EXISTE REPRESENTAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO EM UM DIREITO PENAL GARANTISTA COMO O BRASILEIRO?


24/09/2020 às 16h58
Por Advocacia Túlio Zanelato

1. O DIREITO PENAL DO INIMIGO

 

1.1 Origem

 

Para que se entenda perfeitamente a origem da teoria do Direito Penal do Inimigo, primeiro é importante tecer breves comentários sobre a teoria do Direito Penal Máximo.

 

No Direito Penal Máximo, o Direito Penal é utilizado como meio de controle social, devendo, segundo Rogério Greco:

 

"Preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas" (https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819866/direito-penal-do-inimigo).

 

Nesse sentido, tem-se que o Direito Penal estaria amplamente presente na sociedade, atuando como legítimo meio de controle das condutas humanas, sob o pressuposto de que, quanto maior e mais agravante fosse a incidência da lei penal sobre as condutas consideradas ilícitas, menos elas ocorreriam.

 

Sendo assim, a fim de cumprir o citado papel, pode-se dizer que a metodologia do Direito Penal Máximo é estruturada em sete eixos, quais sejam:

 

“a) ampliação das leis penais; b) ampliação das penas de prisão e com longa duração; c) regime de execução mais rígido; d) tolerância zero; e) redução da maioridade penal; f) pena de prisão para usuários de drogas e: g) direito penal do inimigo” (https://www.douradosagora.com.br/noticias/entretenimento/direito-penal-maximo-e-o-controle-social-jose-carlos-de-oliveira-robaldo).

 

Pois bem, conhecendo a base do Direito Penal Máximo, é possível introduzir o pensamento sobre o direito criado pelo Professor alemão Günther Jakobs, este que, futuramente, veio a desenvolver, a Teoria do Direito Penal do Inimigo.

 

Jakobs, citado por Rogério Greco (GRECO, 2015, p. 03), discorrendo sobre a finalidade do direito penal, afirma que:

 

"O direito penal não atende a essa finalidade de proteção de bens jurídicos, pois, quando é aplicado, o bem jurídico que teria de ser por ele protegido já foi efetivamente atacado (...) o que está em jogo não é a proteção dos bens jurídicos, mas sim, a garantia da vigência da norma, ou seja, o agente que praticou uma infração penal deverá ser punido para que se afirme que a norma penal por ele infringida está em vigor".

 

Tendo isso em consideração, e principalmente analisando a eficácia do Direito Penal, na segunda metade da década de 1990, Jakobs criou uma nova ramificação da Teoria do Direito Penal máximo, o Direito Penal do Inimigo.

 

Através dessa teoria, Rogério Greco afirma que Jakobs:

 

"Procura traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão e um Direito Penal do Inimigo. O primeiro, em uma visão tradicional, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes; o segundo, intitulado Direito Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado" (https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819866/direito-penal-do-inimigo).

 

1.2 Conceito

 

O Direito Penal do Inimigo é aplicado, portanto, àquelas pessoas que se afastaram do âmbito da proteção do direito, nomeados por Jakobs como os “inimigos” do Estado.

 

Jakobs, citado por Almério Vieira de Carvalho Júnior em artigo científico encontrado em http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11101&revista_caderno=3, delimitando quem seriam os citados inimigos, afirma que são os que “se tem afastado, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa”.

 

Com efeito, esse inimigo, diante dessa teoria:

 

"É considerado uma coisa e é anulado, não é considerado mais um cidadão e nem mesmo um sujeito processual. Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), mas sim um procedimento de guerra" (https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5138/Direito-Penal-do-inimigo).

 

Sendo assim, o Direito Penal do Inimigo pode ser conceituado, de forma concisa, como a divisão da aplicação do direito, sendo aplicado um conjunto de regras ao cidadão respeitador das normas jurídicas e outro conjunto de regras ao inimigo, sendo este desprovido de garantias e direitos fundamentais, ao quais, em tese, o inimigo abriu mão.

 

1.3 Críticas à Teoria

 

Devido ao extremismo da Teoria do Direito Penal do Inimigo, sobram críticas em meio a doutrina quanto à sua aplicabilidade.

 

A primeira que se pode reconhecer é a dificuldade de se limitar quais seriam os ditos inimigos, aos quais deve ser aplicado o conjunto de normas mais rígido, diverso do comum, aplicado aos demais cidadãos.

 

Isso ocorre porque, apesar de Jakobs ter fixado conceitos no que se refere a quem seria considerado o inimigo, se limitou a definições vagas, imprecisas, como “afastamento do Direito”, de forma que não ficasse determinado de forma clara quais seriam os inimigos e quais seriam os cidadãos.

 

Garcia Martín, citado por Bruno Batista da Silva em artigo científico encontrado em https://jus.com.br/artigos/59189/criticas-ao-direito-penal-do-inimigo, afirma que:

 

"Se o Direito Penal do Inimigo se constrói reconhecendo seus destinatários como sendo não-pessoas parece óbvio que tais indivíduos deveriam existir em uma realidade prévia ao próprio Direito Penal do Inimigo, pois caso contrário o conceito de inimigo seria autorreferente".

 

Em segundo lugar, pode-se citar a violação de garantias e imposição de normatização excessiva que ocorreria em um ordenamento regido pelo Direito Penal do Inimigo, o que o tornaria incompatível com o Estado Democrático de Direito.

 

Isso porque, no Estado Democrático de Direito, ao contrário do que ocorre no Direito Penal do inimigo, o Direito Penal, em razão do princípio da intervenção mínima, deve ser utilizado como ultima ratio, ou seja, é a última trincheira no combate aos comportamentos indesejados (CUNHA, 2018, p. 34).

 

Nesse sentido, Tavares, citado por Bruno Batista da Silva em artigo científico encontrado em https://jus.com.br/artigos/59189/criticas-ao-direito-penal-do-inimigo, afirma que:

 

"Dentro da concepção do Estado de Direito, essa escolha corresponde àquela que menos ônus traga ao cidadão. Exige-se, nessa medida, a escolha do meio menos gravoso, do mais suave para alcançar o valor desejado. Nesse passo, não se questiona a escolha do fim, mas apenas o meio utilizado em sua relação de custo/benefício".

 

2. GARANTISMO PENAL – TEORIA E ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

 

Explicados os pontos relevantes para o presente artigo no que tange ao Direito Penal do Inimigo puramente considerado, explana-se agora o Garantismo Penal, considerado como antagonista da primeira teoria demonstrada, a qual, mais a frente, será a ela contraposta.

 

O garantismo penal, também conhecido na doutrina por direito penal garantista, pode ser visto como uma categoria do direito penal, ou seja, um modelo pelo qual o direito penal deve ser enxergado.

 

O garantismo penal foi idealizado por Luigi Ferrajoli, renomado jurista italiano, e consiste, primordialmente, em um modelo no qual “a Constituição é o fundamento de validade de todas as normas infraconstitucionais, que deverão respeitar os direito fundamentais nela consagrados” (CUNHA, 2018, p. 40).

 

Nesse sentido, no garantismo penal todas as normas infraconstitucionais devem retirar seu fundamento de validade da Constituição, entretanto, ao contrário do que normalmente se encontra nos modelos comuns, a regra vai além. A Constituição, além de fundamento de validade, seria o principal instrumento para interpretação do direito infraconstitucional. Vale dizer, todas as normas infraconstitucionais devem ser lidas e interpretadas em face à Constituição, a fim de preservar todas as garantias que essa garante ao indivíduo.

 

No que tange às garantias constitucionais, segundo Rogério Sanches Cunha (2018), quando analisadas sob a ótica garantista, essas se dividem em duas categorias, as primárias e as secundárias. São primárias as que constituem-se em limites e vínculos normativos por ela impostos ao exercício dos poderes por parte do Estado, com a finalidade de proteger os direitos individuais, sendo consideradas como garantias secundárias os mecanismos de reparação, a serem utilizados pelo indivíduo posteriormente, no caso de alguma violação das garantias primárias.

 

Ferrajoli, quando idealizou o garantismo penal, fixou sua base em dez axiomas, considerados pelo autor como premissas nas quais um sistema penal eficaz deveria seguir, sendo que cada um se relaciona com um princípio, são eles:

 

"Não há pena sem crime (princípio da retributividade); não há crime sem lei (princípio da legalidade); não há lei penal sem necessidade (princípio da necessidade); não há necessidade sem ofensa a bem jurídico (princípio da lesividade); não há ofensa a bem jurídico sem ação (princípio da exterioridade da ação); não há ação sem culpa (princípio da culpabilidade); não há culpa sem processo (princípio da jurisdicionalidade); não há processo sem acusação (princípio acusatório); não há acusação sem provas (princípio do ônus da prova); não há prova sem ampla defesa (princípio da falseabilidade)" (https://dizuza.jusbrasil.com.br/artigos/366909725/os-dez-axiomas-do-garantismo-penal).

 

No Brasil, pode-se dizer que, pelo menos em tese, o ordenamento jurídico é garantista, uma vez que o sistema processual penal disposto tanto na Constituição quanto no Código de Processo Penal prevê uma série de direitos fundamentais que devem ser respeitados pelo Poder Público na persecução penal, seja em fase investigativa ou em fase processual. Ressalta-se que, além dos direitos em si, a Carta Maior prevê diversos remédios contra a violação desses, que funcionam como instrumentos de garantia do seu exercício, como o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança (CRFB, art. 5º, LXVIII e LXIX).

 

Por fim, ressalta-se que é com essa premissa que será exposto, mais adiante, a dicotomia entre a teoria do direito penal do inimigo com o direito penal garantista, a fim de analisar ambas as teorias, fixando eventuais compatibilidades e notórias oposições, indicando, ao final, se existe, no ordenamento jurídico brasileiro, considerado como garantista, pelo menos em tese, alguma incidência do Direito Penal do Inimigo.

 

 3. GARANTISMO E DIREITO PENAL DO INIMIGO: POSSÍVEL INCIDÊNCIA

 

Conforme exposto, o Direito Penal do Inimigo e o Garantismo penal se demonstram como dois antagonistas no módulo como deve ser enxergado e aplicado o Direito Penal. Enquanto o movimento garantista prevê diversas garantias e princípios protetivos da dignidade do acusado, o Direito Penal do Inimigo retira deste até a condição de humano, o transformando em apenas uma coisa, um objeto na qual será aplicado o direito.

 

Nesse sentido, pode-se afirmar que, em regra, não é compatível a aplicação, num plano garantista do Direito Penal, da Teoria do Direito Penal do Inimigo.

 

Ocorre que, devido ao dinamismo que possui o Direito Penal Brasileiro, a doutrina e jurisprudência já apontaram, ao longo dos anos, ocasiões em que se poderia enxergar o Direito Penal do Inimigo no nosso ordenamento jurídico. Serão demonstradas, a seguir, 2 hipóteses em que se discute se há ou não há incidência do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro.

 

A primeira incidência citada é também a que há menos divergência, devido ao seu teor punitivo e exclusivo: trata-se do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).

 

O RDD foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 10.792/2003, que alterou a Lei nº 7.210/1984, famosa Lei de Execução Penal, tendo sido incluído no art. 52, que assim dispõe:

 

"Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol".

 

Analisando o comando legal, percebe-se que o legislador relativizou diversos princípios presentes no nosso ordenamento jurídico, os quais são fruto do Direito Penal Garantista, prevendo modo de cumprimento de pena severo e rudimentar de preso que comete novo crime e venha a ocasionar subversão da ordem pública ou disciplina internas.

 

Ressalta-se que o legislador não se preocupou em determinar de forma clara quais seriam tais situações, ficando a devida interpretação sob responsabilidade do juiz da vara das execuções penais, o que aproxima mais o instituto do Direito Penal do Inimigo.

 

Finalizando este primeiro exemplo, registra-se entendimento de Busato, que, citado por José Carlos, em artigo científico encontrado em https://oab.grancursosonline.com.br/teoria-do-direito-penal-do-inimigo-e-seus-reflexos-no-brasil/, afirma que:

 

"A imposição de uma fórmula de execução da pena diferenciada segundo características do autor relacionadas com “suspeitas” de sua participação na criminalidade de massas não é mais do que um “Direito penal de inimigo”, quer dizer, trata-se da desconsideração de determinada classe de cidadãos como portadores de direitos iguais aos demais a partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de controle. A adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de determinado tipo de autor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e inimigos".

 

Pois bem, em segundo lugar, pode-se considerar como incidência do Direito Penal do Inimigo no ordenamento pátrio a Lei 11.343 de 2006, a chamada Lei de Tóxicos.

 

A referida lei prevê o crime de tráfico de drogas da seguinte maneira:

 

"Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa".

 

Nesse sentido, é possível extrair que:

 

"As penas cominadas para o artigo 33 variam de 5 a 15 anos, além da multa. Compartilhando da posição de Luis Greco, essa pena é superior a crimes mais danosos, como incêndio (art. 250), explosão (art. 251) e inundação (art. 254), cujas penas variam de 3 a 6 anos. Outra deformidade da lei de tóxicos pode ser apontada: segundo o CP, quem fabrica substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou fim medicinal, pode cumprir pena de 1 a 3 anos de reclusão. Se for fabricação de substância entorpecente, a pena aumenta de 3 a 15 anos de reclusão. O princípio da proporcionalidade é ignorado por completo na lei de drogas. Tal desproporcionalidade é uma das características apontadas por Jakobs no direito penal do inimigo. Condutas de periculosidades semelhantes, dentro de um mesmo ordenamento, são tratadas em medidas distintas" (https://jpomartinelli.jusbrasil.com.br/artigos/469083933/existe-um-direito-penal-do-inimigo-no-brasil).

 

Nesse diapasão, percebe-se que a Lei 11.343/06 trata o agente do crime previsto no art. 33 como verdadeiro inimigo da sociedade, prevendo tipo penal que abrange uma quantidade gigante de condutas, assim como prescrevendo dura pena independente de qual o núcleo praticado.

 

Apresentados tais institutos, os quais configuram possível incidência do Direito Penal do Inimigo no Brasil, é possível concluir que, devido ao dinamismo presente no direito brasileiro, mesmo duas visões completamente dicotômicas do Direito Penal podem coexistir, desde que uma seja predominante e a outra apareça de forma incidental, como nos casos demonstrados.

  • Direito Penal do Inimigo
  • Garantismo Penal

Referências

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Geral. Salvador: JusPODIVM, 2018.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Impetus, 2014.

https://dizuza.jusbrasil.com.br/artigos/366909725/os-dez-axiomas-do-garantismo-penal

https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819866/direito-penal-do-inimigo

https://www.douradosagora.com.br/noticias/entretenimento/direito-penal-maximo-e-o-controle-social-jose-carlos-de-oliveira-robaldo

https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5138/Direito-Penal-do-inimigo

http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11101&revista_caderno=3

https://jus.com.br/artigos/59189/criticas-ao-direito-penal-do-inimigo

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Lei nº 7.210/1984

Lei 11.343/2006

https://jpomartinelli.jusbrasil.com.br/artigos/469083933/existe-um-direito-penal-do-inimigo-no-brasil

https://oab.grancursosonline.com.br/teoria-do-direito-penal-do-inimigo-e-seus-reflexos-no-brasil/


Advocacia Túlio Zanelato

Advogado - Vitória, ES


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