta magna de 1934, tratada com maior relevância na constituição federal de 1988.
Detectando a importância e a necessidade de proteção desses bens, por conta de grandes avanços tecnológicos, no qual a troca de informação, o intercâmbio cultural, é mais presente na vida das pessoas, chama a atenção à necessidade de valorização da cultura de uma nação ou comunidade pelo seu próprio povo, por ser uma forma de relato da cultura e da história da região através da arquitetura do espaço físico.
A proteção do meio ambiente cultural, propriamente o imaterial que é focado em nosso estudo, concretizada com maior eficácia pelo instrumento do registro, e através de órgãos incumbidos dessa fiscalização, é uma das maneiras de manter viva a história e de representar para as gerações futuras a sua essência de viver, de respeitar e de conhecer suas origens.
O patrimônio cultural representa a essência. Está baseado em crenças, experiências e formas de expressão, que revelam as nossas características, e as tornam individualizadas no mundo, pois esse valor cultural, simbólico, revela-se através de rituais, festas religiosas, manifestações literárias, musicais e inúmeras atividades dotadas de singularidade e fluidez natural.
1. IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO DECORRER DA HISTÓRIA
A relevância no tratamento das questões voltadas à preservação do patrimônio cultural se desenvolve no decorrer do século XX. Os marcos-históricos revelam a importância de dar autenticidade no tratamento de tal questão, quando observada à proteção em âmbito constitucional por algumas nações, podendo destacar como primordiais no contexto internacional: a Constituição Mexicana de 1917 e a Alemã de 1919, e na esfera nacional, com a Magna Carta de 1934.
Pode-se destacar como órgão relevante no tratamento da guarda destes bens, com objetivo de garantir a paz, realizando ações ativas entre as nações, promovendo entre ambas uma cooperação intelectual, acompanhando o desenvolvimento mundial e auxiliando os Estados-Membros na busca de soluções para os problemas que desafiam nossa sociedade, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
O patrimônio cultural material constitui-se através de seus bens físicos, como estruturas arquitetônicas, sítios arqueológicos, pinturas, esculturas, sendo que este tipo de patrimônio se subdivide em móvel e imóvel. O patrimônio cultural móvel é aquele que pode ser transladado de um lugar a outro, como no caso de ferramentas, documentos, livros, obras de arte, peças arqueológicas, mobiliário, objetos religiosos, vestuário e tantos outros exemplos. O patrimônio cultural imóvel é constituído por bens intransferíveis, são os que não podem ser mudados de lugar, pela impossibilidade ou porque isso modificaria por completo o seu significado original. Estão dentro deste grupo os sítios arqueológicos, edificações históricas, espaços públicos, estradas e outros[2].
Pode-se enfatizar que a importância na preservação desses bens materiais é consolidada frente à natureza representativa, por “testemunharem” os acontecimentos do passado, traduzindo-se em lembranças para atualidade, permitindo a geração de investigações, de estudos que identifiquem os hábitos, os costumes da época. Primando por salvaguardar essas lembranças, os museus reúnem diversos destes bens históricos, realizando práticas de catalogação, de estudos aprofundados, reunindo no mesmo ambiente físico, objetos com particularidades semelhantes, promovendo conceituações e expondo-os como meio de identificação do seu conteúdo histórico.
Retomando o histórico, na consolidação dos Estados Nação (séculos XVIII e XIX) a cultura e seu patrimônio aparecem como identidade e fortalecimento dos laços de um povo que unifica os habitantes de determinado território. É desse movimento que surgem os museus de antiguidades com ambições imperialistas e “universalistas” tais como o Louvre na França ou o museu Britânico na Inglaterra. No Brasil, um exemplo de réplica dessa lógica européia é o Museu do Ipiranga ou Paulista, que serviu de palácio imperial e ressurge posteriormente como museu, como forma de resgatar uma soberania originária, neste caso não só nacional, mas de supremacia regional do Estado de São Paulo. (GIMENES, 2011, p. 12)
Além das ações de preservação proporcionadas pelos museus, uma atividade de categoria local, há as estimuladas pela Unesco, de essência global, assinalando quais bens são considerados como patrimônio cultural da humanidade. Essa identificação poderá ser alterada ante a discordância das nações. Acerca dessa temática José Soares de Sousa Neto (2012, p. 15) relata:
Em 1972 na XVII reunião da UNESCO, é aprovada a convenção para a proteção do patrimônio cultural e natural mundial. A recomendação de 1972 da UNESCO não incluiu os bens imateriais na definição de patrimônio cultural da humanidade, trazia uma concepção restrita aos bens móveis e imóveis. Tal ato provocou nos países em desenvolvimento um descontentamento, e liderados pela Bolívia, no final da década de 1980, solicitaram a UNESCO estudos sobre formas jurídicas de proteção as manifestações da cultura tradicional e popular.
Depois de várias convenções organizadas por diversos países referentes à lentidão em incluir e valorizar os bens culturais imateriais em seu texto, a UNESCO, enfim gera uma perspectiva de efetividade na proteção destes bens. (op. cit. ano 2012, p. 16):
O reconhecimento dos bens imateriais como integrantes do patrimônio cultural pela UNESCO só se deu 17 anos após a convenção de 1972, quando publicado a recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular no ano de 1989. Este documento norteou-se na importância social, econômica, cultural, política e no papel histórico que a cultura tradicional e popular possuem para os povos frente a possibilidade de extinção dessas formas de culturas com o não acolhimento de políticas de preservação e proteção por parte dos Estados.
A nível nacional, com a Constituição de 1934 há o reconhecimento da União, Estado e Município protegerem ao patrimônio cultural. O artigo 10 prevê: “Compete concorrentemente à União e aos Estados”[3], complementado pelo seu inciso III: “proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte”[4]. E por fim, o Artigo 148 declara: “Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual”[5].
Nas constituições federais brasileiras sucessivas, essa tutela aprimorou-se, mas foi com a Constituição Federal de 1988 que houve tratamento inovador. Passa a incluir o patrimônio cultural como um bem brasileiro, não apenas regional ou municipal, bem como promove ações de salvaguarda diante do risco de perdas irreparáveis. Tratando não somente dos bens tangíveis ou materiais (edifícios, obras de arte), como dos intangíveis ou imateriais (relativos às formas de expressão, às criações artísticas, científicas, tecnológicas, entre outros costumes que fazem parte desse âmbito cultural).
As produções legislativas espelham transformações que ocorrem na sociedade, são estratégias para aperfeiçoar o gerenciamento do Estado, à administração patrimonial e ao controle dos bens móveis e imóveis. Nesse cenário de mudanças, o legislador pode se valer de um olhar prospectivo, preocupando-se amplamente com as interações, as culturas, o comportamento humano, por ser este um grande agente capaz de modificar os hábitos sociais.
A Constituição Federal de 1988 permitiu uma ampliação e reconhecimento da força normativa e vinculante dos direitos fundamentais, garantiu ao patrimônio cultural uma estabilidade temporal e uma importância política, social e científica, conseguindo positivar e guardando a perpetuação dos bens culturais tangíveis e intangíveis. (op. cit. ano 2012, p.32):
Tendo o status de direitos fundamentais, devem ter eficácia imediata. Recebendo a devida atenção que merecem, através de garantias, entre as quais se destacam: 1) proteção especial quanto a supressão do ordenamento, proteção esta exercida pelos tribunais ordinários e constitucionais por meio de julgamentos especiais preferenciais e do chamado recurso de amparo; 2) aplicabilidade imediata do ponto de vista de eficácia jurídica, bem como proteção contra a doutrina que defende a existência de normas fundamentais programáticas; 3) do conteúdo essencial, uma vez reconhecidos solenemente, os direitos são decisões que as maiorias parlamentares não podem tocar. Essas garantias que têm os direitos culturais os caracterizam como direitos fundamentais. E possuem como objetivo principal assegurar a efetividade dos direitos que protegem, resguardando-os de ações danosas ou omissões a sua efetivação.
O patrimônio cultural em especial o imaterial, tem ganhado eficácia quando diz respeito à sua proteção em questão formal, principalmente em virtude do processo de evolução histórica, do reconhecimento do conceito de patrimônio cultural. No cenário contemporâneo, houve uma crescente evolução sendo reconhecido como direito fundamental.
Outra inovação, refere-se as influências da modernidade tecnológica e científica, muitos Estados passaram a criar organizações que estimulam a população a aderir à proposta de preservação e manutenção do patrimônio. Percebe-se então o uso dos artifícios tecnológico como meio sintetizador a promover o diálogo entre as esferas geradoras de fenômenos sociais, políticos e econômicos no intuito de proteção patrimonial. No entanto, o que compromete o desenvolvimento de tais projeções é o diminuto grau de relevância considerada pela iniciativa privada, deixando referidas práticas ao encargo da iniciativa governamental.
2. FERRAMENTAS JURÍDICAS DE CONTROLE LEGÍTIMO DO AMBIENTE CULTURAL IMATERIAL
Quando se fala em bem cultural, imagina-se a princípio algo palpável, dotado de valor econômico, pois todo bem é objeto de propriedade. Porém, tais estão fora do comércio. Estes bens são divididos em materiais e imateriais, nos quais os primeiros são palpáveis e os segundos não. Todos os bens culturais são objetos de grande importância, mostrando-se capazes de contextualizar fatos presentes, os quais tiveram essência motivadora passadas. Em sua totalidade, são eles dotados de parcelas imateriais, quando levado em conta sua carga valorativa. No entanto, o objeto de maior análise para o pretenso estudo são os bens culturais de característica imaterial, os quais se tornam mais complexos em relação à efetividade de proteção, intentando o impedimento para que estes não venham a ser deteriorados.
Com a necessidade cada vez mais presente de valoração e efetivação de proteção do ambiente cultural, a atual Constituição (1988), principiando por um favorável tratamento exigido da sociedade em geral diante o respeito, cuidado e preservação deste meio cultural, que se mostra fundamental para a análise, postura e desenvolvimento em aspectos gerais da Nação. Nesse sentido, as palavras de André Viana da Cruz, (2005, p. 1):
A Constituição Federal de 1988 considera patrimônio cultural os bens de natureza material e imaterial, inclusive as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver. Mas não raro vê-se enaltecida a proteção apenas do bem cultural tombado, e, não obstante o acentuado valor cultural de determinado bem, se lhe mitiga proteção adequada. Isto porque existe uma concepção patrimonialista a valorar todos os objetos de direito.
A assembleia constituinte de 1987/88 detectou a importância e uma extrema necessidade de inclusão destes bens em uma Constituição para uma maior proteção aos bens culturais, expandindo o conceito de patrimônio cultural e aderindo os bens de natureza imaterial como parte complementar de seu texto. A diversificação cultural existente no país permitiu que se manifestasse a capacidade de o patrimônio cultural imaterial simbolizar-se como uma nova maneira de entendimento e de características do povo, fundamentada pelo mesmo. Diante das ideias de Viviane Magno, (2014, p. 2):
Seu reconhecimento oficial apenas foi possível após a adoção de categorias de seleção mais abrangentes por dois marcos jurídicos essenciais. O primeiro, a amplificação inédita da compreensão de cultura positivada nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, especialmente no tocante à previsão de bens materiais e imateriais como formadores do patrimônio cultural brasileiro. E, segundo, a doravante regulamentação deste último artigo, pelo Decreto n° 3551 de 04 de agosto de 2000, cuja redação instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e a criação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
Essa expressão e manifestação cultural já eram consideradas importantes por aqueles que as exerciam. Contudo, integralizar o rol dos patrimônios culturais do país significa dizer que lhe foi atribuída uma classe jurídica, ou seja, certificar oficialmente um determinado bem como patrimônio cultural, adotando prerrogativas que se direcionem ao cuidado destes bens por parte do Estado.
Dessa maneira, o Estado percebe um importante valor cultural e simbólico em diversos objetos de dimensões culturais. Essa qualificação valorativa se dá baseada em premissas presentes nas leis, constituições, regulamentos institucionais específicos, os quais aspiram uma determinada noção impositiva de princípios fundamentados como corretos para exercício de proteção.
Até recentemente, o IPHAN vinha privilegiando em suas ações obras de arte como artefatos, bens naturais e edificações de valor histórico, estético ou paisagístico, no entanto, com o crescimento dos movimentos sociais, na década de 1980, que reivindicava direitos civis e sociais, houve uma ampliação na lista de referências simbólicas no patrimônio cultural, (PEREIRA, 2012, p. 9).
Através de medidas garantidoras presentes nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, responsáveis por tratar de prerrogativas direcionadas para o acesso da sociedade aos bens culturais, incentivando a valorização, preservação da memória e prática dos mesmos, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação. Para se alcançar a efetividade necessária pregadas nos referentes artigos, se apropriam de medidas compostas por órgãos institucionais, podendo ressaltar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como principal responsável pela gestão e preservação do patrimônio histórico e artístico do país.
Atualmente, a escolha dos bens simbólicos é feita por um conselho consultivo, presidido por um integrante do IPHAN e composto por membros dos seguintes órgãos: Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB; Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos (Brasil); Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB; Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama; Ministério da Educação; Ministério das Cidades; Ministério do Turismo; Instituto Brasileiro de Museus – Ibram; Associação Brasileira de Antropologia – ABA.
As formas de efetividade praticadas por estes órgãos se mostram presentes através das ações descritas no §1º do art. 216, CF, dentre essas, dar-se-á maior ênfase para análise o instrumento do registro, mas se faz imprescindível perpassa rapidamente, pelos outros institutos.
O tombamento, é uma intervenção na propriedade pelo Poder Público, este tem o interesse de proteger um determinado patrimônio, que por vinculação a fatos memoráveis da história ou por seu excepcional valor arqueológico ou etnológico, bibliográfico ou artístico, apresenta-se como objeto relevante, proporcionando uma manutenção da memória nacional. O procedimento à realização do tombamento pode ser voluntário, compulsório ou de ofício. O voluntário ocorre quando o próprio proprietário do bem pede para que o Poder Público realize o tombamento ou quando o proprietário aceita a notificação recebida para que o bem seja tombado. Já na forma compulsória, o proprietário fica insatisfeito com a notificação, mas o Poder Público não deixa de tombar mesmo contra a vontade do dono do bem. Esta modalidade difere do tombamento de ofício, pois este incide apenas sobre bens posto apenas no intuito de públicos enquanto aquela se destina exclusivamente a bens particulares, bastando à Administração, no procedimento de ofício, notificar à entidade pública a qual pertence o bem que será tombado[6].
Essa tutela praticada pelo estado atua precipuamente, sobre um valor e um sentido atribuídos e não necessariamente sobre o bem em si. Através do instrumento da vigilância, essa proteção consiste, na atuação dos órgãos responsáveis pela tutoria dos bens culturais, podendo ser exercida pelo poder público ou pelo cidadão. Esse instituto proporciona ao Estado, fiscalizar a condição do bem cultural tombado, a qualquer momento, considerando os direitos do proprietário.
Outra ferramenta de proteção a esses bens é a desapropriação, a qual é praticada com base no interesse público sobre os mesmos, protegendo-os. Impondo sempre limitações aos proprietários, para que não usufruam de maneira incompatível, colidindo com as medidas necessárias para preservação contra ocorrências de danos a sua estrutura, a qual se encontra gravada por valores que expressam as características de determinada época, enaltecendo a importância de sua conservação.
Outro digno instrumento de salvaguarda destes bens é o inventário, que comporta fundamentalmente ao aparelho de catalogação de bens com objetivo de sua posterior tutela, tem como intenção a produção de conhecimentos, para dar auxilio as atividades que motivam a proteção dos bens culturais, tangíveis e intangíveis. Praticado pelo poder público ou pelo privado, como meio de organização, de conhecimento sobre o patrimônio e servindo de apoio para o planejamento de políticas culturais. Sobre essas ideias a respeito destes sucessivos instrumentos administrativos de proteção aos bens culturais, esclarece André Viana da Cruz (2005, p.9).
Para proteger tais bens, o modo mais tradicional é o tombamento, mas a constituição assegura, em seu art.216, § 1°, que o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, também por meio de inventários, registros, vigilância, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação. Embora a norma constitucional trate de patrimônio, a consideração dada vai além do que permite o vocábulo, pois resta consagrada uma universalidade destinada a uma coletividade.
Diante destes instrumentos administrativos de proteção explicitados acima, é importante discorrer com mais ênfase sobre o registro, que seria a consequência do inventário e que juntos cuidam da proteção do patrimônio imaterial. Há a possibilidade de às vezes surgirem de maneira dificultosa, por conta de sua singularidade natural e por seus bens possuírem um notável caráter de fluidez e intangibilidade. Dessa maneira, os instrumentos de proteção devem ter a capacidade de salvaguardar a tutela do patrimônio correspondente.
Levando em consideração essas ideias, tem-se como entendimento, que o inventário e o registro (CF, atr. 216,§1°) formam as principais técnicas de instrumentalização, que permitem a identificação das manifestações culturais pelos órgãos públicos, garantindo assim a sua preservação e reprodução. (op. cit. ano 2012, p.42).
Buscando uma consolidação de pesquisas legislativas que levassem a proteção do patrimônio imaterial, a UNESCO aprovou a recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular em 15 de novembro de 1889. Essa carta internacional sugeriu aos interessados na cultura popular, criar sistemas de identificação e registro geral da cultura tradicional e popular, de acordo com o item “b” da recomendação.
O registro se efetua através da catalogação do bem cultural intangível em livro próprio, realizado junto com o Instituto Histórico e Artístico Nacional- IPHAN, órgão ligado ao ministério da cultura. De acordo com as características do bem a ser acautelado, ele poderá ser inscrito no livro de registro de saberes, que serão inseridos como dados nos inscritos: o conhecimento e modos de fazer enraizados no cotidiano; livro de registro de celebrações religiosas, que serão inscritos: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; livro de registro de formas de expressão, que serão inscritos: as manifestações literárias, musicais, plásticas, ciências e lúdicas; livro de registro dos lugares, que serão inscritos: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzam práticas culturais coletivas. Tendo como outras opções, a criação de outros livros para inscrever bens de natureza imaterial que não se encaixam nos livros já existentes. “Nessa linha, em 4 de agosto de 2000, o decreto n° 3551 instituiu o registro como instrumento específico de reconhecimento e tutela dos bens culturais de natureza imaterial enquanto patrimônio cultural brasileiro”[7].
No âmbito internacional a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), através de vários decretos e programas, praticam e norteiam a atuação dos órgãos nacionais, em conjunto com a constituição federal do Brasil, em relação à tutela do patrimônio cultural imaterial, atuando de forma protetiva e garantindo aos portadores desse patrimônio a condição de manter viva a transmissão e a produção desses saberes.
3. PATRIMÔNIO CULTURAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como já foi mostrado no decorrer do presente trabalho, tenta-se esclarecer a quão importância tem o patrimônio cultural, deixando esse de ser unicamente uma acumulação de obras e conhecimentos produzidos por uma determinada sociedade, o qual tem notável relevância ao proporcionar determinado esclarecimento acerca de costume próprios de cada conglomerado cultural, para se tornar um bem jurídico exigível num Estado Social e Democrático de Direito.
Por ser um bem jurídico salvaguardado pela União através da Constituição Federal, e tendo-o como objeto de uma pesquisa jurisprudencial ressaltando sua relevante importância por atribuir ao poder público, a responsabilidade de garantir e promover esse Direito. Através disso, tenta-se propor uma visão de como o STF age interpretando e efetivando o direito à cultura, haja vista, que o embasamento será a Constituição de 1988.
De acordo com os argumentos postos acima, serão expostos alguns casos, tratados pelo STF relacionado à intervenção estatal com o intuito de promover a cultura, fato abordado mais especificamente no art. 216, § 3º, o qual estatui que “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”.
A ADI 1.950/SP, primeiro caso a ser abordado, trata sobre a lei da meia entrada. Tal fato pretendia anular essa lei (que dispõe sobre o pagamento da metade do valor real da entrada em casas de diversão, esporte, cultura e lazer por estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino), por questionar na intervenção indevida do Estado na economia, em contraposição ao princípio da livre iniciativa empresarial.
Em julgamento, o processo obteve duas faces distintas de argumentação. A primeira, sustentada pelos ministros Eros Grau e Carlos Britto, defendem a constitucionalidade da meia entrada. O ministro Eros Grau argumenta que a intervenção do Estado na economia seria legítima, sendo confirmado com seus dizeres:
Afasto desde logo a alegação de inconstitucionalidade formal. Bem ao contrário do que sustenta a requerente, não apenas a União pode atuar sobre o domínio econômico, isto é, na linguagem corrente, intervir na economia. Não somente a União, mas também os Estados-membros e o Distrito Federal, nos termos do disposto no artigo 24, inciso I, da Constituição do Brasil, detêm competência concorrente para legislar sobre direito econômico. Também podem fazê-lo os Municípios, que, além de disporem normas de ordem pública que alcançam o exercício da atividade econômica, legislam sobre assuntos de interesse local, aí abrangidos os atinentes à sua economia, na forma do artigo 30, inciso I, da CB/88 (ADI 1.950-3 SP, 2005, p. 7).
Já o Ministro Carlos Britto, fundamentou seu voto no argumento embasado no direito à cultura. Nesse, a meia entrada foi tratada como um instrumento de incentivo à participação dos estudantes a esse universo, pois através do preço de entrada reduzido, o acesso se torna facilitado. Diante disso, une-se a parte da Constituição que trata da cultura, exposta nos art. 215 e 216, com a que aborda de quem é a competência referente à legislação, disposta no art. 24, IX, demostrando que também compete ao Estado legislar sobre cultura. O ministro em seu voto, afirma:
“os bens e valores culturais, em regra, estão franqueados à exploração econômica, à iniciativa privada. Mas são bens que se põem, ao mesmo tempo, como dignos de proteção estatal, seja do ângulo da sua produção, seja do ângulo da sua divulgação. Isso está expresso no art. 215 da Magna Carta, a sinalizar, para mim, que esses bens e valores culturais, mesmo economicamente explorados, têm de cumprir uma função social mais forte” (ADI 1.950-3 SP, 2005, p. 15).
A segunda linha de argumentação encontra-se formada pelos então ministros Cezar Peluso e Marco Aurélio. Na visão de Peluso, a meia entrada não se apresenta como um incentivo à cultura direcionada a tais grupos (estudantes), mas, como uma intervenção do Estado na economia dos determinados estabelecimentos, ao impor um valor prefixado aos empresariados.
“essa norma está interferindo em contratos, está tabelando prestações de contratos. Para um universo determinado de contraentes, é verdade, mas está tabelando, ao prescrever que um universo tal de contraentes paga a metade do valor dos contratos [...] o Estado não está proporcionando nada, está obrigando o particular a proporcionar”.
Já o Ministro Marco Aurélio, acredita que o Estado tem competência para legislar a respeito, no entanto, conflita com o fundamento da livre iniciativa. Alega que se encontra presente uma desvantagem significativa, por não haver uma razoabilidade diante a imposição de preços do Estado aos estabelecimentos particulares, não os diferenciando ao tomar por parâmetro sua estrutura econômica. Pode-se ocorrer uma perda econômica nas empresas mais fragilizadas, as quais correm o risco de resultar em falência. O nobre Ministro, em decisão final, julga, também, improcedente pelo vício formal, tendo em conta o voto que profere no caso citado pelo ministro Cezar Peluso. Na decisão, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação, nos termos do voto do relator, vencidos os Senhores Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso.
O tombamento, medida que foi mencionada linhas acima com certo detalhamento em sua finalidade, é alvo de discussões no STF, alguma delas pode ser exposta através do Recurso Extraordinário (RE) 219.292-1 MG. Esse, que questiona a constitucionalidade do tombamento de uso.
Tenta-se chegar a alguma decisão a respeito do uso do patrimônio tombado para a realização de distintas atividades, sendo defendido o argumento para direcionar essas ações a fins culturais e artísticos. No caso específico analisado, o fato questionado é decorrente da ação da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, a qual pretendeu destinar o uso de dois imóveis tombados (Cine Pathé e Brasil) para a realização de atividades artístico-culturais.
Mediante prova, apresentam-se documentos acostados às fls. 21 e 22 dos autos, respectivamente as Notificações nº 06/94 e nº 07/94, os quais transcrevem que o Conselho deliberou no tombamento integralmente os referidos imóveis, bem como seu uso para atividades artístico-culturais[8].
O que se questiona, é a ofensa dessa prática ao texto descrito no art. 216, IV e seu § 1º da Constituição, pelo fato da preservação do patrimônio cultural ser realizada apenas pelo tombamento[9], sem falar nada sobre o uso após a realização de tal ação. E ao estímulo dos mesmos órgãos na competência de manutenção de espaços destinados às manifestações artístico-culturais[10]. Em suma, a questão principal trazida pelo acórdão não diz respeito ao ato do tombamento em si, mas à restrição ao direito de uso da propriedade por parte do proprietário, a partir do tombamento de um bem. O relator expõe com clareza sua posição:
Em razão do exposto, dou provimento ao presente apelo e concedo a segurança impetrada, reformando a r. sentença de 1º grau, para que deixe de constar dos atos de tombamentos dos referidos imóveis a sua expressão final: “... bem como o seu uso para atividade artístico-cultural” (RE 219.292-1 MG, 1999, p. 11).
A corte alegou que a Constituição não previu o tombamento de uso, não podendo a Administração tombar o uso de um determinado bem desapropriado para realização de determinadas atividades, no entanto, tem o poder de reprimir formas de utilização que causem danos e gerem sua descaracterização.
Analisando ambos os casos, pode-se observar a importância que o patrimônio cultural exerce no campo do Direito, sendo promotor de discussões com linhas argumentativas distintas com o objetivo de se chegar a um consenso tido como justo diante aos parâmetros de constitucionalidade.
CONCLUSÃO
Com o distanciamento da sociedade em relação aos seus bens culturais que contribuíra na formação da própria personalidade, surgiu a necessidade de uma intervenção dos movimentos políticos que usaram ferramentas por meio de artifícios legais para estabelecer uma proteção diante de um abandono executado transcendentalmente pelo povo ao patrimônio cultural.
Esses instrumentos legais tiveram seu ápice no decorrer do século XIX, onde notou-se tal alienação cultural em relação aos bens de natureza material e imaterial.
A cultura imaterial, que diz respeito a aquela porção intangível da produção cultural dos povos, ganhou espaço por meio da intervenção jurídica no intuito de garantir a permanência, mesmo que em menor grau, desses costumes lapidados de geração a geração no decorrer do tempo. Sua importância tem sido levada com ênfase por diversos institutos, dispondo a criar medidas que estimulem a proteção e progressão desse patrimônio, proporcionando a livre participação social.
Tais institutos usufruem de diversos artifícios que proporcionam a objetivação de suas responsabilidades, como: inventários, registros, entre outros. Além do qual se integram nesse campo, o âmbito jurídico através da elaboração de normas constitucionais, que apresentam uma maior efetividade em relação ao objetivo final, a proteção patrimonial a cultura.
O direito à cultura é um direito constitucional que exige uma ação positiva do Estado, cuja realização postula uma política cultural oficial. Consequentemente, quando esse assunto é transferido ao Judiciário, é primordial um tratamento cauteloso em cada caso concreto, cuja decisão deverá apresentar um estudo aprofundado, cuidadoso sobre o referido bem, buscando proteger o sentido cultural dos valores expostos, em diversas manifestações de um povo.
REFERÊNCIAS
PEREIRA, Elizabeth da Silva. Patrimônio Cultural Imaterial: Uma reflexão sobre o registro do bem cultural como forma de preservação. CELACC/ECA – USP – 2012. P. 7, 8 e 9.
PORTUGAL, Ana Raquel. Patrimônio Cultural (Editoria Opinião). Site EDUTEC - UNESP. , 2012.
GIMENES, 2011, p.12
NETO, José Soares. A proteção jurídica do patrimônio cultural imaterial brasileiro. 2012, p. 15.
CRUZ, André Viana. Bens culturais e racionalidade moderna. 2005, p.1, p. 9.
HOLANDA , O tombamento como instrumento de preservação do patrimônio histórico e cultural. 2010, p. 2.
ADI 1.950-3 SP, 2005, p. 7, p.15.
RE 219.292-1 MG, 1999, p. 05, p. 11.
Art. 216, § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventário, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
Art. 216, IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais.
[1] PEREIRA, Elizabeth da Silva, Patrimônio Cultural Imaterial: uma reflexão sobre o registro do bem cultural como forma de preservação, p. 7, 8 e 9, 2012.
[2]{C} PORTUGAL, 2012, Patrimônio Cultural (Editoria Opinião). Site EDUTEC - UNESP. , 2012.
[3]{C} Constituição Federal de 1934.
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6]{C} O tombamento como instrumento de preservação do patrimônio histórico e cultural, HOLANDA, 2010, p. 2.
[7]{C} op. cit. , 2012, p. 43
[8]{C} RE 219.292-1 MG, 1999, p. 05.
[9]{C} Art. 216, § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventário, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
{C}[10] Art. 216, IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais.